• Nenhum resultado encontrado

A concepção de historicidade em psicanálise

No documento A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO (páginas 51-57)

CAPÍTULO II – A NEUROSE ATUAL: UMA RELEITURA

2.1 A concepção de historicidade em psicanálise

Percebe-se, no percurso de constituição do conceito de inconsciente, que todo o empenho de Freud na busca pelos fatores determinantes dos sintomas neuróticos centrava-se, desde o início, na história individual dos pacientes. Freud (1893/1996) questionava-se amplamente sobre “lembranças” do passado que estariam causando a patogenia manifesta, idéias incompatíveis sobre fatos traumáticos da infância que pareciam encontrar-se na gênese de cada sintoma.

Trabalhando arduamente a respeito de casos tratados através do método da “pressão na testa” – como se constata em um de seus textos mais antigos, “A psicoterapia da histeria” (ibid.) – Freud iniciava sua trilha para a formulação do conceito de inconsciente e para a criação da psicanálise. Segundo este método, persuadia seus pacientes a relatar as idéias que emergiam de sua mente no momento em que aplicava a pressão. A partir disso, destacava séries de elementos ideativos aparentemente desconexos e reconstituía-os de acordo com as lembranças e relatos que ouvia. Chegava à conclusão de que esses elementos estavam associados entre si e a fatores importantes da história do indivíduo, os quais eram concebidos como “representações patogênicas” (ibid.), lembranças de traumas da infância ligadas a cenas de abuso sexual realizado por parte de adultos, fatores que Freud acreditava estarem na raiz dos sintomas neuróticos.

Conforme deixamos indicado, foi neste mesmo movimento inicial, quando ainda a psicanálise estava em vias de ser criada, que Freud (1898/1996) fez as importantes distinções entre os fenômenos diversos, baseado em constatações clínicas que o levaram a pensar o fator sexual como fonte principal dessas patogenias. Como vimos, concebeu as neuroses atuais como dispêndio somático da energia sexual e as psiconeuroses como resultado do recalcamento de representações incompatíveis na consciência, ligadas também à sexualidade.

No que concerne à psiconeurose, os textos iniciais de Freud nos revelam que a especificidade de sua teoria está centrada no nível de articulação entre as

representações (Vorstellungen, no alemão) manifestas na fala de seus pacientes, cujo

sentido só poderia ser apreendido quando tomada uma representação em conjunto com

outras representações. Basta realizar uma leitura atenta no texto “A psicoterapia da histeria” (op. cit.) para perceber que, na busca de Freud pela representação

patogênica, os elementos ideativos que apareciam na incidência do método de pressão

na testa não apresentavam qualquer significação se tomados isoladamente, mas apenas quando articulados a outros elementos que surgiam na incidência deste método (FREUD, 1895b/1996). Nessa linha de pensamento, constatou-se que as representações estão ligadas entre si, formando um elo, donde se conclui que, no plano das

Vorstellungen o que se apresenta é um caráter de contiguidade, formador de uma

cadeia.

“O que emerge sob a pressão de minha mão nem sempre é uma lembrança ‘esquecida’; apenas nos casos mais raros é que as lembranças patogênicas reais acham-se tão freqüentemente à mão na superfície. É muito mais freqüente o surgimento de uma representação que é um elo intermediário na cadeia de associações entre a representação da qual partimos e a representação patogênica que procuramos” (FREUD, 1893/1996, p. 286).

Se Freud estava interessado na história dos pacientes, é de se concluir portanto que, no que se refere aos apontados fatores históricos ligados à neurose, há uma dimensão de encadeamento do plano representativo. Esta dimensão de encadeamento era tomada por Freud como um aspecto constitutivo da própria representação, ou seja, a associação é intrínseca à representação, o que está de acordo com as considerações do autor no estudo das afasias, conforme apresentamos no primeiro capítulo. Em “A psicoterapia da histeria” Freud considerava que, nessa relação em cadeia, a representação patogênica situava-se como um núcleo em torno do qual gravitavam as demais representações. Freud constatava que tal representação constituía-se como uma lembrança de um trauma vivido num passado absoluto e fatual.

Observa-se, contudo, uma fundamental modificação no pensamento do autor que tira do eixo da concepção de história essa dimensão do ‘passado vivido’. No que se refere ao caráter determinante do núcleo patógeno na psiconeurose, constata-se um importante salto teórico que se encontra na própria origem da invenção da psicanálise. Freud concluiu, segundo constatações clínicas, que as representações patogênicas que buscava não correspondiam a lembranças de fatos reais do passado; constituíam

épocas remotas da infância, as quais apareciam no sentido de rechaçar a sexualidade do próprio indivíduo. Numa carta dirigida a Fliess, Freud (1892-1899/1996) revela pela primeira vez essa conclusão, colocando em pauta a questão da verdade e da ficção e apontando como eixo da constituição da neurose a fantasia:

“Confiar-lhe-ei de imediato o grande segredo que lentamente comecei a compreender nos últimos meses. Não acredito mais em minha neurótica [teoria das neuroses]. Provavelmente, isso não é compreensível sem uma explicação; (...) veio a surpresa diante do fato de que, em todos os casos, o pai, não excluindo o meu, tinha de ser apontado como pervertido (...) Depois (...) a descoberta comprovada de que, no inconsciente, não há indicações de realidade, de modo que não se consegue distinguir entre a verdade e a ficção que é catexizada com o afeto. (Assim, permanecia aberta a possibilidade de que a fantasia sexual tivesse invariavelmente os pais como tema).” (p. 310).

Isso coloca em pauta a implicação e a participação do sujeito nessa problemática, do ponto de vista da construção fantasmática. Com esta conclusão, Freud inferiu que o sintoma psiconeurótico é o resultado do recalcamento de uma representação incompatível na consciência, ligada à sexualidade, que permanece no inconsciente e retorna, sob os processos de deslocamento e condensação, na formação dos sintomas (FREUD, 1900/1996). A partir deste ponto de vista, pôde lançar o conceito de inconsciente como instância psíquica (ibid.), concluindo que a base de toda a questão psiconeurótica centra-se na idéia de investimento e de recalque, o que levou Freud a conceituar a pulsão sexual como principal eixo de sua teoria.

Esta operação teórica leva-nos a pensar sobre as relações de historicidade ao nível das conexões representativas, as quais, investidas da sexualidade, caracterizam uma concepção de história peculiar à psicanálise. Freud afirmou, como vimos, que os fatores sexuais envolvidos nos sintomas psiconeuróticos estavam relacionados a questões do passado – em oposição às neuroses atuais (FREUD, 1906/1996). Com o desenvolvimento de sua obra, a questão que incide justamente na oposição passado/presente deve ser, assim, rediscutida e repensada pois, como se constata, ao falar de questões da “infância” do paciente, Freud passou a se referir a algo que ultrapassa uma concepção simplista de “passado”. Sua posição é clara quando realiza uma pontuação fundamental quanto à natureza do termo “infantil”, referindo-se às apontadas mudanças teóricas relativas à questão do trauma e da sexualidade. Ele afirma: “(...) os ‘traumas sexuais infantis’ foram substituídos, em certo sentido, pelo ‘infantilismo da sexualidade’” (ibid., p. 261). A sexualidade assume portanto um

caráter infantil, no que se refere às questões do inconsciente. Acima de tudo, Freud não está se referindo a um “infantil” sob o ponto de vista simplesmente temporal, mas a uma sexualidade – humana – que não pode ser concebida de outra maneira na psicanálise senão como sexualidade infantil, à medida que a constituição do inconsciente ocorre sob uma via sexual infantil ligada ao princípio de prazer (FREUD, 1905/1996). O inconsciente apresenta assim, um caráter de atemporalidade, tal como aborda Freud no texto “O Inconsciente” (1915b/1996). Isso pontua que não se trata simplesmente de questões do passado, mas de questões remetidas a um nível mais complexo, da ordem de uma trama de representações (Vorstellungen), e de sua articulação como cadeia de associações13.

É importante que se situe aqui o conceito de libido na caracterização dessas concepções. Em “Três ensaios sobre teoria da sexualidade” Freud (1905/1996) frisou que a libido se caracteriza como elemento fundamental para a constituição da atividade psíquica. O termo “libido” foi então empregado por Freud para designar a energia que põe em marcha as atividades psíquicas. Essa energia, segundo ele, é oriunda da sexualidade infantil, das experiências de prazer-desprazer vividas pela criança nos primeiros anos de vida. A palavra “sexual” – base da libido – designa, a partir de Freud, as fontes corporais de prazer experimentadas pelo indivíduo desde o seu nascimento. A exemplo disso, verifica-se que o ato de um bebê ao sugar o leite materno se mantém sem exigir mais alimento. Atribui-se a isso um prazer sentido pela criança simplesmente pelo ato de sugar. Freud esclarece: “Só podemos atribuir esse prazer a uma excitação das áreas da boca e dos lábios; a estas partes do corpo denominamos ‘zonas erógenas’ e descrevemos como sexual o prazer derivado da sucção” (1917/1996, p.319). A libido, portanto, é a energia que circula pelo corpo no que se denomina “zonas erógenas”, base do funcionamento psíquico.

A teoria da libido se efetivou, contudo, com a introdução do conceito de

narcisismo, o qual representa um marco no pensamento freudiano. Essa teoria centra o

fator libidinal na idéia de investimento, na qual a constituição do eu se torna fundamental. Freud (1914/1996) define o narcisismo como uma ação psíquica que se adiciona ao auto-erotismo, e que toma o eu como objeto de investimento. Desse ponto,

13O termo “cadeia de associações” foi utilizado por Freud em seu trabalho “A psicoterapia da histeria”

(1893/1996) assim como “símbolos de seqüências de representações” (p. 292), “cadeias patogênicas de idéias” (p. 300) “cadeia de pensamentos” (p. 312).

os movimentos de investimento objetal se viabilizam, a partir do eu em direção ao mundo externo.

A possibilidade de investimento no eu tem como pilar o movimento de composição narcísica relacionado com a presença do outro, dos pais, no universo infantil. “Sua Majestade o Bebê” caracteriza fundamentalmente essa questão, em que se flagra o narcisismo dos próprios pais reinvestidos na figura do infante. Percebemos assim que o júbilo da auto-imagem fornecida pelo olhar do outro se caracterizaria, sob esse aspecto, como ponto fundamental da constituição do narcisismo.

A libido passa, portanto, a ser concebida como movimento de investimento na relação com o outro, em primeira instância, com os pais. Nesse ínterim, o infantil, para Freud, se caracteriza justamente pelo aspecto narcísico em que, sob a égide do princípio de prazer, remete às experiências mais primárias do sujeito, experiências fundamentalmente sexuais. Mais do que tomar os fatos do “passado” como questão crucial para a psicanálise, Freud frisou que tal constituição histórica passa necessariamente pela experiência sexual infantil, atravessada pelo narcisismo, e permanece como tal para o inconsciente. Tais experiências irão configurar toda uma trama de articulações representativas que constituirão, historicamente, os contextos sob os quais o sujeito irá se situar no mundo, na relação com o outro.

A história deve, assim, ser pensada em primeira instância como resultado de uma construção psíquica, que encontra na fantasia sua fonte causal. Como Freud constatou, no inconsciente não existem indicações de realidade, o que impossibilita nesse plano a distinção entre a realidade e a fantasia. Trata-se efetivamente, nessa concepção de história, de uma reconstituição das lacunas que se fazem sentir sob a marca do recalque – e seus rechaços fantasmáticos – sob fato de que, o que se apreende na historicização, é a cadeia associativa.

O que concerne à história não se limita, contudo, apenas ao vínculo com o recalcado e com a sexualidade. Mais à frente, Freud realizou mudanças ainda mais radicais em sua teoria e trouxe, com isso, novas configurações teóricas as quais dizem respeito ao problema das manifestações clínicas que não se encontram subjugadas ao princípio do prazer. O autor constatou movimentos peculiares de seus pacientes característicos de uma compulsão que se apresenta pela repetição de experiências traumáticas, que Freud denominou compulsão à repetição. Freud percebia que seus

pacientes, ao invés de “recordarem” elementos importantes de sua história infantil,

atuavam experiências essencialmente desprazerosas, como se elas em nada

remontassem ao “passado”. Mesmo assim, Freud frisava que essa compulsão à repetição estaria efetivamente vinculada ao “passado”, ainda que não fosse imediatamente historicizada pelo paciente, mas atuada e atualizada como uma força maciça. Freud (1920/1996) considera:

“(...) chegamos a um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsão à repetição também rememora do passado experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para impulsos instintuais que desde então foram reprimidos” (p. 31).

Nessa direção, o autor concluiu que a compulsão à repetição não era condicionada pelo recalque, nem pelas forças da resistência a ele ligadas. Tal movimento de repetição está segundo Freud (1920/1996) condicionado pela pulsão de

morte, conceito introduzido a partir de entraves teóricos ligados a movimentos e

fenômenos clínicos que escapam ao princípio do prazer. Esse remanejamento teórico de Freud é de substancial importância para circunscrevermos a questão da historicidade no campo psicanalítico. A história deve também levar em conta movimentos que não aparecem ou não se apresentam imediatamente no discurso corrente do sujeito, nas suas associações, mas em fenômenos circunscritos ao campo da repetição.14

Visto que a historicidade deve ser condicionada pela experiência sexual, ou pela repetição mortífera de experiências traumáticas, somos inclinados a apontar a dimensão da alteridade que, pontuada pela idéia de narcisismo, se confirma no pensamento de Freud quando introduz a pulsão de morte. No narcisismo, temos que a constituição do eu implica, em si mesma, a dimensão da alteridade, visto que a operação psíquica que investe de libido o eu deve ter como ponto de origem o investimento dos pais. Essa operação é essencialmente fundada no plano da alteridade, já que o eu se constitui a partir da presença do outro. No caso da pulsão de morte, percebe-se a implicação daquilo que aparece como de fundamental estranheza, mas que concerne ao próprio sujeito, como alteridade radical (FREUD, 191915; 1920/1996; CARDOSO, 2002).

14A teoria da pulsão de morte será retomada posteriormente, no último tópico deste capítulo, de maneira

articulada com nossas questões.

A história se estabelece na vida psíquica, portanto, quando do encontro com o outro, e só pode ser pensada na relação com o outro, no universo da alteridade.

O enfoque na concepção de história se torna imprescindível, assim, à medida que o próprio Freud toma o ponto de vista histórico de maneira diferenciada daquele concebido nos seus primeiros escritos, o que pode introduzir, como veremos, novas perspectivas para se pensar o problema da “atualidade” em psicanálise, quando do uso do termo “neurose atual”.

No documento A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO (páginas 51-57)