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A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO

SENTIDO

PROBLEMAS E REFLEXÕES PSICANALÍTICAS

ACERCA DO FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO

ROGERIO ROBBE QUINTELLA

ORIENTADORA: TERESA PINHEIRO

Rio de Janeiro / UFRJ

2005

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UFRJ

A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO

PROBLEMAS E REFLEXÕES PSICANALÍTICAS ACERCA DO FENÔMEO PSICOSSOMÁTICO

Rogerio Robbe Quintella

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica. Orientadora: Maria Teresa da Silveira Pinheiro

Rio de Janeiro Janeiro de 2005

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A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO

PROBLEMAS E REFLEXÕES PSICANALÍTICAS ACERCA DO FENÔMEO PSICOSSOMÁTICO

Rogerio Robbe Quintella

DISSERTAÇÃO SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO COMO PARTE DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS À OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE.

Aprovada em ___ de _________ de 2005 pela Banca Examinadora.

Prof.ª Drª. _________________________________________________

Maria Teresa da Silveira Pinheiro (Orientadora)

Prof.ª Drª. _________________________________________________

Marta Resende Cardoso

Prof. Dr. _________________________________________________

José Henrique Valentim

Rio de Janeiro Janeiro/2005

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FICHA CATALOGRÁFICA Quintella, Rogerio Robbe

A Psicossomática nos confins do sentido – problemas e reflexões psicanalíticas acerca do fenômeno psicossomárico / Rogerio Robbe Quintella. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2005.

119 f.

Orientadora: Maria Teresa da Silveira Pinheiro. Dissertação: Mestre em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, 2005.

Referências Bibliográficas: f. 120-124.

1. Psicossomática 2. Neurose atual 3. Exesso traumático 4. Gozo 5. Cripta I. Pinheiro, Maria Teresa da Silveira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Teresa Pinheiro, que orientou com mestria esta empreitada, ampliando horizontes teóricos e apontando caminhos consistentes.

Agradeço também à minha mãe que me deu muito apoio, muitas vezes com um esforço além do esperado.

À minha namorada Vanessa, que esteve todo o tempo ao meu lado com carinho, e me ajudou muito em inúmeros momentos, fáceis e difíceis.

Aos amigos verdadeiros Paulo, Bernardo e Marcelo que, apesar muitas vezes da distância física, dispõem-se a ser amigos nos momentos cruciais.

Aos professores do Programa, que se mostram sempre dispostos a auxiliar em momentos necessários.

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A psicossomática nos confins do sentido – problemas e reflexões

psicanalíticas acerca do fenômeno psicossomático

Rogerio Robbe Quintella

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

RESUMO

O presente trabalho situa a questão psicossomática como problemática para a psicanálise, a qual teve como principais referências G. Groddeck, F. Alexander e P. Marty. A pesquisa realizada aponta problemas teóricos importantes que aparecem nessas abordagens, quando da confrontação de seus respectivos modelos teóricos com o conceito freudiano da “neurose atual” e com os princípios fundamentais do pensamento de Freud.

O modelo da neurose atual passa por uma releitura neste trabalho, o qual coloca em cena a concepção de historicidade em relação ao que se denomina “atual” na obra freudiana, e propõe uma relativização do último, conferindo uma dimensão de ‘historicidade’ atrelada também aos sintomas orgânicos. Esta análise indica a pertinência de se articular a neurose atual ao campo do trauma, concebendo-a como um excesso traumático impossibilitado de elaboração. Nesse campo, focalizamos a questão dos ‘neurônios-chave’ no “Projeto para uma psicologia científica”, relacionando-os ao trauma tal como se verifica em “Além do princípio do prazer”. Partindo deste ponto, buscamos no campo teórico da psicanálise autores que pensam com profundidade o problema do trauma de maneira articulada a efeitos de linguagem. A teoria do significante e do gozo em Lacan, bem como a noção de “Cripta” em Abraham e Torok acenam para perspectivas cujos fatores de linguagem determinantes aparecem em uma relação direta com o traumático. O “psicossomático” seria nessa direção tomado como um efeito de linguagem cujos elementos, para além da significação, assumiriam um estatuto traumático e poderiam, em determinadas condições, convocar o corpo a responder em sua materialidade.

A psicossomática indica ainda problemas relacionados ao campo de saber psicanalítico, sobretudo no que tange à questão do dualismo, da separação corpo/mente. Procuramos pensar a psicanálise, tentando sair deste escolho, como campo de positivação para a idéia de uma interação corpo-mente.

Palavras-chave: psicossomática, neurose atual, excesso traumático, gozo, cripta.

Rio de Janeiro Janeiro/2005

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ABSTRACT

The present work situates the psychosomatic matter as problematical in psychoanalysis, which had as main references G. Groddeck, F. Alexander and P. Marty. We located, in the first instance, important theoretical problems that appears on these approaches, on the confrontation of its respective theoretical models with Freud’s concept of “actual neurosis” and with the fundamental principles of Freud’s conception.

The model of actual neurosis is submitted to a re-reading that puts forward the conception of historicity matter in relation to “actual” in Freud’s work. We point out the necessity of articulating actual neurosis to the trauma field, conceiving it lastly as traumatic excess disabled of elaboration. In this field, we focus the matter of the key brain cells in the “Project for a scientific psychology” on an articulated way to trauma as it’s verified in “Beyond the principle of pleasure”. Starting from this point, we search for theories in the psychoanalytic field that considers the idea of a peculiarity in the associative chain that takes to the impediment of the excitement draining. The theory of significant and enjoyment in Lacan, as well as the notion of “Cripta” in Abraham and Torok points out to perspectives of which language factors would be present on a direct relation to traumatic. The “psychosomatic” would be in this way taken as an effect of language of which elements, for beyond signification, would assume a traumatic statute and could, in certain conditions, convoke the body to respond on its materiality.

The psychosomatic still indicates problems related to the field of psychoanalytic knowing, especially to the matter of dualism, of body/mind separation. We purpose to think psychoanalysis, trying to get out of this problem, as field of making positive for the idea of a body-mind interaction.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... ...1

1a PARTE: TEORIAS DA PSICOSSOMÁTICA NO CAMPO

PSICANALÍTICO...

...4

CAPÍTULO I – OS CAMINHOS E OS DESCAMINHOS DA PSICOSSOMÁTICA NA

PSICANÁLISE...5

1.1 – Freud entre a neurose atual e a

psicanálise...7 1.2 – Groddeck e sua concepção do

“Isso”...12 1.3 – Alexander e a tipologia clínica da Escola de

Chicago...15

1.4 – As perspectivas atuais: o Instituto de Psicossomática de Paris...18

1.4.1 – Freud e o estudo das

afasias...31 1.4.2 Freud e Marty...34

2aPARTE: PERSPECTIVAS CONCEITUAIS NO CAMPO PSICANALÍTICO...39

CAPÍTULO II – A NEUROSE ATUAL: UMA RELEITURA...40

2.1 – A concepção de historicidade em psicanálise...42

2.2 – A aglutinação neurose atual– psiconeurose...48

2.3 – O “atual” em

questão...52 2.4 – Escoamento e descarga no “Projeto para uma psicologia científica”...56

2.5 – Trauma, neurose atual e violência psíquica: além do princípio do prazer...62

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CAPÍTULO III – PERSPECTIVAS E PROBLEMATIZAÇÕES: A “PSICOSSOMÁTICA” EM

QUESTÃO...71

3.1 – Freud e

Ferenczi...71 3.2 – Lacan: cadeia significante, gozo e

holófrase...80

3.3 – “Incorporação” e “Cripta” em Abraham e Torok: aproximações...94 3.4 – Questionamentos e perspectivas...98 CONCLUSÃO... 107 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...120

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INTRODUÇÃO

Nossa proposta de dissertação se enraíza em questões levantadas durante o percurso de graduação em Psicologia, especificamente no trabalho monográfico “As Neuroses Atuais e a Psicossomática” (QUINTELLA, 2002), o qual se centrou em uma verificação, no interior da obra de Freud, do conceito de “neurose atual”. Este conceito apresenta um modelo estabelecido por Freud nos primórdios de suas teorias que serviu como principal ferramenta para a abordagem das patologias psicossomáticas encontrada em obras contemporâneas de autores empenhados com a questão no meio psicanalítico. Verificou-se mediante este trabalho alguns problemas de natureza teórica, sobretudo no que se refere aos pontos de vista dos pesquisadores do Instituto de Psicossomática de Paris (IPSO), cujo principal articulador foi o psicanalista P. Marty e cuja teoria permanece como principal referência dessa abordagem. A confrontação entre o pensamento freudiano sobre o conceito de neurose atual e a teoria psicossomática estabelecida por essa corrente teórica, a qual vige atualmente no campo psicanalítico, constituiu-se como principal eixo do trabalho mencionado. Este trabalho apontou uma importante incongruência entre Marty e Freud, bem como uma utilização superficial por parte de Marty do princípio freudiano da neurose atual1(QUINTELLA, 2003).

Nesse campo, avaliamos pertinente ressaltar que o princípio freudiano da neurose atual e sua distinção em relação às ‘psiconeuroses’ (FREUD, 1898/1996) configurou-se como de fundamental relevância no desenvolvimento de idéias em estudos pós-freudianos que tomaram para si como campo de investigação a ‘psicossomática’, abrindo possibilidade de discussão a respeito de patologias orgânicas cujas implicações psíquicas estariam presentes.

Nessa direção, percebe-se que o problema do sentido em psicanálise está crucialmente implicado nas discussões sobre a psicossomática. Conforme se entende no meio psicanalítico, as patologias psiconeuróticas – em especial, as neuroses histéricas, fóbicas e obsessivas – apresentam, nos enlaces de sua dinâmica, a característica da condensação, bem como do deslocamento pela via de processos inconscientes. Outrossim, apresentam uma estrutura de sentido, um conteúdo representativo latente

1Esse apontamento será retomado e discutido no desenvolvimento da presente dissertação de mestrado,

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ligado a movimentos libidinais que se engendram no corpo e cuja fonte remete ao princípio de prazer, à satisfação sexual (FREUD, 1917/1996). No que concerne às patologias ‘psicossomáticas’, segundo o modelo teórico do IPSO, o ‘sentido’ estaria absolutamente fora de questão, visto que o que está implicado nesses fenômenos é para Marty (1993) uma pura excitação somática que não encontrou vias psíquicas de descarga.

Percebe-se igualmente no campo psicanalítico a existência de importantes discussões sobre a concepção do sentido, bem como as relações do sentido com a ordem do corpo (BEZERRA Jr., 2001), debate que leva a psicanálise irremediavelmente a impasses sem dúvida presentes, sobre as relações entre corpo e mente e as conseqüências para o pensamento psicanalítico do paradigma moderno que opera uma separação entre essas duas categorias (ibid.). Tal debate leva a concepções diversas sobre tais relações (ou não-relações) entre corpo e psique que configuram problemas cruciais para a psicanálise.

Constata-se por exemplo que Freud, ao buscar a elucidação dos enigmas concernentes às “doenças nervosas” no início de sua investigação, esbarrava constantemente nas questões somáticas que se entrecruzavam com seu recente campo de saber, a psicanálise. O estudo das neuroses atuais, que fornecia a Freud os elementos fundamentais para certificar-se da problemática sexual no circuito humano, não deixava de circunscrever-se num domínio sobre o qual Freud tentava constantemente desligar-se, mas que era para ele, ao mesmo tempo, indispensável – o campo somático, o domínio biológico – chegando Freud (1910/1996) a considerar veementemente que “o psíquico se baseia no orgânico” (p. 227). A questão das neuroses atuais, apesar de não ter sido muito aprofundada por Freud, foi amplamente utilizada como paradigma teórico para a explicação da fenomenologia psicossomática. Muitas pesquisas até hoje debruçam-se assim nesse campo e tentam construir, a partir do discurso freudiano, redes teóricas que se dispõem a dar conta desse assunto.

Com base na teoria psicanalítica, temos assim como direção o aprofundamento de questões relativas ao campo de estudos da psicossomática e à problemática que se instaura nas principais teorias, a partir de verificações detalhadas que colocam em curso reflexões renovadas a respeito das relações corpo–mente bem como das psicopatologias existentes nessas relações. A questão das fronteiras entre o corpo e a mente, bem como

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entre os diversos campos de saber relativos a cada uma dessas categorias, são trazidas sem dúvida à tona pelos enigmas teóricos concernentes aos fenômenos psicossomáticos. Nesse contexto, o termo confins, utilizado por Mattos (2002) – inspirado em Pontalis (1974) – para caracterizar um espaço positivo da reflexão psicanalítica que possibilita a abrangência de novos aspectos dos fenômenos clínicos, aparece aqui, de maneira contínua ao dizer de Mattos (op. cit.), como referência crítica à questão dos chamados “limites” da simbolização que se encontra nos modelos teóricos em psicossomática. Esta questão requer avanços teóricos que devem permanecer afins aos princípios fundamentais da psicanálise. Enfocamos também nessa ótica, a questão da consistência do discurso psicanalítico na possibilidade de abordagem dos fenômenos psicossomáticos, das relações entre corpo e mente e de suas relações com outros campos de saber.

Procuramos assim delinear, no primeiro capítulo de nossa dissertação, as diferentes linhas de pensamento em psicossomática e os principais problemas que elas apresentam do ponto de vista da psicanálise, que concernem à coerência com o discurso psicanalítico e com as formas clínicas nas quais os fenômenos psicossomáticos aparecem. No segundo capítulo procuramos aprofundar, nessa direção, questões relativas às principais referências do campo psicanalítico circunscritas à obra de Freud, em especial o modelo teórico da neurose atual. Na seqüência, aprofundamos nossa questão em vista de dar perspectivas a discussões consistentes que abram caminho para novas reflexões. Nosso objetivo é expor importantes confrontações entre as principais teorias em psicossomática e o pensamento freudiano, mediante pesquisas teóricas, buscando situar importantes questões para as mesmas. Assim, a partir do discurso freudiano, visamos possibilidades de articulação para elementos teóricos consistentes rumo à compreensão dos fenômenos em questão, caracterizados hoje como “psicossomáticos”. Esta pesquisa procura, pois, tecer caminhos circunscritos aos contextos atuais nos quais a psicanálise se situa, buscando linhas de pensamento que abarquem as especificidades das principais questões e problemas que a acometem na atualidade.

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1aPARTE:

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CAPÍTULO I – OS CAMINHOS E OS DESCAMINHOS DA PSICOSSOMÁTICA NA PSICANÁLISE

A psicossomática se desenvolveu a partir de pensadores, médicos e psicanalistas, que voltaram sua atenção a fenômenos corporais, diferentes daqueles abordados por Freud a respeito das conversões histéricas. Tais fenômenos aparecem muitas vezes de forma enigmática para a medicina, à medida que configuram lesões orgânicas concretas e que, contudo, apresentam uma etiopatogenia muitas vezes desconhecida do ponto de vista das observações médicas. São fenômenos que desafiam o saber médico, face à impossibilidade de sustentação etiopatogênica que justifique seu aparecimento, bem como aos contextos de sua manifestação, fator importante para que se estabeleça na medicina e na psicanálise a suposição de ligação desses fenômenos com processos psíquicos (WARTEL, 1987).

Em decorrência de uma interlocução entre o discurso médico e o discurso psicanalítico (VOLICH, 1998), a psicossomática começou a se constituir como importante vertente das investigações em psicanálise, ou pelo menos como investigação em permanente diálogo com esta. Tal interlocução se iniciou com o próprio Freud, que defendeu a idéia de que a medicina deve aliar-se às perspectivas que trabalham o psíquico, onde ele propõe uma visão não tão tecnocêntrica no tratamento das enfermidades:

“Essa formação [médica] tem sido justamente criticada nas últimas décadas pela maneira parcial pela qual dirige o estudante para os campos da anatomia, da física e da química, enquanto falha, por outro lado, no esclarecimento do significado dos fatores mentais nas diferentes funções vitais, bem como nas doenças e seu tratamento” (FREUD, 1919a/1996, p. 187).

Essa opinião de Freud revela sua preocupação em relação à importância da dinâmica psíquica e da implicação dos estados enfermos sobre a subjetividade humana, bem como dos progressos da própria medicina face às dificuldades subjetivas que uma doença pode acarretar para a vida psíquica. Para Birman (1980), o saber médico estende-se necessariamente a uma inter-relação que se estabelece em suas fronteiras com outros campos de saber tais como, Psicologia, Sociologia, Biologia, Psicanálise. Ele aponta:

“A prática médica passa assim a ser pensada e realizada com auxílio de outros saberes, que se articulam numa relação complexa com o discurso biológico. A Medicina entra na região da interdisciplinaridade, adquirindo neste campo de práticas o mesmo estatuto ambíguo, do ponto de vista epistemológico, que em

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outros campos teóricos. Com efeito, este conjunto de discursos não se refere ao mesmo objeto científico, mas a uma pluralidade de objetos que encontram sua delimitação e as suas verdades nos saberes de origem: Psicologia, Sociologia, Antropologia, Psicanálise e Biologia.(...) Desta perspectiva o enquadre interdisciplinar é regulado pela lógica do complementarismo” (p.25).

Tal discussão relaciona diretamente a medicina à psicanálise e ao estudo da subjetividade, fato que deu abertura à possibilidade de abordagem daquelas patologias que desafiam o discurso médico, conforme a configuração que elas tomam face à impossibilidade de explicação a respeito da doença que desponta.

Assim, o termo “psicossomática”, inventado em 1818 pelo psiquiatra Heinroth para caracterizar “a influência das paixões sexuais sobre a tuberculose, a epilepsia e o câncer” (ABREU, 1988, p. 10), foi utilizado amplamente, não apenas no meio psicanalítico, mas também na psicologia experimental de Cannon e Seyle e no behaviorismo de Pavlov (ibid.), para caracterizar implicações e influências do psiquismo sobre o soma. No que diz respeito à psicanálise, campo no qual se localiza nossa pesquisa, diversos pensadores e pesquisadores foram movidos pelas questões pertinentes a esse tema, o que os levou a estabelecer linhas de pesquisa diversas, baseadas a princípio no discurso psicanalítico.

Começaram a surgir então tentativas de se relacionar psique e soma, tomando-se como base postulados a respeito do inconsciente, da sexualidade, da dinâmica psíquica, segundo a metapsicologia freudiana. Os principais psicanalistas que se dispuseram, na história da psicanálise, a estabelecer aprofundadas investigações a respeito do tema da psicossomática podem ser vistos nos nomes de G. Groddeck, F. Alexander e P. Marty. Esses autores reportaram-se aos princípios psicanalíticos estabelecidos por Freud no desenvolvimento de suas teorias, mantendo com a psicanálise uma relação de permanente diálogo; contudo, cada um dos três nomes mencionados representam linhas de pensamento essencialmente diferentes no que tange à compreensão dos fatores em curso na ocorrência das afecções psicossomáticas. A principal referência freudiana para a psicossomática – salvo a linha de pensamento de Groddeck, que será exposta no desenvolvimento deste trabalho – é a distinção entre as ‘psiconeuroses’ e o princípio característico do que Freud denominava como ‘neurose atual’, elemento que consideramos importante na composição da teoria psicanalítica, trabalhado por Freud já nos primeiros delineamentos a respeito das concepções sobre as neuroses em geral, e que constitui indubitavelmente a base fundamental do pensamento que vigora

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atualmente na psicanálise a respeito das psicopatologias psicossomáticas (Cf. VOLICH, 1998). Conforme apontamos alhures (QUINTELLA, 2003), o conceito de neurose atual deve ser abordado em suas minúcias, visto a sua importância para a psicossomática.

É portanto necessário que desde já se retome a localização deste conceito na obra freudiana, no que diz respeito aqui ao desenvolvimento inicial da teoria psicanalítica, momento em que Freud introduziu a importante distinção entre as psiconeuroses e as mencionadas ‘neuroses atuais’. Visto sua importância para a psicossomática, principalmente a martyniana (Cf. VOLICH, op. cit.), avaliamos fundamental a exposição das características básicas da neurose atual, para que, num momento posterior de discussão, tenhamos como base o delineamento de seus princípios, no objetivo de estabelecer uma importante problematização na utilização do modelo da neurose atual a qual aparece inevitavelmente na confrontação entre as teorias freudianas e as abordagens psicossomaticistas, especialmente aquelas que vigoram na atualidade, relativas ao desenvolvimento teórico de P. Marty.

1.1 Freud entre a neurose atual e a psicanálise

O caminho percorrido por Freud para a concepção da psicanálise se deu a partir de questões e investigações relativas às chamadas ‘doenças nervosas’ para as quais Freud voltou sua atenção, como neurologista, empenhando-se esforçadamente em definir processos em jogo em cada uma dessas doenças. A histeria, a neurose obsessiva, a neurastenia, a parafrenia, eram para Freud problemas não solucionados até então pela medicina, o que provocou nele movimento de investigação, tendo como resultado os postulados psicanalíticos. Por muito tempo, a neurastenia e a histeria foram os principais objetos de estudo para os quais Freud se voltou. Em meio a profundas investigações sobre essas ‘doenças nervosas’, Freud delineava suas conclusões no sentido de demarcar fronteiras entre fenômenos diferentes em suas características e sua etiologia. Isso o levou a distinguir histeria de neurastenia (FREUD, 1898/1996), localizando a primeira entre aquelas que recebiam o nome de ‘psiconeuroses’ – neurose obsessiva, parafrenia, neurose histérica – e a segunda numa categoria que recebeu o

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nome de ‘neurose atual’ – circunscritos por Freud no nome de ‘neurose de angústia’ conjuntamente com a neurastenia2.

A distinção entre psiconeuroses e neuroses atuais forneceu a Freud elementos imprescindíveis para possibilitar uma visada objetiva sobre os processos implicados em cada um dos fenômenos neuróticos, e a região na qual eles se localizam, donde se pode verificar que, para Freud (1895b/1996), o ponto de vista principal dos processos em jogo nas neuroses ‘atuais’ deve se localizar no plano somático, enquanto que, no casos das psiconeuroses, o ponto de vista principal deve se centrar no plano psíquico, sendo que em ambas as neuroses, o que interfere na irrupção dos sintomas é um problema de natureza sexual. Os fatores que derivam uma psiconeurose estão ligados segundo Freud (1898/1996) a questões históricas da sexualidade, a saber, traumas da infância relacionados a cenas de abuso sexual; no caso das neuroses atuais, há a prevalência de um desvio no curso da excitação sexual, levando esta a produzir descargas corporais e sintomas de ordem eminentemente somática. Tal desvio procederia de uma aplicação insatisfatória da atividade sexual, como a masturbação excessiva, o coito interrompido, a abstinência sexual. Essas atividades, de acordo com Freud (1898/1996, p. 256) levam a excitação a se desviar da esfera psíquica produzindo descargas somáticas insatisfatórias, e remetem a uma etiologia contemporânea, uma excitação que, pelo menos nesse momento do pensamento freudiano, se esgota na atualidade, não tendo qualquer relação com a historicidade.

Tais distinções podem se verificar nos textos iniciais de Freud, onde ele demonstra um esforço grande na delimitação dessas fronteiras. Ali (FREUD, 1893/1996), podemos perceber que seu movimento no sentido de delimitar os fatores que desencadeiam uma psiconeurose centrava-se fundamentalmente em estabelecer relações causais entre os sintomas manifestos e elementos históricos da vida subjetiva dos pacientes, “lembranças” do passado que estariam na raiz da patogenia, idéias incompatíveis na consciência sobre os referidos fatos traumáticos da infância que pareciam encontrar-se na gênese de cada sintoma (psiconeurótico).

Esse movimento de busca pelo elemento patógeno na psiconeurose se iniciou com trabalhos clínicos desenvolvidos pelo seu professor, J. Breuer, com o qual Freud

2A hipocondria foi caracterizada como uma terceira neurose atual em 1914 por Freud em “Sobre o

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estabeleceu durante um tempo uma grande interlocução. O estudo dos sintomas histéricos – que nessa época constituíam principal objeto de investigação para os dois pesquisadores (BREUER & FREUD, 1893/1996) – se baseava em métodos clínicos caracterizados pela hipnose e pela catarse. Seus respectivos pacientes eram submetidos ao estado de hipnose com objetivo de se alcançar “representações psíquicas” que estariam provocando os sintomas, e com objetivo de liberar o “afeto estrangulado” ligado aos mesmos (ibid.). Nesse momento, a explicação dos sintomas histéricos se baseava num deslocamento do “afeto estrangulado” que, por conversão, levaria a “inervações somáticas”3. Diante de freqüentes fracassos com o método hipnótico, contudo, Freud (ibid.) viu-se impelido a promover mudanças em sua técnica, que o levaram a adotar o método peculiar da “pressão na testa”, através do qual persuadia seus pacientes a relatar as idéias que emergiam de sua mente no momento em que aplicava a pressão. A partir disso, chegava à conclusão de que os elementos ideativos estavam associados entre si e a fatores importantes da história do indivíduo. Tais fatores eram concebidos como “representações patogênicas” (ibid.), lembranças traumáticas da infância ligadas a abusos sexuais realizados por parte de adultos. Com a denominação de núcleo patógeno, Freud (1893/1996) inferiu nesse momento a relação entre sintomas histéricos e traumas sexuais infantis, apontando em direção ao elemento nuclear da neurose – representações incompatíveis na consciência por seu caráter sexual traumático (ibid.).

Os estudos iniciais das psiconeuroses foram assim realizados

concomintantemente aos estudos das neuroses atuais, estas tomadas por Freud (1923a/1996) como introdutoras da idéia de uma etiologia sexual global nas neuroses. As investigações de Freud (1898/1996) acerca da neurastenia, em paralelo aos estudos da histeria e da neurose obsessiva, apontam para a importância de se centrar nas questões da sexualidade a explicação da sintomatologia apresentada pelas neuroses em geral. Fica claro no pensamento de Freud (1923a/1996) que os fatores sexuais trabalhados nas neuroses atuais influenciaram com grande peso a inferência do caráter

(esquizofrenia, paranóia), enquanto que as demais neuroses atuais (neurastenia, neurose de angústia) estariam relacionadas com as psiconeuroses de transferência (histeria, fobia, neurose obsessiva).

3As “inervações somáticas” na histeria não constituem modificações fisiológicas, de ordem

bio-estrutural. Esse é o principal diferenciador em termos fenomenológicos entre as conversões histéricas e os fenômenos psicossomáticos (estes constituindo lesões orgânicas concretas).

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universal do fator sexual nas psiconeuroses. O tema da sexualidade foi tomando corpo à medida que Freud se debruçava sobre a investigação etiológica dos sintomas e encontrava expressivamente a presença de conflitos sexuais no caso das psiconeuroses – e não apenas nos processos patológicos concernentes à aplicação da energia sexual – no caso das neuroses atuais. Freud (ibid.) esclarece:

“(...) tornou-se inevitável curvar-se perante a evidência e reconhecer que na raiz da formação de todo sintoma deveriam encontrar-se experiências traumáticas do início da vida sexual. Assim, um trauma sexual entrou no lugar de um trauma comum e viu-se que o último devia sua significação etiológica a uma conexão associativa ou simbólica com o primeiro, que o precedera. Uma investigação de casos de nervosismo comum (incidindo nas duas classes da neurastenia e da

neurose de angústia) empreendida simultaneamente levou à conclusão de que

esses distúrbios podiam ser remontados a abusos contemporâneos na vida sexual dos pacientes e removidos se esses fossem levados a um fim. Assim, foi fácil inferir que as neuroses em geral são expressão de distúrbios na vida sexual, em que as chamadas neuroses atuais são conseqüência (por inferência química) de danos contemporâneos e as psiconeuroses, conseqüência (por modificação psíquica) de danos passados (...)” (p. 260).

Constata-se assim, na caracterização dessas distinções, que Freud estabeleceu relações sintomáticas nas psiconeuroses remetidas a conexões representativas de caráter infantil que sofreram o mecanismo do recalque e permaneceram distantes da consciência sob a forma de representações inconscientes. Os caminhos percorridos por Freud para a concepção da psicanálise passaram contudo por constatações que se encontram na própria origem de sua invenção. A respeito disso, o caráter determinante do núcleo patógeno na psiconeurose foi revisto por Freud (1892-1899/1996)4 quando, segundo constatações clínicas, concluiu que as representações patogênicas que buscava não correspondiam a lembranças de fatos reais do passado; constituíam fantasias de

sedução, ou seja, seduções sexuais realizadas por parte de adultos apenas supostos,

remetidas a épocas remotas da infância, que apareciam no sentido de rechaçar os desejos sexuais do próprio indivíduo. A partir desta conclusão, Freud inferiu definitivamente que o sintoma psiconeurótico é o resultado do recalcamento de representações incompatíveis na consciência, ligadas à sexualidade. O aspecto dinâmico e associativo das representações revela que a sintomatologia encontrada nas psiconeuroses constitui formações da instância inconsciente, ligadas às representações recalcadas, as quais retornaram mediante processos de condensação – em que se verificam elementos representativos “condensados”, expressos pelos sintomas – e

4 FREUD, S. (1892-1899/1996). Extratos de documentos dirigidos a Filess, Carta n. 69. In: Obras Completas, vol. I. Rio de Janeiro: Imago.

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deslocamento – em que se verifica séries de representações associadas as quais, por

contiguidade, remetem às representações recalcadas (FREUD,1900/1996). No ínterim desta teoria, Freud inventou a psicanálise bem como o método da livre associação de idéias para o tratamento das psiconeuroses, em que o psicanalista leva o paciente a falar tudo o que lhe ocorre, sem restrições, julgamentos ou censura.

Com isso, Freud inferiu para os sintomas psiconeuróticos uma estrutura de

sentido, pois eles remetem a idéias inconscientes que se expressam por meio do que

denominou solução de compromisso, formações simbólicas que conciliam forças antagônicas – aquelas ligadas à sexualidade, que têm como finalidade a satisfação mediante a descarga pelo princípio de prazer, e aquelas ligadas à cultura, que impedem que essas idéias ‘sexuais’, tomem livre curso na consciência. O sintoma psiconeurótico é então concebido como uma formação de compromisso no sentido de conciliar essas forças.

No caso das neuroses atuais a questão do deslocamento, da condensação, da formação de compromisso ou do ‘sentido’ nos sintomas, não está presente. Freud (1898/1996) atribuiu aos sintomas ‘atuais’ uma simples excitação somática que se acumula produzindo sintomas físicos e alterações de ordem orgânica (pressão intracraniana, dispnéia, arritmia cardíaca, palpitação, diarréia, constipação, prisão de ventre, dispepsia, etc.). Estes sintomas estão ligados, segundo Freud (1895b/1996), a processos tóxicos diretos, causados pelo desvio insatisfatório da excitação sexual.

Assim, o termo ‘atual’ é utilizado por Freud – pela primeira vez em 18985– no sentido de delimitar o fator de oposição entre os dois grupos de neuroses, a saber, a questão da historicidade, que constituía um impasse clínico para Freud na medida em que os sintomas da neurastenia e da neurose de angústia não eram claramente associados a fatores históricos, não eram ‘historicizados’ como no caso dos sintomas psiconeuróticos. Utilizando-se de anamnese, Freud (1898/1996) encontrava na etiologia da neurastenia e da neurose de angústia um desvio no curso da excitação sexual, conforme dissemos, encontrado por ele de maneira mais fatual e objetiva em atividades como masturbação, coito interrompido ou abstinência sexual.

5FREUD, S. (1898/1996) A sexualidade na etiologia das neuroses. In: Obras Completas, vol. III. Rio de

(21)

As características básicas da neurose atual, assim destacadas, serviram, conforme apontamos, como principal elemento teórico para a abordagem contemporânea das sintomatologias e doenças psicossomáticas que compõe os estudos do Instituto de Psicossomática da Paris (IPSO), representados pelo nome de P. Marty (1993). As teorias de Marty não constituem contudo a única linha de pensamento em psicossomática que apareceram desde Freud no meio psicanalítico. Percebe-se claramente que, conforme abordaremos passo a passo, o percurso da psicossomática no campo psicanalítico não se deu de maneira linear, coerente e harmoniosa. As teorias relativas a esse tema encontram entre si divergências essenciais, que tomam a psicanálise como referência mas se afastam em seus mais fundamentais princípios. É importante portanto que, para estabelecermos a discussão aqui objetivada, exponhamos esse percurso segundo as diferentes linhas de pensamento que lhe concorrem. Começaremos pelas idéias de Groddeck, o qual apresenta-se como um médico investigador de doenças orgânicas que se interessou pelo discurso psicanalítico devido à sua inclinação a pensar o psicossoma, as relações entre o corpo e a mente, pioneirizando assim as discussões sobre a psicossomática na psicanálise.

1.2 Groddeck e sua concepção do “Isso”

Groddeck foi um médico dedicado a investigar as doenças sob um prisma integral, levando essencialmente em consideração que os fatores do adoecimento, físico ou mental, estariam ligados fundamentalmente a uma entidade que denominou como “o Isso”. Para situar esse inusitado pensamento na nossa dissertação, encontramos uma passagem do “Livro dIsso” (1917a/1997), onde Groddeck introduz sua concepção particular acerca do humano e do Isso.

“Acredito que o homem é vivido por algo desconhecido. Existe nele um “Isso”, uma espécie de fenômeno que comanda tudo o que ele faz e tudo o que lhe acontece. A frase “Eu vivo...” é verdadeira apenas em parte; ela expressa apenas uma pequena parte dessa verdade fundamental: o ser humano é vivido pelo Isso” (p. 9).

O Isso integra a totalidade organismo-psiquismo e está na raiz tanto do adoecimento quanto da cura. Para Groddeck (1917a/1997) não há doença psíquica ou orgânica que não seja originada no e pelo Isso. Ele diz: “Doença e saúde são formas de expressão do Isso” (idem, 1917a/1997, p. 147).

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Delineando doenças somáticas diversas de pacientes, Groddeck estabelecia uma relação intrínseca entre essas patologias e o inconsciente, caracterizando-as como expressão do Isso, sob a afirmativa de que “(...) o Isso nada pode fazer além de simbolizar” (p. 68) e que “o Isso, o inconsciente, pensa através de símbolos (...)” (p. 41). Groddeck aborda diversas doenças orgânicas defendendo idéias remetidas ao Isso a respeito de sua forma simbólica de expressão. A doença, seja ela psíquica ou orgânica, expressa por meio de linguagem metafórica aquilo que o Isso quer. O Isso se expressa tanto no corpo quanto no psiquismo, segundo a linguagem na qual ele decide se uma enfermidade aparece ou não diante de um traumatismo ou precipitante interno. Groddeck (1917b/1997), numa carta a Freud, assinala:

“O Isso, que se encontra ligado misteriosamente à sexualidade, ao Eros ou seja lá que nome se queira dar-lhe, forma tanto o nariz quanto a mão do homem, assim como os seus pensamentos e os seus sentimentos; manifesta-se tanto na pneumonia ou no câncer quanto na neurose obsessiva ou histeria; e, assim como a atividade mais evidente do Isso na forma de histeria ou neurose é objeto de tratamento psicanalítico, o é também a insuficiência cardíaca ou o câncer” (p. 5-6).

Groddeck estende então a compreensão freudiana acerca das neuroses para as doenças orgânicas em geral. É importante assinalar que Groddeck localizou as doenças psicossomáticas do lado das psiconeuroses, com características similares a esta, sem se remeter em nenhum aspecto à abordagem de Freud sobre a neurose atual. Dessa forma, Groddeck defendeu uma característica simbólica concernente às patologias psicossomáticas. Assim como nos sonhos e nas conversões histéricas, o Isso se expressaria simbolicamente na esfera somática, as doenças somáticas como um todo apresentariam um sentido na sua constituição, e estariam assim sujeitas a tratamento psicanalítico assim como as chamadas psiconeuroses. Por exemplo, hemorragias uterinas, ou nasais, pulmonares, retais estariam ligadas à idéia da gestação, ao desejo de gravidez, assim como, de acordo com Groddeck (1917a/1997), “(...) as hemorróidas, parecidas a vermes no reto (...) na maioria das vezes se originam da associação verme-criança (...)” (p. 14). Essas e outras afecções seriam formadas pelo Isso e devem segundo ele ser tratadas pela psicanálise. Groddeck (1917c/1969) assinalava, sobre o tratamento psicanalítico das doenças orgânicas, que é preciso ampliar o campo de investigação da análise à cirurgia, à oftalmologia, à otorrinolaringologia, à dermatologia, às doenças venéreas, e se convence da eficácia do método de Freud para essas doenças. O autor defende em sua carta a Freud que o tratamento deve estar

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voltado para o Isso, já que este é a raiz da enfermidade e de sua cura: “Uso o termo tratamento, porque não creio que a atividade do médico se estenda além do tratamento; a cura não é ele que proporciona, mas exatamente o Isso” (Groddeck, 1997b/1997, p. 6).

É interessante contudo frisar que as idéias de Groddeck acerca da constituição psíquica, do inconsciente, da sexualidade infantil, já estavam presentes em seu pensamento antes mesmo do contato com a psicanálise. Na mesma carta de 1917 dirigida a Freud ele expôs claramente sua primeira reação quando de seu contato com os textos freudianos, expressando uma certa decepção por não ter pioneirizado a idéia do inconsciente. Sua admiração por Freud contudo era grande, o que o fez integrar-se ao meio psicanalítico, de maneira diferente entretanto da maioria dos psicanalistas, pois centrava-se especialmente na cura de doenças orgânicas. Groddeck (1917c/1969) expõe que sua inserção no meio psicanalítico não se deu pela investigação das “doenças nervosas”, como acontecia com muitos médicos, mas por sua atividade terapêutica

física em doentes corporais crônicos, o que o levou à investigação psíquica e ao seu

interesse pela psicanálise.

Se Groddeck não pioneirizou a idéia do inconsciente, pioneurizou a discussão psicossomática na psicanálise. À sua maneira, com uma concepção peculiar acerca do humano, Groddeck centralizou toda a discussão sobre os processos psíquicos e somáticos no Isso. Para ele, quem provoca a doença é o Isso, e não propriamente um agente externo, ou um funcionamento orgânico inadequado. O Isso é quem decide se o indivíduo vai ficar doente, e se utiliza de agentes externos como meio de adoecimento. Diante de um vento frio, por exemplo, o homem pode se resfriar, mas não se o Isso não quiser. Desta maneira, todas as doenças orgânicas são consideradas ‘psicossomáticas’.

A idéia de Groddeck acerca do Isso rendeu a Freud importantes conseqüências teóricas num segundo momento de sua teoria. Freud (1923b/1996) utilizou-se do termo de Groddeck para designar uma instância psíquica inconsciente ligada fundamentalmente ao princípio de prazer. O ‘Isso’ na obra de Freud (id) tem contudo características diferenciadas das de Groddeck, o qual concebia no Isso numa dimensão de totalidade organismo-psiquismo, uma entidade que se encontraria presente desde a concepção humana na fecundação (GRODDECK, 1917a/1997). Freud utilizou, contudo, o termo Isso para a explicação do aparelho psíquico e das neuroses, no sentido

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de distinguir topicamente instâncias psíquicas diferentes, a saber, o Isso, o Eu e o Supereu (FREUD, 1923b/1996).

A idéia de um “Isso” em Groddeck que determina os destinos do humano, e que se enconta na origem desde a concepção, está segundo Birman (1980) diretamente remetida às imagens do Romantismo alemão e às filosofias da natureza. Ele coloca:

“Seguramente, Freud partiu destas postulações imaginárias, realizando uma crítica minuciosa de seus pressupostos para criar a Psicanálise. Nestes termos, esta mitologia romântica do inconsciente, totalizadora porque metafísica, antianalítica porque preocupada antes de mais nada com a síntese, corresponde ao negativo do trabalho de Freud. Com esta isomorfia do sonho e do sintoma orgânico, a concepção romântica de Groddeck atinge o seu ápice, rompendo toda uma elaboração positiva estabelecida por Freud, discriminando estruturas psíquicas diversificadas, com seus mecanismos reguladores, no quadro de uma interpretação metapsicológica” (p. 102).

As críticas a Groddeck e à linha de pensamento que se apoiam nessa isomorfia entre sintomas neuróticos e afecções psicossomáticas apareceram com força ainda maior nos desenvolvimentos teóricos de médicos psicanalistas que se voltaram para as investigações psicossomáticas, delineando uma linha de pensamento essencialmente oposta à de Groddeck. Essa linha de pesquisa tem em Franz Alexander a principal referência, conjuntamente a F. Deutsch e F. Dunbar, os quais compunham a Escola de Chicago que se dedicou ao aprofundamento de pesquisas ligadas ao tema da psicossomática. A exposição dessas idéias é de suma importância no que se refere ao marco separatório nas concepções no campo psicanalítico entre afecções somáticas e sintomas psiconeuróticos.

1.3 Alexander e a tipologia clínica da Escola de Chicago

Orientados por F. Alexander, os pesquisadores da escola de Chicago foram os primeiros a voltar sua atenção para a distinção freudiana entre psiconeuroses e neuroses atuais no movimento de investigação psicossomática (BIRMAN, 1980). Partindo desta distinção e centrando-se especificamente nesse aspecto da teoria freudiana, esses psicanalistas desenvolveram teorias concernentes às relações psique-soma, no sentido de delimitar afecções orgânicas ligadas, segundo essa corrente, a estados emocionais que influiriam de maneira importante no funcionamento neuro-vegetativo (ALEXANDER, 1954). Baseado nessa distinção freudiana, Alexander (1954) faz uma

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importante crítica ao pensamento de Groddeck, em específico ao ponto mais essencial de suas teorias sobre as relações entre o inconsciente e o organismo. Ele aponta:

“Um grupo fundamentalmente diferente de transtornos somáticos são aqueles que incluem os órgãos internos. Os primeiros autores psicanalistas tentaram repetidamente estender o conceito original de conversão histérica a todas as formas de transtornos somáticos de origem psicógena, incluindo aquelas que ocorrem nas vísceras.

“De acordo com tais pontos de vista, a elevação da pressão arterial tem um significado simbólico igualmente a todo sintoma de conversão. Não se prestou nenhuma atenção ao fato de que as vísceras são controladas pelo sistema nervoso autônomo o qual não se encontra em relação direta com os processos ideativos. A expressão simbólica de conteúdos psicológicos se conhece somente no campo da inervação voluntária, na palavra, movimentos como a mímica facial, a gesticulação, o riso, o pranto, etc. Possivelmente pode-se incluir o rubor neste grupo. É muito mais improvável, não obstante, que os órgãos internos como o fígado e as pequenas arteríolas do rim possam, simbolicamente, expressar idéias. Isso não significa que não possam ser influenciadas pelas tensões emocionais, conduzidas a qualquer parte do corpo através das vias córtico-talâmicas e das autônomas.” (p. 24-25)6.

Alexander chama atenção então para estas distinções considerando que o grupo das afecções psicossomáticas consiste em respostas viscerais a estímulos ou inibições emocionais: “(...) sempre que tal estimulação ou inibicão emocional de uma função vegetativa se faz crônica e excessiva, a denominamos ‘neurose de órgão’”.(p. 25)7.

A neurose de órgão não se enquadra aos princípios das psiconeuroses de Freud, e inaugura uma nova forma de concepção psicossomática que leva em consideração o funcionamento neuro-vegetativo, tendo como referência a obra freudiana, sobretudo a distinção básica entre psiconeuroses e neuroses atuais. Contudo, esta distinção serve apenas como ponto teórico referencial na obra freudiana que não estende o simbolismo

6

“Un grupo fundamentalmente diferente de transtornos somáticos psicógenos son aquellos que incluyen los órgãos internos. Los primitivos autores psicoanalistasintentaron repetidamente extender el concepto original de conversión histérica a todas las formas de transtornos somáticos de origen psicógeno, incluiyendo aquéllos que ocurren em las víceras.

De acuerdo con tales puntos de vista, la elevación de la presión arterial o una hemorragia gástrica tiene un significado simbólico al igual que todo sintoma de conversión. No se prestó ninguna atención al hecho de que las víceras son controladas por el sistema nervioso autónomo en qualno se encuentra en relación directa con los processos ideativos. La expressión simbólica de contenidos psicológicos solamente se conoce en el campo de la inervación voluntaria, en la palabra, movimentos como la mímica, facial, la gesticulación, la riza, el llanto, etc. Possibelmente pueda incluirse el rubor en este grupo. Es mucho más improbable, sin embargo, que los órganos internos como el hígado o las pequeñasarteriolas del rino pueden, simbolicamente expressar ideas. Esto non significa que no pueden ser influenciadas por las tensiones emocionales, conducidas a cualquier parte del cuerpo a través de las vias córtico-talamicas y de las autónomas” (Tradução nossa).

7 “(...) siempre que tal estimulación o inhibición emocional de unaa función vegetativa se hace crônica y

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das conversões histéricas e dos sonhos a patologias que se circunscrevem nas vísceras corporais. As neuroses de órgão não são propriamente “neuroses atuais”, mas o modelo de descarga das últimas serviu indubitavelmente como ponto de partida para essa linha de pensamento.

Alexander (1954), conjuntamente aos pesquisadores da escola de Chicago, desenvolveu então essas idéias, entendendo as doenças psicossomáticas essencialmente como respostas a movimentos emocionais, e ampliou este ponto de vista definindo na raiz dessas afecções estados emocionais específicos, característicos de tipos de personalidade determinados. Para ele, alguns tipos de personalidade estão predispostos a sofrer determinadas enfermidades. Alexander (ibid.) definiu, assim, esses tipos clínicos, como a “personalidade coronariana”, “a personalidade asmática”, “a ulcerosa”, “a hipertensiva”, etc. O ulceroso, por exemplo, é um sujeito esforçado em realizar ambições. Para essa corrente teórica:

“(...) A síndrome ulcerosa se desenvolve como uma reação à frustração dos veementes desejos de dependência por meio do trabalho árduo e de aspirações. Não obstante, a maioria eram passivos e afeminados e expressavam seus desejos orais de um modo aberto” (ALEXANDER,1954, p. 77)8.

As pesquisas de Dunbar (1948) tentaram nessa linha de pensamento definir, a partir de estudos estatísticos, previsões por probabilidade de aumento das doenças nas décadas subsequentes e justificavam, com base nesses apontamentos, o aprofundamento das pesquisas em psicossomática e a definição de perfis de personalidade que predisporiam essas doenças. Exames psiquiátricos de rotina foram utilizados e implementados para verificar dificuldades emocionais que supostamente originavam o curso das doenças, bem como para estabelecer correspondência entre o tipo de perfil de personalidade em cada caso e as doenças que apareciam (DUNBAR, 1948).

Apesar de serem ainda aplicadas atualmente as idéias de Alexander em muitas pesquisas no meio médico, essa concepção personalista da psicossomática passa a ser repensada por parte de alguns psicanalistas que empenham-se com a questão, devido à experiência clínica que torna muitas vezes questionáveis essas teorias. A constatação de que “(...) um mesmo traço ou um conjunto de fatores de personalidade pode ser

8 “(...) El síndrome ulcerorose desarrolla como una reación a la frustración de los vehementes

deseos de dependencia por medio del trabaho arduo y de aspiraciones. Sin embargo, a maioria eran passivos y afeminados y expressaban sus deseos orales de un modo abierto” (Tradução nossa).

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encontrado em quadros clínicos diferentes, não sendo específico a um único tipo ou grupo de doenças (...)” (VOLICH, 2000, p. 90), foi um ponto determinante de discordância sobre as concepções da Escola de Chicago. Dentre esses fatores, podemos refletir acerca dessas caracterizações personalistas e concluir que, apesar do apoio teórico na psicanálise, essas teorias se afastam essencialmente da mesma, na medida em que estabelecem perfis psicológicos promovendo uma profilaxia dos pacientes psicossomáticos e universalizando, de maneira inconsistente (de acordo com o apontamento colocado acima por Volich), a correspondência entre determinadas doenças e determinados perfis psicológicos.

Essas pesquisas, de pouca penetração na atualidade, constituíram assim uma das principais correntes teóricas que apareceram no campo psicanalítico, dispostas a abordar o tema da psicossomática. As teorias que vigem atualmente na psicossomática, contudo, são aquelas representadas por P. Marty, as quais serão tomadas nesse momento como objeto destacado de discussão.

1.4 As perspectivas atuais: O Instituto de Psicossomática de Paris

As teorias em psicossomática têm, como apontamos anteriormente, diferentes referências, de várias linhas de pensamento. Diversos psicanalistas tentaram relacionar doenças somáticas com processos psíquicos e configuraram rumos teóricos específicos, ligados a novas linhas de pesquisa.

Surgiu então na França um grupo de médicos psicanalistas dispostos a tentar dar conta dos problemas somáticos que determinados pacientes apresentavam, peculiares à clínica médica no que diz respeito aos contextos de sua manifestação – doenças que, como apontamos, apareciam sem uma causa aparente ou que apareciam dentro de uma seqüência de acontecimentos na vida da pessoa. Esse grupo de analistas, dentre os quais se destacam M’Uzan, Fain, David e cuja principal referência é P. Marty, formou então na França o Instituto de Psicossomática de Paris (IPSO), onde se pratica até hoje pesquisas e tratamentos a pacientes que apresentam porventura essas peculiaridades.

Segundo esta corrente teórica, os pacientes em questão não são peculiares apenas do ponto de vista da doença e da medicina, mas principalmente do ponto de vista da própria clínica psicanalítica. De acordo exposições teóricas do IPSO (Cf.

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VOLICH, 1997) os pacientes em questão encontram grandes dificuldades em aplicar a regra fundamental da livre-associação de idéias e não apresentam uma demanda de análise consistente que justifique esse tipo de tratamento. As conclusões teóricas dos pesquisadores implicados com essas questões foram alcançadas fundamentalmente segundo um método de entrevistas de molde ‘psicanalítico’ em centros de atendimento receptores de indivíduos com patologias somáticas, donde se circunscreveu caracterizações típicas a esses pacientes, específicas à clínica psicanalítica, diferentemente contudo daquelas atestadas por Alexander acerca dos perfis de personalidade. Para Marty (1993), esses pacientes encaixam-se numa tipologia clínica de outra ordem. O paciente psicossomático é segundo Marty (ibid.) um sujeito afastado de experiências subjetivas e apresenta um discurso colado à objetividade, a experiências concretas, deixando pouco espaço para uma intervenção psicanalítica – “clássica” segundo Marty (ibid.). Os desenvolvimentos teóricos do IPSO inferem para esses pacientes um déficit psíquico constitucional que se faria notar pela precariedade discursiva e pela dificuldade desses pacientes em associar livremente. Marty concebe nesse plano um empobrecimento da atividade fantasmática e uma incapacidade de simbolização. Isso indicaria para o autor, uma “dificuldade para pensar” (ibid., 1993, p. 13) dos pacientes psicossomáticos. Atividades como devaneios, auto-reflexões, construções fantasmáticas, seriam quase inexistentes. Essas características, que apareceram em diversas experiências de tentativas de aplicação do dispositivo analítico aos pacientes com doenças de nível somático, levaram Marty a supor uma carência constitucional de representações, relativas a uma falha no desenvolvimento do aparelho psíquico que impede esses pacientes de estabelecer defesas psíquicas e produção de sintomas psiconeuróticos, “clássicos” segundo Marty (1993). Haveria nesses pacientes uma pobreza de nível representativo (idem, 1998), acarretando-se, devido a isso, uma grande dificuldade de associação de idéias, fato que interfere fundamentalmente, para os analistas do IPSO, no curso de uma análise dita “clássica” (MARTY, 1993).

Nessa medida, foram delimitados tipos clínicos característicos daquilo que Marty (1963a) denominou “pensamento operatório”, ao qual se atribui a referida pobreza discursiva e a fala pouco articulada. Marty definiu como pensamento operatório um tipo de funcionamento psíquico que não põe em jogo a dinâmica afetiva e que se reduz a um efeito puramente objetivo das idéias, em que não se verifica a

(29)

presença de conflitos psíquicos. Há nesses casos, para Marty (1993), uma limitação na atividade dos pensamentos, os quais estão sempre colados às experiências objetivas do dia-a-dia, o que inviabilizaria para esses indivíduos o estabelecimento de defesas psíquicas (ibid.). O pensamento operatório se define assim por uma precariedade na atividade dos pensamentos e uma pobreza na verbalização, supostamente causada pelo déficit de representações psíquicas circunscrito aos pacientes psicossomáticos.

O ponto nodal no qual Marty focaliza sua teoria psicossomática reside na incapacidade de assimilação satisfatória de uma irrupção das excitações internas (ibid.). Partindo do princípio de que certas atividades mentais como pensamentos, sonhos e fantasias “(...) protegem a saúde física individual (...)” (ibid., p.17), Marty inferiu que a lesão ao nível do órgão se estabelece devido à precariedade dessas atividades, as quais têm, para ele, função principal de promover elaboração das excitações internas e externas. O aparelho psíquico do ‘paciente somático’, por apresentar em sua constituição uma falha ao nível das representações, impossibilitaria a ligação das excitações somáticas com representações psíquicas, acarretando-se, com isso, uma desorganização libidinal que se acumula e encontra as vísceras do corpo como único caminho possível para descarga (idem, 1993).

Assim como o pensamento operatório está em jogo nos pacientes com pobreza representacional, podem aparecer nesses pacientes estados específicos característicos deste modelo teórico. A “depressão essencial”, conceito desenvolvido pela corrente teórica martyniana, é um estado clínico no qual há um “rebaixamento do tônus libidinal”, um desinteresse pelas coisas do mundo externo sem contudo haver referências objetais ou sentimentos de culpabilidade e autopunição. É uma pura perda de investimento e intensidades afetivas, desde as experiências, em princípio, mais alegres até os sentimentos mais trágicos (VIEIRA, 1997). Isso se traduz por uma certa ‘indiferença’ relativa aos movimentos do mundo externo e às intensidades que esses movimentos provocam. Os acontecimentos para esses pacientes se esgotam em sua objetividade, e o paciente não estabelece conexões com outras esferas de sua vida, tampouco apresenta uma variação afetiva frente a esses acontecimentos. Tais conclusões foram tiradas a partir de entrevistas com tais pacientes (MARTY, 1963b) quando esses apresentavam uma fala sucinta e pouco carregada de afeto. O paciente se mantém ‘indiferente’ e pouco tem a dizer a respeito de temas que causariam

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sofrimentos e variações afetivas. J. McDougall (1983), que participou ativamente do movimento psicossomático francês, fornece um importante relato que exemplifica essa fenomenologia:

“Ainda guardo claramente a lembrança da primeira vez em que tive a ocasião de participar de uma entrevista desse tipo, clássica do gênero: a de uma jovem que viera consultar um especialista em psicossomática em conseqüência de uma retocolite hemorrágica. Num primeiro momento, a paciente negava qualquer possibilidade de que um fator psicológico pudesse estar relacionado à doença. Só depois de muita insistência por parte do analista-consultante, ela pôde relatar os dias que precederam a eclosão da doença. Num tom de voz neutro, descreveu uma história de abandono repentino durante uma gravidez em condições particularmente dolorosas e angustiantes. Era como se ela não devesse revelar nenhum traço de emoção nem dar a impressão de atribuir muita importância a um acontecimento verdadeiramente catastrófico, sobre o qual não podia exercer o menor controle. Na época, parecia-me que, por razões difíceis de esclarecer, a paciente era incapaz de engajar-se num processo de luto ou de reagir diante de uma situação penosa e complicada. Em vez disso, um pouco a exemplo do lactante numa situação de abandono catastrófico por parte do objeto materno, devido à imaturidade de sua capacidade de pensar e reagir à perda, a paciente ficara fisicamente doente” (p. 159).

A leitura martyniana sobre esse tipo de disposição clínica demarca a questão do

déficit como elemento fundamental. Segundo tal concepção, o agravamento dessa

conjuntura, causada fundamentalmente pela deficiência do plano representativo e ausência de atividades fantasmáticas leva a uma desorganização progressiva na “economia psicossomática” do indivíduo, o que resultaria nada menos do que numa lesão de órgão (MARTY, 1993). Os conceitos de ‘pensamento operatório’ ‘depressão essencial’ e ‘desorganização progressiva’ estão igualmente relacionados à teoria do déficit de representações mentais, circunscritas aos pacientes em questão.

Marty (ibid.) classifica então esses pacientes como ‘pacientes somáticos’ e localiza-os num plano distinto, isolados dos chamados psiconeuróticos, ou na linguagem de Marty (1993) “neuróticos mentais clássicos”. A expressão “neurose mental clássica” utilizada por Marty refere-se àquelas neuroses que apresentam um quadro sintomatológico referido às investigações de Freud, pensadas por Marty como “clássicas”, em virtude da abordagem feita por Freud nos primórdios de suas teorias. Essas “neuroses clássicas” são as denominadas ‘psiconeuroses’ – histeria, fobia, obsessões. Tais neuroses são para Marty “mentais” justamente pelo fato de que a patologia se circunscreve ao plano mental. Dito de outra forma, na histeria, apesar de muitos de seus sintomas se situarem no corpo, os conteúdos psíquicos e a estrutura simbólica observada nesses sintomas são a chave de sua tessitura. Da mesma forma, as

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patologias obsessivas e fóbicas encontram no inconsciente o arranjo de sua constituição. Para Marty, no caso de afecções psicossomáticas, o inconsciente não assume qualquer papel, permanecendo teoricamente como conceito secundário, implicado unicamente nos fenômenos psiconeuróticos. Nessa direção, Marty (1998) caracteriza a questão do déficit representativo relativamente ao plano pré-consciente sob o ponto de vista de uma falha nas mentalizações.

O tema das mentalizações refere-se a uma questão de capacidade do aparelho psíquico em promover descargas ao nível “mental”, e não somático; se refere também ao estabelecimento de defesas frente ao fator pulsional que exige trabalho psíquico, como coloca Freud (1915a/1996) acerca do conceito de pulsão. Para Marty (1993), os neuróticos “clássicos” são “ricos” psiquicamente, ou seja, seu aparelho psíquico tem ampla capacidade de abarcar movimentos pulsionais, promover ligação das excitações somáticas com representações mentais e produzir escoamentos psíquicos das excitações ou sintomas referidos às psiconeuroses. Os sujeitos que apresentam discurso operatório são para Marty incapazes de estabelecer sintomas de nível “mental” (psiconeuroses), o que acarreta, como colocamos, uma descarga corporal geradora de patologias de nível somático. Os pacientes assim circunscritos ao quadro psicossomático são “neuróticos mal mentalizados” (MARTY, 1998).

Assim Marty, de acordo com sua teoria das mentalizações, categoriza tipos diferentes de neurose, ligados a essa concepção teórica. São elas as referidas neuroses

mentais “clássicas”, às quais Marty atribui bom nível de mentalização, “protegendo” o

indivíduo de descargas somáticas e patologias orgânicas; as neuroses de

comportamento em que de verificam limitações na capacidade de pensar e refletir e, por

isso, esses indivíduos “(...) não possuem outro recurso além da ação no seu comportamento para exprimir as diversas excitações exógenas e endógenas que a vida lhes propicia” (ibid., p. 30). Na irrupção de uma quantidade maior de excitações, sobreviriam nessas condições complicações somáticas diversas; as neuroses de

mentalização incerta, nas quais Marty observa variações substanciais na quantidade das

representações; e as neuroses mal mentalizadas, que se observa em indivíduos que apresentam ampla escassez discursiva frente à escuta clínica, supondo-se nisso um nível constitucional de pobreza do campo representativo (idem, 1993, 1998).

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Para a explicação dessa falha fundamental, Marty se remete aos estudos das relações mãe-bebê no desenvolvimento infantil, e registra o princípio dessa falha mental do ‘paciente somático’ na função materna. Para a psicossomática martyniana, a mãe “(...) falha como função de pára-excitação do bebê, o que constitui um traumatismo vivenciado na primeira infância, antes mesmo da aquisição da palavra” (FERRAZ, 1997, p. 32). Marty (1998) delineia esse quadro, concebendo a existência de alguns tipos de falha, algumas vezes do lado da criança e na maioria das vezes do lado da mãe:

“As insuficiências básicas das representações encontram sua origem no início do desenvolvimento do sujeito. Elas provêm: a) de uma insuficiência congênita ou acidental das funções sensório-motoras da criança, funções que constituem as bases perceptivas das representações (dificuldades visuais, auditivas ou motoras, por exemplo); b) de deficiências funcionais da mãe, da mesma ordem que as precedentes. Consideramos que uma mãe mais ou menos surda ou cega, por exemplo, não possa assegurar uma comunicação clássica com seu bebê ou sua criança; c) ou, e este é de longe o caso mais freqüente, de uma carência ou de uma desarmonia das respostas afetivas da mãe em relação a seu filho” (p. 22).

Tais fatores são apontados como razões básicas do déficit psíquico. Essa “desarmonia” nas comunicações mãe-bebê e nas respostas afetivas da mãe provocaria nessa concepção uma incapacidade de formações representativas no sujeito, devido ao fato de que a mãe não fornece as possibilidades para tal disposição. A função de pára-excitação da mãe no desenvolvimento infantil, sendo ela falha, acarreta a impossibilidade de um manejo posterior de excitações e uma dificuldade de transformação de excitações somáticas em libido psíquica, esta constituindo o plano representativo. A precariedade na articulação dos pensamentos (pensamento operatório) como resultado da escassez do plano representativo seria, portanto, a causa fundamental para a ocorrência das patologias psicossomáticas.

Os fenômenos psicossomáticos são compreendidos assim como resultado de excitações que não passaram pelo escoamento psíquico. Marty centraliza a eclosão psicossomática no ponto de vista econômico, a partir do qual se pensa uma quantidade isolada que não encontra escoamento psíquico e produz descargas corporais, comprometendo o sistema somático e lesionando o organismo como resultado de um fracasso das funções psíquicas. Isso está diretamente ligado à idéia de traumatismo, utilizada por Marty (1993) para caracterizar esses fenômenos.

“A descoberta dos traumatismos que foram a origem das doenças somáticas (...) constitui uma fase rica de investigação. (...) Os traumatismos permanecem nos quadros econômicos individuais que estabelecemos anteriormente. Oriundos de

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