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Escoamento e descarga no Projeto para uma Psicologia científica

No documento A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO (páginas 65-71)

CAPÍTULO II – A NEUROSE ATUAL: UMA RELEITURA

2.4 Escoamento e descarga no Projeto para uma Psicologia científica

Partindo do princípio da ‘inércia neuronal’, Freud (1895a/1996) estabeleceu um esquema para a compreensão dos processos de memória que viriam a se desdobrar em implicações complexas do aparato psíquico. O princípio da inércia neuronal de Freud

diz que os neurônios tendem a se livrar das cargas de estimulação, representadas pelo autor pela letra Q. Q representa a distinção entre a atividade e o repouso, o fluxo da energia, as quantidades de excitação e estimulação, sendo que Freud designou o símbolo Q para as quantidades referidas ao mundo externo, e Qn para as quantidades referidas aos estímulos endógenos.

Para Freud, o estudo da psicologia deve ter como centro das questões o problema da memória, o que justifica o motivo de seu empenho ao classificar diferentes designações para os processos psíquicos com a idéia de um sistema pensado a partir da teoria do funcionamento neuronal. Ele afirma:

“Uma teoria psicológica digna de consideração precisa fornecer uma explicação para a “memória”. Ora, qualquer explicação dessa espécie se depara com a dificuldade de admitir, por um lado, que, depois de cessar a excitação, os neurônios fiquem permanentemente modificados em relação ao seu estado anterior, ao passo que, por outro lado, não se pode negar que as novas excitações, em geral, encontrem as mesmas condições de recepção que encontraram as excitações precedentes” (FREUD, 1895a/1996, p. 351).

Partindo desse princípio, Freud introduziu a idéia de neurônio catexizado, ou seja, investido de energia, “excitado”. Para solucionar então o problema da memória, Freud estabelece, a princípio, duas classes de neurônios: aquela que tem a característica da permeabilidade e aquela que tem a característica da impermeabilidade, respectivamente representadas por ele com os símbolos  e . Para esse esquema, o autor introduziu a idéia da existência de vias de condução e de barreiras de contato, que estariam ligadas à segunda função principal do sistema nervoso: estabelecer

resistência à passagem da excitação. Concomitante à característica de cessação dos

estímulos – função primeira – encontram-se as resistências balizadas pela distinção entre os neurônios permeáveis e impermeáveis. As barreiras de contato se fariam sentir no terreno dos neurônios impermeáveis, que só permitem a passagem da Qn com dificuldade ou parcialmente. Os neurônios  (permeáveis) estariam assim ligados às estimulações externas, enquanto que os neurônios  (impermeáveis) estariam ligados às estimulações endógenas. A partir desse princípio, a memória seria caracterizada por

facilitações (Bahnung, no alemão) produzidas pela passagem das quantidades de

excitação no sistema . Essas quantidades deixariam impressões permanentes que facilitariam novas passagens de Qn no sistema impermeável. A memória seria definida pela diferença entre as facilitações, atestando as peculiaridades dos elementos

característicos da memória, já que, se fossem as facilitações idênticas entre si, não haveria o fenômeno da memória. As passagens das cargas de estimulação produziriam assim diferentes impressões, permanentes no sistema , produzindo trilhas para a passagem de novas quantidades de estimulação. A facilitação serve, segundo Freud, ao princípio fundamental do sistema nervoso, que é promover a descarga dessas quantidades.

O esquema da memória seria então representado pela diferença entre as facilitações no sistema impermeável, bem como pela freqüência com que a impressão se repete nesse sistema. A facilitação é o resultado, assim, da quantidade (Qn) que passa pelo neurônio no processo excitativo e do número de vezes que isso se repete. Freud diz: “Daí se vê, portanto, que Qn é o fator operativo e que a quantidade mais a facilitação são ao mesmo tempo algo capaz de substituir Qn” (p. 353). Nessa perspectiva entende-se que a memória constitui-se como uma evocação das marcas deixadas pelo estímulo que substituem o próprio estímulo – ou seja, seu fator causal.

É importante ainda frisar um ponto fundamental a respeito do princípio da inércia neuronal. O sistema nervoso não pode extinguir de todo a Qn já que, a isso, sobreviria a extinção de todo o aparelho. Nesse sentido, o sistema deve funcionar de modo que se mantenha um certo nível de Qn, reduzindo ao máximo, contudo, a quantidade de estimulação. Com essa idéia, Freud deu seu primeiro passo para introduzir o princípio fundamental do psiquismo, a saber, o princípio de prazer. O princípio de prazer circunscreve-se pela característica de manter o mais baixo possível o nível da tensão, e assume a função de regulação da quantidade e da passagem da excitação, sem permitir sua descarga total.

Freud caracteriza todo o esquema da impermeabilidade, da permeabilidade e da facilitação, na sua implicação com a quantidade. O problema da qualidade contudo, aparece como questão para Freud. Ele se pergunta: “Onde se originam as qualidades?” (p. 360). À questão da qualidade, é designado então um outro sistema neuronal, o sistema . Assim, este último, ligado ao campo da consciência e das sensações, estaria sujeito a quantidades reduzidas de Qn, e seria caracterizado pela permeabilidade. As passagens de Qn não poderiam, contudo, deixar marcas no sistema  – visto que este se caracteriza pela permeabilidade e pela inexistência de barreiras de contato. Qn seria então aproveitada mediante sua segunda característica: a característica temporal.

Assim, a passagem de Qn não teria apenas a característica quantitativa, mas também

temporal, em que, na consciência, se verificaria o efeito, nos neurônios , dos

períodos de passagem da Qn em . Tal efeito caracterizaria nos sistemas psíquicos a chamada qualidade, ligada ao campo da consciência. Freud esclarece:

“A hipótese (...) presume que os neurônios  sejam incapazes de receber Qn, mas que, em compensação, se apropriem do período de excitação, e que nesse estado de serem afetados por um período enquanto são enchidas de um mínimo de Qn constitui a base fundamental da consciência. É claro que os neurônios  também possuem o seu período; mas ele é desprovido de qualidade ou, mais corretamente, monótono. Os desvios desse período psíquico que lhes é específico chegam à consciência como qualidades” (p. 362).

As qualidades seriam definidas então pela categoria tempo. Os processos quantitativos em  chegam a  como qualidades por meio dos períodos da excitação em . Dito de outra forma, as sensações, por exemplo, de prazer e desprazer são caracterizadas como expressão qualitativa em  do aumento ou diminuição das quantidades em . O prazer seria a sensação de descarga em . No sistema  encontra- se a característica da promoção da descarga, o princípio fundamental do aparelho de Freud. Nesse sistema, não existem qualidades, mas trilhamentos por onde passam cargas de Qn – nos quais se localizam os fenômenos de recordação.

O aparelho psíquico se constituiria nessa montagem, o que acentua o caráter específico das relações entre as imagens mnêmicas e as quantidades de excitação. Pode-se concluir com esse arranjo teórico que as imagens mnêmicas são resultado da

passagem de excitação em , no qual se localizam impressões permanentes. Tais impressões assumem caráter associativo posto que constituem trilhamentos através dos quais são escoados os excedentes de excitação.

No ínterim dessas especulações, Freud estabeleceu, então, uma teoria da relação objetal, relacionada à experiência de satisfação. A questão da descarga é analisada por Freud como um movimento que não implica apenas um indivíduo, mas que inclui um outro indivíduo. Segundo o autor, a descarga pode apenas ocorrer mediante uma alteração do mundo externo, posto que o organismo, no primado de suas experiências, não pode exercer por si só uma ação que provoque essa descarga. Marcado pelo desamparo, o infante depende da ação específica de um outro semelhante experiente em sua direção, promovendo a descarga e a satisfação. Tal experiência deixa marcas no sistema , representadas pela imagem mnêmica do objeto agradável. Na ativação do

desejo, a imagem do objeto será evocada, o que coloca em movimento todo o aparelho psíquico. Na ausência do objeto, ou na sua impossibilidade, o aparelho psíquico é impelido a trabalhar no sentido de alcançar a satisfação, ainda que parcial, pela via da associação ideacional por semelhança ou contiguidade. Tal é o trabalho do aparelho psíquico pensado por Freud: buscar o objeto fundamental de satisfação.

Freud estabelece então que o funcionamento do aparelho psíquico parte de um princípio fundamental, o “princípio de prazer” articulado ao que ele denominou “processos primários” e “processos secundários”. Tais processos se relacionam à capacidade do aparelho psíquico em fazer distinção entre aquilo que é da ordem da percepção e aquilo que é da ordem de uma idéia, ou lembrança. Assim, a lembrança de um objeto agradável em  pode aparecer como percepção real para o sujeito se não houver uma indicação de realidade no sistema , ou seja, se não houver a indicação qualitativa da diferença entre uma lembrança (idéia) e uma percepção. A lembrança é reproduzida por alucinação, até que o sistema  forneça a indicação, no campo das

qualidades, da diferença entre uma imagem mnêmica e uma percepção. Os processos

primários seguem, portanto, a orientação da descarga das excitações em : ali não há distinção entre o que é uma idéia e o que é uma percepção.

Os processos que indicam qualitativamente os elementos ideativos são aqueles descritos como secundários, os quais aparecem submetidos a movimentos de inibição no ego – definido nesse momento por Freud como uma organização que interfere nas passagens de Qn e que representa um grupo de neurônios constantemente catexizado. A existência do ego resultaria na inibição dos processos psíquicos primários, na medida em que ele interfere nas passagens da quantidade, como catexias “colaterais” que não permitem o livre acesso das quantidades entre os neurônios.

A indicação de realidade será fornecida quando tais investimentos representam versões “atenuadas”, por meio da inibição, ou seja, quando a catexia encontra barreiras ou inibições para sua descarga total. Os processos secundários estão relacionados a essa indicação de realidade, ou seja, indicações de que a idéia do objeto (Vorstellung, no alemão) não corresponde à sua percepção. O parelho psíquico trabalha, portanto, no sentido de se livrar das cargas de estimulação; em outras palavras, no sentido de encontrar o objeto primordial da experiência de satisfação, capaz de fornecer a descarga das excitações internas. O princípio de prazer, se define então, pela propensão do

aparelho psíquico em regular a tensão interna, mantendo-a no mais baixo nível possível.

Essa montagem teórica define basicamente o funcionamento do aparelho psíquico em sua constituição primária. A partir disso, Freud desenvolveu hipóteses articuladas a essa teoria, concernentes às psicopatologias, bem como ao funcionamento normal do aparelho.

Uma questão importante, que aparece nesse escrito e que nos chama atenção, concerne à menção do autor à experiência que, se podemos afirmar, vai na contramão da satisfação mediante a descarga: a experiência da dor. Tal experiência está ligada a quantidades excessivas de excitação e estimulação (Qn) que “rompem os dispositivos de tela em ” (FREUD, 1895/1996, p. 372), ou seja, ultrapassam as proteções dos órgãos de percepção de maneira violenta. Freud então afirma:

“Quando a imagem mnêmica do objeto hostil é renovadamente catexizada por qualquer razão – por nova percepção, digamos – surge um estado que não é o da dor, mas que, apesar disso, tem certa semelhança com ela. Esse estado inclui o desprazer e a tendência à descarga que corresponde à experiência da dor. Como o desprazer significa aumento de nível, deve-se perguntar qual a origem dessa Qn. (...). Na reprodução da experiência (da dor) a única Q adicional é a que catexiza a lembrança (...)” (p. 372).

Para esta questão, Freud lança mão da idéia de que “o desprazer é liberado do

interior do corpo19 e de novo transmitido” (p. 372). Supõe então a existência de neurônios “secretores”. O autor esclarece:

“(...) devem também existir neurônios “secretores” que, quando excitados, provocam no interior do corpo o surgimento de algo que atua como estímulo sobre as vias endógenas de condução de  – neurônios que, dessa forma, influenciam a produção de Qn endógena e, consequentemente, não descarregam

Qn, mas fornecem-nas por vias indiretas. A esses neurônios chamaremos de

“neurônios-chave” (...). Como resultado da experiência da dor, a imagem mnêmica do objeto hostil adquiriu uma facilitação excelente para esses neurônios-chave, em virtude da qual [a facilitação] libera então desprazer no afeto” (ibid., p. 373).

Os neurônios-chave aparecem como elemento crucial no que se refere à questão da descarga, na medida em que produzem excitação (Qn endógena) ao invés de descarregá-la. Isso nos remete inevitavelmente ao campo das neuroses ‘atuais’, na medida em que a excitação aparece como um excedente inarticulado, inviabilizado psiquicamente. Tal conclusão está ligada à linha de raciocínio na qual se localizam

essas considerações. Freud coloca então: “Essa hipótese intrigante (dos neurônios- chave), mas indispensável, é confirmada pelo que ocorre no caso da liberação sexual” (ibid.). Tal indicação refere-se a nada mais do que a liberação de excitação sexual, excessiva nas neuroses atuais.

A questão toma relevância capital ao concluirmos que, no jogo das conexões representativas, a Qn, ao invés de ser escoada pela via da facilitação em , é novamente produzida, chegando a atingir níveis traumáticos. No “Projeto para uma psicologia científica”, o caso da dor aparece como ponto central desse processo. Caberia a nós, estabelecer uma articulação entre a dor, o trauma e o excedente de excitação o qual, se podemos afirmar, se acha impossibilitado de ligação psíquica, ou seja, de conexão com outros conteúdos mnemônicos por associação no plano representativo. Nosso interesse no “Projeto” de Freud se circunscreve à idéia de que o aparelho psíquico possa conter em si mesmo um excesso impossível de abarcar. É importante que se coloque em pauta, ainda, os avanços de Freud concernentes à questão do trauma, que reaparece em 1920 em “Além do princípio do prazer”, texto no qual Freud afirma o problema da pulsão de morte como fundamental para o avanço do seu pensamento. Tais questões serão reintroduzidas a seguir na articulação desses balizadores teóricos.

No documento A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO (páginas 65-71)