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O “atual” em questão

No documento A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO (páginas 61-65)

CAPÍTULO II – A NEUROSE ATUAL: UMA RELEITURA

2.3 O “atual” em questão

Nossa problemática se configura por meio de questionamentos a respeito daquilo que constantemente frisamos: a evolução do pensamento de Freud e as transformações conceituais que isso abarca. Quando Freud trabalhou a questão da neurose atual em 1898, fazendo distinção entre ela e a psiconeurose, ficou claro que seu empenho estava em frisar que a questão sexual é o ponto central em todas as manifestações neuróticas, com a ressalva de que na neurose atual trata-se de um desvio da libido para a esfera somática, e na psiconeurose trata-se de uma formação sintomática substitutiva à libido recalcada.

A construção teórica assim definida a partir das articulações freudianas abre-nos questões a respeito dos fatores presentes nesses processos. Quando Freud afirma que a neurose atual é o resultado de um desvio da libido de sua elaboração psíquica, localiza inicialmente esta questão no simples ato sexual e numa aplicação “insatisfatória” das excitações. Para resolver essas questões, localiza no “coito interrompido” a principal raiz desse desvio, ao lado da abstinência sexual e da masturbação excessiva. Contudo, tais concepções permanecem para nós passíveis de revisão, na medida em que o sexual em psicanálise passa posteriormente a não se limitar apenas ao coito, tampouco a uma simples aplicação da libido, boa ou ruim, nos diversos níveis de relação do sujeito com o objeto de satisfação. Cabe pensar se se pode estipular efetivamente a existência de uma relação sexual absolutamente satisfatória, sem entraves para o sujeito na sua relação com o objeto. Conforme demonstrou o próprio Freud no desenvolvimento de sua obra, o objeto da pulsão é aquilo que há de mais variável (FREUD, 1915a/1996) e o sujeito, em meio à constituição civilizatória, tem de abrir mão e renunciar parcialmente às exigências da sexualidade – fator localizado como constitutivo da própria existência humana no mundo civilizado, e ao mesmo tempo como problema fundamental de toda a neurose (FREUD, 1930/1996). Nessa perspectiva, corrobora-se a idéia de que não há como opor fatores “atuais” e “históricos” no que concerne ao campo sexual. Assim como Freud (1906/1996) substituiu a idéia de “trauma sexual infantil” por “infantilismo da sexualidade”, propomos que a idéia de “coito interrompido” seja substituída pela idéia de “excesso libidinal impedido de escoamento”, ou “interrupção no curso da excitação”. Isso deixa por um momento de lado a concepção fatual do coito, e exige

uma reconfiguração teórica sobre o que se concebe como ‘atual’ em psicanálise. Portanto, ainda se faz necessária a distinção entre sintomas efetivamente orgânicos ou somáticos e sintomas que não apresentam qualquer alteração bio-estrutural, como na histeria. Mas tal distinção não abandona a concepção do ‘atual’ e do ‘histórico’ como fatores imbricados.

Sob esse prisma, tendemo-nos a pensar a questão da ‘atualidade’ para além da idéia fatual do coito interrompido, ou da aplicação da libido. Essa idéia, na verdade, não era definitiva nem mesmo para Freud. A determinação de uma sintomatologia somática não era necessariamente localizada na “forma” como o indivíduo praticava o coito. Numa carta dirigida a Fliess, Freud (1892-1899/1996) demonstra seu entusiasmo quanto à conclusão acerca do coito interrompido, mas introduz dúvidas quanto às circunstância em que essa prática poderia ser realmente lesiva:

“As coisas se complicam cada vez mais, à medida que chega a confirmação. Ontem por exemplo, vi quatro casos cuja etiologia, como evidenciado pelos dados cronológicos, só poderia ser o coitus interruptus. Talves eu possa mantê-lo interessado, fazendo um breve relato desses casos. Eles estão longe de ser uniformes. (...)

(3) Homem, 42 anos: filhos de 17, 16 e 13 anos. Esteve bem até há seis anos. Aí, com a morte do pai, súbito ataque de angústia com palpitações, temores hipocondríacos de câncer da língua; vários meses depois, um súbito ataque com cianose, pulso intermitente, medo de morrer, etc.; a partir de então, fraqueza, vertigem, agorafobia, alguma dispepsia. Este é um caso de neurose de angústia pura, acompanhado de sintomas cardíacos subsequentes a uma emoção; contudo o coitus interruptus foi aparentemente tolerado com facilidade durante dez anos” (p. 230).

Nessa pequena passagem, encontrada nas primeiras considerações da busca teórica de Freud, localiza-se uma questão que ultrapassa as dimensões simplistas do coito interrompido. Fica claro que a disposição subjetiva desse indivíduo na sua relação com o pai representa talvez um importante elemento para os desdobramentos da sintomatologia somática, sem dúvida atrelada ao problema “atual” da excitações corporais, mas também remetida a questões históricas da relação do sujeito com o outro. Freud, contudo, permaneceu ao longo do tempo detido na problemática do ato sexual, pura e simplesmente, como fator principal dos sintomas somáticos, como um fenômeno puramente “mecânico”. Esse fato confirma que o desenvolvimento do conceito de neurose atual permaneceu numa certa estagnação, e revela claramente a necessidade do pensador em estabelecer desde o princípio o divisor de águas necessário entre o ‘atual’ e o ‘histórico’, para então, legitimar sua empreitada na solução das

neuroses “psíquicas” (psiconeuroses). Tal “divisor”, Freud estabeleceu como sendo a prática sexual em sua objetividade. A partir disso, pôde delimitar aquilo que concerne a uma ‘neurose atual’ e aquilo que concerne a uma ‘psiconeurose’. Essa delimitação inicial não dissipa, contudo, a revisão do conceito de neurose atual que aparece no pensamento do próprio Freud, apesar de não ter sido aprofundada. Como colocamos, a idéia de uma “aglutinação” entre a psiconeurose e a neurose atual traz para nós a possibilidade de leituras renovadas sobre esses aspectos.

Essas possibilidades de renovação teórica nos levam a retomar a discussão relativa à teoria de P. Marty, que se baseia no princípio da neurose atual. Conforme apontamos no primeiro capítulo, a separação entre psicossomática e psiconeurose estabelecida pelo Instituto de Psicossomática de Paris não condiz com as questões concernentes ao problema da descarga somática na obra de Freud. Para Marty, a descarga somática está subsumida a um mal funcionamento do aparelho psíquico, modelo que aparece como fundamental na sua teoria. Para esta corrente (Cf. MARTY, 1993), há um “desligamento” da atividade fantasmática, pelo fato da carência de recursos psíquicos, que resulta numa impossibilidade de elaboração das excitações e da formação de sintomas efetivamente psiconeuróticos, ou da apresentação de características que competem à psiconeurose. Marty (1998) infere, nessa direção, a

inexistência de conflitos psíquicos em pacientes “psicossomáticos”. A questão da

atividade psíquica, supostamente desligada na neurose atual, bem como nos fenômenos psicossomáticos, permanece para nós, entretanto, como um problema. Na evolução do pensamento de Freud, fica claro que a atividade psíquica não se contradiz ao aparecimento de uma sintomatologia somática, mas ao contrário, a esta se articula. Destacamos, nesse contexto, um apontamento de Freud num momento muito posterior, em 1925, que avaliamos imprescindível para esta discussão. Em “Estudo Autobiográfico” (1925/1996), referindo-se aos primórdios de suas teorizações, ele afirma:

“Desde aquela época não tive oportunidade de voltar à pesquisa das ‘neuroses atuais’, nem essa parte do meu trabalho foi continuada por outro. Se hoje lanço um olhar retrospectivo aos meus primeiros achados, eles me surpreendem como sendo os primeiros delineamentos toscos daquilo que é provavelmente um assunto muito mais complicado. Mas no todo, ainda me parecem válidos. Teria ficado muito satisfeito se tivesse sido capaz, posteriormente, de proceder a um exame psicanalítico de mais alguns dos casos de neurastenia juvenil, mas infelizmente não surgiu a ocasião. A fim de evitar concepções errôneas, gostaria

de esclarecer que estou longe de negar a existência de conflitos mentais e de complexos neuróticos na neurastenia.18 Tudo que estou afirmando é que os

sintomas desses pacientes não são mentalmente determinados ou removíveis pela análise, mas devem ser considerados como conseqüências tóxicas diretas de processos químicos sexuais” (p. 32).

Freud faz questão nesse trecho de dizer que não nega a existência de “conflitos mentais” e “complexos neuróticos” na neurose atual, o que é diametralmente oposto à lógica estabelecida por Marty (1998), já que este infere a inexistência de conflitos nos pacientes “psicossomáticos”.

Analisando, assim, de maneira mais aprofundada o pensamento de Freud, este diz, por outro lado, que a neurose atual não é “mentalmente determinada”. Pensemos se isto não deve ser examinado com cuidado. A neurose atual, como ele aborda, é o resultado de um processo que não passou pelo recalque nem pelas operações de condensação e deslocamento tal como ocorre na histeria, na neurose obsessiva e na fobia (Cf. FREUD, 1917/1996). Ora, se há na lógica da psiconeurose uma questão histórica, é porque esses referidos processos se fazem sentir claramente no sintoma psiconeurótico. Em outras palavras, poderíamos dizer que os sintomas psiconeuróticos imprimem ao sujeito uma historicidade, ali mesmo, em sua própria estrutura, o que não aparece nas “neuroses atuais”. Isso não invalida a hipótese de que o sintoma “atual” esteja vinculado efetivamente a “conflitos”, “complexos neuróticos” ou “atividades psíquicas”, conforme “não nega” Freud. A relativização do termo “atual” significa, sob esse prisma, conceber uma “descarga” corporal vinculada não apenas a fatores atuais. É preciso indagar até que ponto a neurose “atual” não estaria também vinculada, de uma forma mais complexa, a questões históricas e à experiência do sujeito na sua relação com o outro. Se, conforme expomos, a historicidade significa um arranjo de conexões associativas do plano fantasmático, ou a repetição de experiências traumáticas condicionadas pela pulsão de morte, nos encontramos portanto inclinados a pensar a questão da atualidade como algo que integra efetifamente o campo histórico, em que passado e presente tomam uma configuração unívoca. Nessa configuração, temos que o “atual” na neurose deve ser recontextualizado, sob o fato de que a neurose atual se acha entrelaçada com a psiconeurose e de que se coloca em pauta a idéia de um vínculo desses fenômenos com fatores históricos. Sob esse aspecto, nos afastamos da idéia de um funcionamento psíquico constitucional para pacientes com fenômenos ditos

“psicossomáticos”. A neurose atual é núcleo da psiconeurose e fica claro, nesse âmbito, que a atividade psíquica está longe de constituir uma “proteção” para o sistema somático. Mais do que isso, a neurose “atual” passa a ser concebida unicamente na sua ligação com a dinâmica e os sintomas psíquicos, os quais abarcam necessariamente questões subjetivas e atividades psíquicas cuja riqueza não aparece como fator de oposição para um sintoma somático, mas conforme frisamos, como fator de interação. Procuramos assim pensar essas questões sob o ponto de vista da própria cadeia associativa e de sua relação com a idéia de escoamento e descarga, visto que o problema da neurose “atual” reside num impedimento no escoamento das excitações.

Essa questão nos remete irremediavelmente ao empenho de Freud para resolver o problema do funcionamento psíquico no “Projeto para uma psicologia científica” (1895a/1996), trabalho no qual o autor inclinou-se a delinear os processos mentais circunscritos ao modelo de arco reflexo, a partir de especulações sobre o funcionamento neuronal. A constituição do aparelho psíquico foi minuciosamente pensada por Freud nesse escrito, o qual aparece-nos como fundamental para se pensar a idéia de escoamento, já que o autor circunscreve na função primeira do aparelho mental a descarga das excitações pela via da facilitação no sistema de memória. É importante que se coloque em destaque esse escrito, portanto, no sentido de avançar nessa temática e de articular os princípios do seu pensamento com as questões aqui introduzidas.

O “atual”, portanto, é ainda um termo em questão, visto que se coloca em destaque a imbricação entre os sintomas neuróticos em geral, e que se pensa, a partir

do dizer de Freud, “atualidade” e “historicidade” como fatores contínuos, e não,

opostos. Desejamos nesse contexto delinear o pensamento do autor nos escritos ligados a essa questão, com o intuito de se abordar o problema da “atualidade” para além do contexto objetivo e mecânico do ato sexual.

No documento A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO (páginas 61-65)