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Freud e o estudo das afasias

No documento A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO (páginas 40-43)

1.4 As perspectivas atuais: O Instituto de Psicossomática de Paris

1.4.1 Freud e o estudo das afasias

A afasia é um distúrbio da linguagem que se divide, segundo a neurologia de Wernicke (FREUD, 1891/1977), entre afasia sensorial – perda da compreensão da linguagem, em que permanece contudo a fala articulada –, afasia motora – perda da capacidade de pronunciar as palavras, permanecendo a compreensão do que é dito pelos outros – e afasia de condução – resultado de lesões das vias de condução entre os centros sensoriais e motores. (FREUD, 1891/1977).

A posição de Freud a respeito da localização cerebral das afasias divergia da dos principais investigadores de sua época. Diferentemente de Wernicke e Lichtheim, que consideravam a afasia decorrente da destruição de centros sensoriais (afasia sensorial) e motores (afasia motora) ou da destruição das vias de ligação entre esses centros (afasia de condução), Freud afirmava a necessidade de existência de relações do aparelho de linguagem com as demais áreas do cérebro, não apenas restritas a esses centros (área de Broca e área de Wernicke)10. Freud assim, posicionava-se numa visão não tão localizacionista na acepção das funções cerebrais da linguagem e dos seus distúrbios. Freud entende que as funções da linguagem não estão localizadas exclusivamente em partes isoladas do cérebro, mas estão ligadas a processos que tomam o cérebro como um todo. Essa noção de processo é congruente à concepção de Freud de que não pode haver distinção entre sensação e associação, de que a associação é imediata à sensação. Não pode haver, assim, uma localização cerebral diferente para cada um desses fenômenos, já que eles se tratam de um mesmo processo. Nesse sentido, entende-se que não haja dualidade entre a impressão e a associação, ou seja, a associação é intrínseca à sensação, à impressão e à representação (GARCIA-ROZA, 1991a).

Na mesma linha de pensamento, Freud (1891/1977) entende que “o psíquico é assim um processo paralelo ao fisiológico” (p. 56), concomitante e dependente, sem haver, contudo, relação de causalidade dos processos fisiológicos aos psíquicos. Dito de outra forma, o correspondente fisiológico das representações não está localizado num

10A área de Broca é considerada como campo cerebral responsável pelas funções motoras, e a área de

ponto específico do cérebro. Sendo assim, a representação não está localizada numa célula nervosa, ou seja, o correspondente fisiológico de uma representação é justamente algo da natureza de um processo. Freud demonstra, portanto, por meio de observações clínicas, que a afasia tem muito mais a ver com uma perturbação funcional do cérebro do que com fatores anatômicos de lesões localizadas em centros determinados do cérebro. Esse é o interesse fundamental de Freud neste trabalho. Contudo, ele introduz noções fundamentais sobre a idéia de representação que vieram a desdobrar importantes reflexões teóricas posteriores no campo psicanalítico, fundamentais para a compreensão dos processos psíquicos.

Já no seu estudo sobre as afasias Freud operou uma importante distinção entre as representações das coisas e as representações das palavras, no sentido de circunscrever como se dão as relações entre elas para a explicação dos distúrbios da linguagem nas afasias. No campo da palavra Freud aponta quatro elementos para sua composição: a

imagem acústica, a imagem motora da linguagem, a imagem da leitura e a imagem motora do escrever, sendo a palavra constituída então de elementos acústicos, visuais e

cinestésicos (ibid.). A associação desses elementos formam uma representação

complexa, a qual se associa com outras representações de palavra caracterizando o que

Freud (ibid.) chamou de superassociação.

As representações assim circunscritas ao plano das palavras ganham denotação quando, por sua vez, associadas às representações de coisas, que Freud chamava nessa época de “representação objectual”. “(...) a representação objectual é um complexo associativo das mais diversas representações visuais, táteis, cinestéticas, etc.” (ibid., p. 71). Freud defende a tese de que as representações de palavras se acham ligadas às representações objectuais através do elemento acústico da palavra com o elemento visual das associações de objeto. Uma representação se constitui, assim, como um

complexo associativo entre elementos de diversos alcances cerebrais (visuais, táteis,

cinestéticos). Essa idéia, como aponta Garcia-Roza (1991a) é “um abandono do conceito de impressão” (p. 46), no sentido de que as representações objectuais não possuem um correspondente fisiológico ponto a ponto, mas constituem um complexo

associativo que engloba diversos elementos sensoriais de diferentes campos cerebrais.

Freud então assume, neste texto, suas posições como neurologista, demonstrando uma visão não localizacionista dos fenômenos de linguagem. Assim para

Freud, as afasias podem ser delimitadas, não em afasia sensorial, motora e de condução, localizadas em áreas específicas segundo Wernicke e Lichtheim, mas em afasias de

primeira ordem ou afasia verbal, em que a perturbação ocorre entre os elementos

intrínsecos da representação da palavra; a afasia simbólica ou “assimbolia”, na qual aparece uma perturbação entre a representação da palavra e a representação objectual; e a agnosia, na qual se verifica uma perda de capacidade de se reconhecer as coisas do mundo externo.

O interesse de Freud pela noção de representação no seu estudo das afasias está relacionado fundamentalmente com as concepções das funções cerebrais da linguagem e seus distúrbios, mas rendeu-lhe grandes desdobramentos e importantes bases para a sua posterior conceituação do inconsciente.

Em seu artigo “O Inconsciente”, datado de 1915, Freud voltou a estabelecer a distinção entre a representação de palavra e representação de coisa (antiga representação objectual). Aqui, ele coloca que o que se pode apreender do inconsciente é que nele há apenas representações de coisas, as quais consistem de “(...) traços de memória mais remotos” (p. 206) derivados das imagens das coisas. De acordo com as colocações de Freud, as representações das coisas consistem, não da cópia da imagem da coisa, a impressão direta da coisa, mas de traços relativos a essa imagem, que tomam uma certa autonomia em relação à coisa percebida. O inconsciente – diz Freud (ibid.) – “(...) contém os investimentos da coisa dos objetos, os primeiros e verdadeiros investimentos objetais” (p. 206). Em contrapartida, no campo do pré-consciente, acham-se ligadas as representações das coisas com as representações das palavras que lhes correspondem.

A noção de representação tomou assim, a partir do trabalho de Freud sobre as afasias, grande importância para a posterior apreensão do inconsciente e para a explicação dos processos psíquicos no campo psicanalítico. Essa noção desdobrou-se ainda em concepções do aparelho psíquico nos estudos dos fenômenos psicossomáticos realizados pela Escola de Psicossomática de Paris, orientados por Pierre Marty, o que constitui aqui o assunto central de nossa argumentação. A confrontação entre Freud e Marty, exposta a seguir, nos fornece elementos para repensarmos a questão das “representações” no estudo da psicossomática e a discutir de maneira mais aprofundada

o modelo de ‘precariedade psíquica’ oferecido por Marty para os quadros psicossomáticos.

No documento A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO (páginas 40-43)