• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – A NEUROSE ATUAL: UMA RELEITURA

3.1 Freud e Ferencz

As teorias primordiais da psicossomática, por nós apresentadas desde os delineamentos de Groddeck em sua relação peculiar com a psicanálise, teceram caminhos os mais variados, os quais visavam constituir planos específicos de abordagem “psicossomática”, segundo princípios diferenciados. Vimos no pensamento de Groddeck uma clara apropriação do modelo sintomatológico da histeria e uma isomorfia entre os fenômenos concernentes ao “retorno do recalcado” e os fenômenos de adoecimento orgânico. Com Alexander, que fundamenta sua crítica ao pensamento isomórfico centrando-se na idéia de uma interferência de ordem emocional no funcionamento neuro-vegetativo, identificamos um pensamento categorizante no que se refere ao ponto de vista personalista ligado a afecções orgânicas predeterminadas pela configuração psicológica de cada indivíduo. Na contramão desses dois pensamentos, P. Marty declara uma insuficiência psíquica, característica de um funcionamento deficitário das “proteções” e do “equilíbrio” psicossomático relacionado ao que denominou “economia psicossomática” (MARTY, 1993).

Baseados no modelo da neurose atual, tanto Alexander quanto Marty correlacionaram descargas subcorticais do sistema neurofisiológico ao funcionamento psíquico, de forma, contudo, fundamentalmente diferenciada. A teoria dos perfis de personalidade delineados pela escola de Chicago que, como vimos (Cf. VOLICH, 2000), não condizem com o que a prática clínica revela, parece se distanciar radicalmente da questão freudiana da neurose atual e da problemática fundamental da neurose propriamente dita no que diz respeito aos processos inconscientes. A teoria de Freud concerne a uma linha de pensamento que não parece visar explicações do aparelho psíquico sob aspectos psicológicos baseados em “perfis de personalidade”, mas colocar em pauta os embates do conflito psíquico humano na civilização, marcado pela frustração relativa à renúncia das exigências pulsionais (FREUD, 1930/1996).

De uma forma diferenciada, Marty definiu, por sua vez, o modelo de descarga psicossomática apoiado no princípio de que a riqueza de atividade psíquica “protege” a

saúde física, o que contradiz radicalmente as considerações de Freud sobre as questões etiológicas das neuroses atuais, e das neuroses em geral.

A psicossomática, tendo sido formalizada pela Escola de Chicago como campo específico de investigação (ALEXANDER, 1954), encontrou suas referências não apenas na obra freudiana, mas também nas considerações de um importante autor, contemporâneo a Freud, que surgiu em meio ao desenvolvimento das idéias psicanalíticas. Ferenczi, na sua colaboração aos avanços da teoria freudiana, foi o primeiro psicanalista a falar de “neurose de órgão”, podendo-se identificar nisso seu interesse relativo à dinâmica pulsional que se encontra em jogo em determinadas manifestações orgânicas (FERENCZI, 1926/1993). Esse termo – “neurose de órgão” – não se refere a nada mais do que a manifestações relativas à neurastenia, bem como à neurose de angústia, anteriormente circunscritas por Freud ao paradigma da ‘neurose atual’. É interessante contudo notar que Ferenczi não contradiz em nenhum aspecto as considerações de Freud e, na mesma linha de pensamento, contribui para o avanço dessas questões, principalmente no que diz respeito às relações entre as neuroses em geral. Este autor inicia o texto “As neuroses de órgão e seu tratamento” afirmando que “Numerosas doenças correntes têm origem psíquica mas manifestam-se por uma disfunção real de um ou de vários órgãos” (p. 377). Sua visão sobre determinados movimentos clínicos que atestam uma relação entre o psíquico e o somático, se circunscreve pelo ponto de vista das conexões entre as neuroses, tal como abordou Freud. Ferenczi (1926/1993) coloca:

“A psicanálise foi a primeira a demonstrar que uma grande parte dos quadros clínicos ditos neurastênicos era formada por distúrbios puramente psíquicos e que era possível curá-los por meios psíquicos. Entretanto, após ter eliminado todos os estados suscetíveis de receber uma explicação psíquica, subsistiu um grupo a que ainda hoje chamamos neurastenia. Os neurastênicos fatigam-se física e psiquicamente muito depressa, são muito suscetíveis aos estímulos externos e sofrem de cefaléias e distúrbios intestinais” (p. 378).

Isso se refere efetivamente às distinções estabelecidas por Freud no que diz respeito à psiconeurose e à neurose atual (na delimitação entre histeria, neurastenia, neurose de angústia, etc.). Tais distinções, contudo, não excluem a conexão existente entre esses fenômenos. Ferenczi (ibid.) considera que, para além de uma problemática no regime sexual, encontram-se fatores diretamente relacionados a conflitos psíquicos:

“Com efeito, a masturbação representa uma etapa normal do desenvolvimento sexual de todo ser humano. Só se tornam neurastênicos aqueles

indivíduos que permanecem por tempo demais nessa etapa, aqueles que continuam praticando a masturbação, muitas vezes de maneira compulsiva, muito depois de atingida a maturidade. Entretanto, mesmo nesses casos, a neurastenia não se explica apenas pelo processo físico da masturbação; na grande maioria dos casos, associam-se-lhe processos psíquicos, como a obsessão e o sentimento de culpa” (p. 378).

Assim, partindo das teorias freudianas da sexualidade, Ferenczi chega a dispor o termo “erotismo de órgão”, atestando a eficácia erótica centrada no prazer retirado de determinadas atividades orgânicas que se estabelecem pela erogeinização de uma atividade corporal – o prazer, por exemplo, em deglutir, engolir, mastigar, digerir; ou o prazer da criança por uma alegria “lúdica” obtida pela atividade orgânica. Poderíamos colocar em pauta, diante disso, a idéia de que o caráter excessivo nesse processo afetaria o sistema orgânico, e é esse mesmo o pensamento lógico de Ferenczi:

“Algumas pessoas auferem esse prazer orgânico com particular intensidade, às vezes quase patológica. Não podem reprimir sua excitação em ingerir e seu prazer na retenção das fezes. A palavra “excitação” já traduz o prazer que se liga ao processo patológico. Estudos psicanalíticos constataram que precisamente nas neuroses de órgão esse funcionamento erótico ou lúdico de um órgão pode adquirir uma importância excessiva, ao ponto de perturbar até sua atividade útil propriamente dita! Em geral, isso produz-se quando a sexualidade é perturbada por razões psíquicas” (ibid., p. 380).

No ínterim dessa questão, destacamos também uma importante consideração do próprio Freud a respeito da relação entre a neurose atual e o ato masturbatório, o qual foi por muito tempo defendido por Freud como principal fonte causal para os sintomas neurastênicos. Contudo, no texto “Contribuições a um debate sobre a masturbação”, ele coloca:

“A masturbação não é nada definitivo – somática ou psicologicamente – não é um ‘agente’ real, mas simplesmente o nome para certas atividades. Entretanto, por mais que remontemos atrás, nossa opinião sobre a causação da doença continuará, não obstante, adequadamente ligada a essa atividade” (FREUD, 1912a/1996, p. 269).

De certa forma, Freud desloca do eixo “ato masturbatório” a etiologia fundamental da neurose atual (neurastenia), dizendo que a “masturbação” é o nome que se dá para certas atividades, não representando um paradigma definitivo para tais atividades. Na falta de outro, Freud parece permanecer contudo com o termo “masturbação”. Podemos entretanto apontar que essa questão pode ser lida de uma outra maneira, como algo que se configura pelo plano compulsivo, não estando necessariamente vinculado com a masturbação em si, o ato masturbatório strictu sensu,

mas a fatores vinculados essencialmente com a psiconeurose. A masturbação não é um “agente real”, Freud afirma. Como frisamos no capítulo anterior quando da discussão sobre as atividades “sexuais” tomadas por Freud como “insatisfatórias”, o autor se volta para a idéia de masturbação por não poder lançar mão de um termo mais preciso. O apontamento de Freud acima exposto abre, contudo, possibilidades de se pensar a questão sob o prisma da dimensão erógena que pode assumir determinada parte do corpo, ou determinado órgão, de maneira que se coloque em pauta a dimensão excessiva que poderia ser característica dessas patologias. Isso pode ser concebido, do ponto de vista da idéia da “masturbação”, como um fazer que não diz respeito necessariamente ao ato masturbatório strictu sensu, mas a atividades erógenas que, conforme apontou Ferenczi nos trechos acima, extrapolam e excedem os níveis de prazer. Ferenczi sublinha ali que o recalque dessa experiência de excesso fica impossibilitado, justamente por seu caráter excessivo, o que deve caracterizar preponderantemente a incidência de uma neurose “atual” (ou neurose de órgão).

Percebe-se no trecho de Ferenczi, assim, a ênfase dada pelo autor à questão do

excesso, o que condiz diretamente com a linha de pensamento que visa nossa pesquisa

na abordagem dessas questões. No capítulo anterior, procuramos detalhar o conceito de neurose “atual” do ponto de vista de um remanejamento teórico circunscrito à evolução do pensamento de Freud e das concepções psicanalíticas. Chegamos à conclusão de que esses fenômenos deveriam ser reintroduzidos do ponto de vista da segunda teoria das pulsões, ao além do princípio do prazer, relativamente ao excesso traumático que se encontra em jogo nessas patologias. Na leitura das considerações de Ferenczi, notamos a congruência de pensamento entre este e Freud, a partir das articulações que procuramos aqui estabelecer. A leitura renovada da neurose atual leva irremediavelmente a colocarmos em pauta o caráter de excesso que se encontra em algumas psicopatologias e das implicações psíquicas, intrínsecas ao corpo.

Quanto a essa questão da interação corpo-mente, é importante destacar considerações de Ferenczi a respeito de determinadas manifestações relacionadas a experiências corporais intensas. Ferenczi (1917/1992) denomina “patoneurose” a “fixação” da libido num determinado órgão, o que se relaciona segundo o autor com o

auto-erotismo e com o narcisismo23. Uma sensação corporal dolorosa pode segundo o autor fixar a libido em um órgão, como por exemplo, uma dor de dente. Nela o sujeito concentra toda a sua cota de libido para obter algum tipo de satisfação. Esses fatores tomam, contudo, dimensões que ultrapassam o princípio de prazer. É preciso sublinhar que nesse momento do texto de Ferenczi (1917/1992)a idéia de uma pulsão de morte não tinha ainda sido elaborada por Freud. Podemos contudo salientar que, desde já, Ferenczi verifica nesses casos uma confluência entre as duas classes de pulsão, em que se constata uma espécie de ‘masoquismo de órgão’, que o autor denominava “estase da libido de órgão” (FERENCZI, 1921/1993). O autor, contudo, diferencia esses fenômenos das neuroses atuais (ou neuroses de órgão), nas quais a patologia somática correspondente seria secundária, e no caso das patoneuroses, a lesão de órgão seria

primária, ou seja, seria o ponto de origem das patoneuroses. Pensamos, entretanto, na

hipótese de esses processos se darem em razões mútuas. Como colocamos acima, a concepção do “além do princípio do prazer” não tinha sido ainda desenvolvida quando Ferenczi introduziu essa idéia. Além disso esses fenômenos podem aparecer articulados entre si, como se articulam psiconeuroses com neuroses atuais. A noção ferencziana de “estase” da libido de órgão carrega assim uma concepção que leva em conta a importante interação entre o psíquico e o somático, ponto no qual procuramos centralizar nossas questões.

No que concerne à ‘neurose de órgão’, é interessante frisar – e nós fazemos questão de pensar sobre isso – que Ferenczi (1926/1993), ao invés de falar em “neurose atual” falou em “neurose de órgão”. Já está claro que se trata em Ferenczi da mesma fenomenologia concernente à neurose atual de Freud. Na leitura do texto de Ferenczi, entretanto, chegamos à conclusão de que este abre mão de pensar a questão do ponto de vista puramente relativo ao ato sexual, tendendo a positivar a “neurose de órgão” (ou neurose “atual”) como uma questão fundamental para a psicanálise. A idéia inicial de Freud (1895b/1996) de um processo “puramente somático” na neurose atual, a qual, como vimos, foi superada pelo próprio Freud, é desde já caracterizada por Ferenczi como infecunda. Como apresentamos acima, o autor considera a interação desses

23Essa noção de “fixação” da libido de órgão não corresponde à idéia de fixação utilizada por Freud. Este

faz menção especificamente à idéia de desenvolvimento da libido, o qual estaria comprometido por um contexto neurótico em que a libido permaneceria “fixada” num determinado estágio de seu desenvolvimento (FREUD, 1917b/1996). Aqui, Ferenczi parece se referir à estagnação da libido no sistema orgânico, algo que se interpõe à sua fluidez psíquica.

fenômenos com a atividade psíquica, o que confirma nossa constatação. No capítulo anterior, frisamos que Freud parecia, nos primórdios de sua teoria, inclinado a estabelecer o divisor de águas necessário para legitimar a investigação de determinados fenômenos – os psiconeuróticos – como sendo do interesse direto da psicanálise. Ferenczi demonstra no texto aqui trabalhado, contudo, que as neuroses “de órgão” são também do interesse fundamental da teoria e da prática psicanalítica. Mais do que isso, poderíamos supor que a preferência pelo termo “neurose de órgão” incide diretamente no problema da idéia da “atualidade” desses sintomas, ou de sua relação com os conflitos psíquicos ligados efetivamente a questões históricas. Ferenczi parece retificar seu mestre de maneira simples e magistral ao abordar esse tema sem ferir seus princípios, e ao mesmo tempo, colaborando para o avanço de seu entendimento. Tanto não feriu as idéias de Freud que este último considerou posteriormente, como vimos, a existência de conflitos psíquicos na neurose “atual” (FREUD, 1925/1996). Essas considerações constituem uma importância fundamental para nossa pesquisa e para o estabelecimento de um caminho lógico na questão “psicossomática”, coerentemente aos princípios psicanalíticos.

Na seqüência de pensamento que procuramos estabelecer por meio de uma releitura da neurose atual, pudemos perceber que a “superposição” entre a psiconeurose e a neurose atual leva a concebermos a idéia de uma coalescência e de uma interação entre conflitos psíquicos e o funcionamento orgânico, e leva também a uma relativização do termo “atual”, no sentido de se pensar a descarga corporal atual vinculada à relação do sujeito com o outro na sua história.

No que diz respeito ao campo do trauma nessas considerações, apontamos no capítulo anterior, assim, a necessidade de se pensar o “atual” sob a ótica do “além do princípio do prazer”, em que se concebe a idéia de “trauma” ligada à irrupção de um excesso, inviabilizado de estabelecer ligação no aparelho psíquico (FREUD, 1920/1996).

Ferenczi aborda o problema do trauma em conformidade com a necessária articulação que se deve estabelecer entre trauma e dor. O autor entra nessa questão colocando o problema sempre de maneira subsumida à experiência do sujeito com o outro. No trauma ferencziano, a impossibilidade de integrar, ou incluir no sistema psíquico o evento traumático na infância, se estabelece segundo a inviabilidade na

tradução da mensagem do adulto, que desmente o evento traumático (PINHEIRO, 1995). A teoria elaborada por Ferenczi se centraliza na idéia de que o trauma é desestruturante, diferentemente do complexo de castração (FREUD, 1926/1996), que inclui as instâncias ideais como recurso indispensável para a estruturação do aparelho psíquico. Pinheiro diz: “O resultado, nesse caso, é uma verdadeira mutilação do ego” (p. 66). Diante disso, a questão do desvanecimento das fronteiras do ego deve ser retomada, na medida em que, ao redor da experiência traumática, a composição de uma conexão associativa fica comprometida, ou seja, o movimento de historicização é dificultado. Knobloch (1998) aborda esses elementos teóricos remetidos à teoria de Ferenczi, que nos chama atenção na articulação entre o trauma, a dor, e o excesso excitativo:

“O trauma segundo Ferenczi, é o problema da dor, da dor vinculada à experiência de morte, dor-morte. Dor é a impossibilidade de representação. O sujeito fica impactado pela presença da morte, ele está “em presença” da morte. Insisto na expressão “em presença”, pois aí não atua o contraste passado- presente-futuro, está-se diante de uma experiência bruta (de um excesso) que não foi temporalizada, ou seja, não teríamos aí uma temporalidade historicizada” 24

(p. 112-113).

Pode-se chamar atenção, com isso, para o fato de que a marca do trauma não faz elo com as representações circunscritas ao movimento da cadeia associativa25. Esse ponto aparece como sendo do nosso maior interesse, à medida que correlacionamos o problema da “atualidade” com o excesso traumático na circunscrição desses balizadores teóricos. A articulação entre a neurose atual e o campo do trauma nos leva a caracterizar o excesso traumático como estando situado no entrelaçamento entre o “atual” e o “histórico”, ou seja, na delimitação daquilo que se articula e daquilo que não se articula ao nível das representações.

Retomando assim a questão do movimento de historicização e das articulações teóricas entre tais fatores e o campo do trauma propriamente dito, procuramos destacar importantes apontamentos feitos por Freud, a respeito de movimentos clínicos que não apareciam diretamente no discurso do paciente, relativos ao campo da repetição. No

24Grifo Nosso 25

Faz-se necessária aqui a distinção entre traço, marca e impressão. Conforme Garcia-Roza (1991b), o traço (eindrücke) é resultado da inscrição, no campo da memória, das impressões relativas às intensidades corporais. A noção de marca (prägung) designa algo que não se inscreveu e que permanece como pura intensidade. Como aponta Viana (2003): “Freud se deteve no domínio dos traços porque nesse momento [primeira tópica] ele estava preocupado com o sistema associativo-representativo. (...). Esses dois âmbitos [traço e marca] coexistem no psiquismo e se Freud priorizou o limite do representável na primeira parte de sua teoria foi para dar conta das psicopatologias de sua época, ou seja, as chamadas psiconeuroses de defesa, caracterizadas por um sintoma neurótico cuja via de formação é simbólica” (p. 63).

texto “Recordar, repetir , elaborar” (1914a/1996) o autor emitiu seus primeiros comentários a respeito das manifestações da compulsão à repetição, localizando a questão das experiências desagradáveis do ponto de vista do acting out. Certos pontos da cadeia associativa, inviabilizados de conexão e remeroração, se manifestam sob a forma de um ato, não temporalizado, como se a força nele impressa tivesse toda sua carga centrada na atualidade. Freud diz:

“Aprendemos que o paciente repete ao invés de recordar e repete sob as condições da resistência. (...) E podemos agora ver que, ao chamar atenção para a compulsão à repetição, não obtivemos um fato novo, mas apenas uma visão mais ampla. Só esclarecemos a nós mesmos que o estado de enfermidade do paciente não pode cessar com o início de sua análise, e que devemos tratar sua doença não como um acontecimento do passado, mas como uma força atual. Esse estado de enfermidade é colocado, fragmento por fragmento, dentro do campo e alcance do tratamento e, enquanto o paciente o experimenta como algo

real e contemporâneo, temos de fazer sobre ele nosso trabalho terapêutico, que consiste, em grande parte, em remontá-lo ao passado”26(FREUD, 1914a/1996,

p. 167).

Nessa época Freud ainda não dispunha da idéia de pulsão de morte para localizar o terreno no qual se dá a compulsão à repetição. É importante frisar, contudo, que desde já Freud chamou atenção para o fato de que esse fator “atual” – que se verifica por uma

presença maciça da força atuante – se localiza efetivamente numa constituição infantil

da relação do sujeito com o outro, mesmo que não fosse imediatamente historicizada. Em 1920, Freud coloca:

“(...) chegamos a um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsão à repetição também rememora do passado experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para impulsos instintuais que desde então foram reprimidos” (p. 31).

Como colocamos, em meio aos remanejamentos conceituais de sua teoria, Freud (1920/1996) reintroduz essa questão ao campo do além do princípio do prazer. Verifica-se aí que a experiência infantil, em nada carregada de prazer, é relançada tal qual uma compulsão quando do (re)encontro com o outro (psicanalista). Aqui, Freud (ibid.) conclui que essa compulsão não está condicionada pelo recalque nem pelas forças a ele subjugadas – está condicionada pelos auspícios da pulsão de morte. No mesmo campo, temos que aquilo que é efetivamente da ordem do traumático configura-

se como o fator atual por excelência, mas não redunda numa oposição com aquilo que é da ordem do histórico, do “passado” freudiano.

Diante dessas considerações, a neurose “atual” não pode mais, em definitivo, se circunscrever de maneira absoluta na atualidade, visto que o encontro com o outro deve ser sempre tomado como histórico, ainda que sua força atuante se presentifique na brutalidade da carga traumática atual. A atualidade é nesse sentido caracterizada pelo que há de real nessa presentificação. A excitação que encontra impedimento de fluidez

No documento A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO (páginas 80-89)