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A aglutinação neurose atual–psiconeurose

No documento A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO (páginas 57-61)

CAPÍTULO II – A NEUROSE ATUAL: UMA RELEITURA

2.2 A aglutinação neurose atual–psiconeurose

As considerações de Freud passaram desde o início, como podemos ver, por constantes revisões e transformações. Isso indica de saída a constatação de que determinados conceitos na obra de Freud devem abarcar modificações que apontam para a evolução e o aperfeiçoamento de suas concepções em conformidade com as conclusões decorridas de importantes reflexões teóricas. Verifica-se, a partir desta indicação, que o termo ‘atual’ apareceu pela primeira vez em 189816, nos primórdios da constituição teórica de Freud, época em que este centrava ainda a concepção de história num passado absoluto e fatual, ou não tinha ainda estabelecido parâmetros teóricos para resolver o problema da constituição psicossexual centrada no caráter “infantil”. Nessa conjuntura, o termo ‘atual’ aparece como um marco fronteiriço entre os sintomas psiconeuróticos e aqueles circunscritos à neurastenia e à neurose de angústia. Como já frisamos, o prisma da atualidade não se refere, no início da obra freudiana, a nada mais que o ato sexual: na psiconeurose o “trauma” sexual (abuso) ocorria no passado, e na neurose atual, o “trauma” (interrupção do coito, abstinência) ocorria no presente.

Com o desenrolar da teoria psicanalítica, apesar da concepção da produção

fantasmática na sintomatologia psiconeurótica – retirando dela o eixo fatual do

“passado” – a abordagem freudiana da neurose ‘atual’ permaneceu relativamente estática, visto que Freud se debruçou na investigação das psiconeuroses, dando a estas um estatuto privilegiado de objeto de pesquisa. Freud abordou de maneira mais sólida o tema da neurose atual em meio à costura de suas idéias mais primordiais. Depois disso,

16FREUD, S. (1898/1996) A sexualidade na etiologia das neuroses. In: Obras Completas. Rio de Janeiro:

abordou o tema de maneira pouco aprofundada, dando prioridade para as questões psiconeuróticas.

Essa estase da teoria da neurose atual não significa contudo um abandono completo de sua revisão na teoria psicanalítica. Como apontamos, a neurose atual era inicialmente concebida como um processo puramente somático (FREUD, 1895b/1996), em que se observava um dispêndio corporal das excitações, sem existência de qualquer mediação psíquica. Apesar de não avançar muito no tema das neuroses atuais, no desenvolvimento de suas conjecturas, Freud demonstrou, entretanto, a existência de uma ligação intrínseca entre a neurose atual e a psiconeurose, conforme apontamos no primeiro capítulo do presente trabalho, problematizando as teorias mais recentes sobre a psicossomática. Para Freud, a neurose atual aparece como um complexo eclosivo da psiconeurose. Esse apontamento significa que, no surgimento de um sintoma ‘atual’, está ligada uma psiconeurose. Nas Conferências Introdutórias da Psicanálise, ele afirma:

“(...) um sintoma de uma neurose atual é freqüentemente o núcleo e o primeiro estádio de um sintoma psiconeurótico. (...) Tomemos como exemplo o caso de uma dor de cabeça ou dor lombar histérica. A análise nos mostra que, pela condensação e pelo deslocamento, o sintoma tornou-se uma satisfação substitutiva de toda uma série de fantasias e recordações libidinais. Mas essa dor, em determinada época era também uma dor real e era, então, um sintoma sexual- tóxico direto, expressão somática de uma excitação libidinal17” (FREUD,

1917c/1996, p. 391).

A questão da ligação com a psiconeurose, apontada por Quintella (2003), aparece de maneira clara neste trecho, onde Freud articula a formação de um sintoma neurótico ao dispêndio corporal da excitação, o que revela importantes características. Em primeiro lugar, considera-se que esse núcleo somático é “convocado” para a formação de um sintoma histérico, o que Freud (1912a/1996) caracterizou como um “grão de areia no centro da pérola” (p. 266). O fator ‘atual’ aparece como elemento

nuclear do sintoma psiconeurótico, constituindo-se como uma ‘matéria-prima’ deste.

Em segundo lugar, consideramos que a psiconeurose, por “preceder” a neurose atual em sua disposição sintomática articulada ao campo histórico, não está desvinculada desse fator ‘atual’ da neurose, e vice-versa. Sob esse prisma, a neurose atual é abordada como

sendo intrínseca à psiconeurose. O que se coloca em pauta nesse caso é a existência de um ponto de articulação entre as duas neuroses.

Na mesma conferência, Freud expõe suas questões quanto à neurose atual e ao seu estudo na psicanálise. Afirma:

“(...) os senhores acertadamente esperarão que devamos dedicar também algum interesse às neuroses atuais. A íntima conexão clínica dessas neuroses com as

psiconeuroses nos compeliria a fazê-lo. Posso afirmar-lhes, pois, que distinguimos três formas puras de neuroses ‘atuais’: neurastenia, neurose de angústia e hipocondria. Mesmo essa assertiva não é isenta de contradições. Todos os nomes estão em uso, é verdade; porém seu conteúdo é impreciso e instável. Aliás, existem médicos que se opõem a qualquer linha divisória no mundo católico dos fenômenos neuróticos, a qualquer separação das entidades clínicas ou das doenças individualizadas, e que nem sequer reconhecem a distinção entre as neuroses ‘atuais’ e as psiconeuroses. Penso que nisso se excedem e não escolheram o caminho que conduz ao progresso. As formas de neurose, que mencionei, ocasionalmente ocorrem em sua forma pura; mais freqüentemente, porém, estão mescladas umas com as outras e com algum distúrbio psiconeurótico. Isto não deve levar-nos a abandonar a diferença entre elas” (FREUD, 1917c/1996, p. 390).

Neste trecho, Freud estabelece a importância de se frisar que, apesar da conexão entre os sintomas, é necessária a sua distinção quanto ao caráter fenomenológico e etiológico. No que concerne ao ponto de vista fenomenológico, a neurose atual ocorre, na maioria das vezes, misturada com sintomas psiconeuróticos. Freud considera a “pureza” de um sintoma ‘atual’ do ponto de vista fenomenológico, ou seja, de sua manifestação clínica. Devemos lembrar e recolocar que a psiconeurose “precede” a neurose atual em sua disposição sintomática, já que está articulada diretamente ao campo histórico, mesmo não havendo em um dado momento um distúrbio sintomatológico evidente. Assim, a afirmação de que a neurose atual é freqüentemente o primeiro estágio da psiconeurose revela que o aparecimento de sintomas somáticos não exclui a presença de uma neurose propriamente dita, mas ao contrário, potencializa seus sintomas. Mais do que isso, o sintoma “atual” aparece como um condicionante auxiliar de uma psiconeurose que, potencialmente, já existia, o que coloca em destaque a idéia de uma importante conexão etiológica desses sintomas com a psiconeurose. Sob esse ponto de vista, o sujeito, ao apresentar sintomas somáticos (ou “atuais”), se encontraria imerso numa problemática que, se podemos afirmar, encontra suas raízes nas determinações da “história” sexual. Podemos entender, portanto, que a distinção

entre o ‘atual’ e o ‘histórico’ permanece, mas não a oposição entre os mesmos, visto que tais fenômenos não são mutuamente excludentes e visto que, ao contrário, há uma

interação entre eles.

Essas considerações aparecem aqui como um questionamento a respeito da separação radical que se faz entre tais fenômenos – leitura estabelecida pela Escola Francesa de Psicossomática. Verificamos assim que a distinção entre esses fenômenos não significa sua exclusão mútua, mas ao contrário, viabiliza sua articulação.

Esse caminho leva-nos a colocar em questão a concepção de “atualidade” inicialmente enfatizada por Freud. Na constatação da interação entre a psiconeurose e a neurose atual, em muito enfatizada neste trabalho, percebe-se a necessidade de se colocar aspas no termo atual, visto que, no campo da neurose, o atual e o histórico se acham entrelaçados. Nessa direção, pensamos que a questão da atualidade deve ser

relativizada – pensamento que compartilhamos com Rocha (2000), ao apreciarmos uma

menção sua à neurose “atual”:

“Como quer que seja, vale a pena lembrar que, para Freud não existem as ‘neuroses puras’, mas, sim, as ‘neuroses mistas’. Assim sendo, é quase impossível conceber uma neurose atual que se esgote no presente sem ligação alguma com o passado e que seja puramente atual. Nem também se poderia pensar uma psiconeurose que não tivesse repercussão no aqui e agora do tempo presente” (p. 57).

Ao concebermos, assim, as relações de historicidade como um arranjo psíquico fantasmático, desligado de uma passado fatual, mas ligado a uma construção psíquica que encontra na atemporalidade sua característica principal, não podemos mais pensar o ‘atual’ e o ‘histórico’ como fatores dissociados, mas como fatores imbricados. No contexto dessas considerações, desejamos reconfigurar tais idéias sob o plano das questões concernentes à historicidade, na proposição de se relativizar o termo atual, ou relocalizá-lo na teoria psicanalítica em conformidade com a evolução do pensamento de Freud. Procuramos assim, reinserir o conceito de neurose atual na teoria psicanalítica como um conceito ainda em questão para o estudo da psicossomática e para os desdobramentos a ele subjacentes.

No documento A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO (páginas 57-61)