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1.4 As perspectivas atuais: O Instituto de Psicossomática de Paris

1.4.2 Freud e Marty

O campo da linguagem é, como podemos ver, fundamental no que concerne à constituição da teoria psicanalítica, já que é sob uma perspectiva teórica das representações atrelada ao terreno da sexualidade que Freud estabeleceu seu arcabouço teórico. As concepções relativas aos estudos das representações e da linguagem são contudo diversas, e remontam a pensadores como Mill, Saussure, Jakobson, Lacan, Wittgenstein, etc. Reservamo-nos nesse momento a apresentar as confrontações concernentes à teoria de Freud e à utilização dela por Marty, numa tentativa de indicar caminhos no campo teórico possibilitados por uma leitura consistente da obra freudiana. Para Marty, o aparelho psíquico é formado de “(...) evocações de impressões de diferentes épocas que, inscritas e deixando de várias maneiras traços mnésicos, assumem diversos valores de objetos de referências mentais individuais” (MARTY, 1993, p. 25). Os pacientes circunscritos pela abordagem martyniana, como indicamos anteriormente, são “neuróticos mal mentalizados” e apresentam um discurso colado a impressões, pouco associativo, relatos de puros registros de eventos, parecendo se mostrar desimplicados de qualquer tipo de subjetivação ou demanda analítica. Operando uma circunscrição tipológica para esses sujeitos, Marty infere a eles uma dificuldade de estabelecer conexões representativas, deduzindo assim a existência de representações de coisa em um aspecto puro, desvinculado de representações de palavras, estas em amplo grau de escassez.

Do ponto de vista teórico, no qual delimitamos nossa presente discussão, verificamos que, no estudo das afasias, Freud apresenta uma estrutura da representação de coisa intrinsecamente ligada à representação de palavra. Isso se constata em importantes passagens de seu trabalho onde fica claramente demonstrado o caráter

associativo referente à estrutura das representações, conforme apontamos anteriormente.

Freud reverbera um não dualismo entre associação e representação, demonstrando que a primeira é constitutiva da estrutura mesma da segunda. Desde seus apontamentos a respeito dos processos que engendram o aparelho de linguagem – concepção que supera a teoria das localizações cerebrais – pode-se perceber que não cabe no pensamento de

Freud uma estrutura de representação desvinculada de suas características associativas, já que entende a função da linguagem atrelada a toda extensão cerebral. Freud (op. cit.) acentua:

“Rejeitamos portanto as hipóteses segundo as quais o aparelho de linguagem é constituído de centros distintos, separados por regiões corticais isentas de funções, e além disso as hipóteses segundo as quais as representações (imagens mnêmicas) que servem para a linguagem estejam acumuladas em determinadas áreas corticais denomináveis centros, ao passo que à sua associação procederiam exclusivamente as brancas massas fibrosas subcorticais. Só nos resta pois formular hipótese de que a região cortical da linguagem seja um articulado

tecido cortical dentro do qual as associações e as transmissões em que se apoiam

as funções da linguagem procederiam com uma complexidade não propriamente compreensível” (p. 62).

O que Freud nos demonstra é que a representação é um complexo de associações de diferentes níveis de elementos que alcançam toda a extensão cerebral, ligando imagens acústicas e motoras a impressões visuais, táteis, cinestésicas, etc. Essas últimas constituem as associações de objeto que, por sua vez, designarão as representações de coisa, ligadas às representações de palavra por meio do elemento acústico. Assim, uma representação não pode ser concebida como uma simples reprodução das coisas percebidas. Por ser um complexo associativo, as representações de coisa (ou objectual) não se reduzem à simples impressão. Segundo Garcia-Roza (1991a), “(...) a representação é entendida por Freud não como representação de um objeto, mas como a

diferença entre duas séries de associações (p. 35). Cabe lembrar que, para Freud

(1891/1977), a associação é imediata à impressão. Numa perspectiva aprofundada, isso significa dizer que a representação é algo da ordem de um complexo, e faz parte de um

processo que o próprio Freud pondera nesse momento como incompreensível.

Assim, as relações que Freud estabelece entre as duas categorias de representação nos revelam seu caráter intrínseco. No texto “O Inconsciente” (1915b/1996) Freud acentua, como vimos, a importante característica das representações de coisa, de que ela se constitui como traço derivado da imagem da coisa o qual, segundo a leitura do texto das afasias, está mais ligado à representação da palavra do que à impressão direta da coisa. Em 1915 ele aborda o inconsciente como um complexo de representações de coisa e o pré-consciente como uma restauração de sua associação com as representações de palavra que lhes correspondem. Freud (ibid.) enfatiza que “o sistema pré-consciente ocorre quando essa representação de coisa é hiperinvestida através da ligação com as representações de palavra que lhe

correspondem” (p. 206). Disso se conclui que a cada representação de coisa

corresponde uma ou mais representações de palavra, atestando nisso o caráter

associativo de sua estrutura. Garcia-Roza (1991a) nos chama atenção dizendo que a representação de coisa “(...) não pode se constituir sem uma ligação prévia com a representação de palavra” (p. 64).

Sob o teto dessas argumentações, levantamos a seguinte questão: há possibilidade de se pensar a existência de uma representação de coisa pura sem correspondência com as representações de palavra? A representação de coisa pura denota a concepção de que tal processo se constituiria numa reprodução icônica da coisa percebida, o que se estabeleceria como impressão pontual e independente das conexões com outras dimensões representativas. A concepção de Marty se afasta dessas importantes marcações de Freud, as quais viriam a constituir posteriormente seus principais postulados. Marty aposta, contudo, na idéia de uma representação de coisa desalojada das palavras, como um ícone da coisa percebida, de pouca variação em relação à sua imagem, e pouco mobilizável psiquicamente – idéia que Freud combateu desde os primórdios de seu pensamento. Freud (1891/1977) deixa indicado que as representações de coisa assumem uma certa autonomia em relação à imagem da coisa percebida, quando atesta sua estrutura de associação com outras representações11. Vimos ainda que não se pode pensar, em Freud, a representação de coisa de maneira pura, sem um correspondente na palavra, o que constitui um problema para a teoria de Marty e que nos leva a questionar sobre a possibilidade de se conceber um aparelho psíquico ‘pobre’ de representações de palavra na sua dimensão constitucional.

O Campo das representações, introduzido por Freud nas concepções das afasias, passa sem dúvida por importantes desdobramentos relativos a modelos de linguagem, os quais tomam hoje significativa importância no quadro teórico e clínico da psicanálise. As argumentações aqui colocadas remontam a uma discussão extensa, não apenas no campo psicanalítico, mas também no campo lingüístico, em se observa importantes reflexões a respeito da natureza do significante e do significado, do plano

11Cabe aqui lembrar que, no decorrer de suas reflexões, Freud (1906/1996) pondera que as impressões

traumáticas supostamente vividas pelas pacientes histéricas não passam de uma construção fantasmática complexa no sentido de rechaçar o próprio desejo sexual. Isso pontua que a representação de coisa, caracterizada por Freud (1915/1996) como “primeiros e verdadeiros investimentos objetais” (p. 206), tem uma autonomia em relação às impressões vividas ou percebidas, o que se apresenta como problema para a concepção de Marty, o qual considera a representação de coisa como simples reprodução das coisas vividas ou percebidas.

das expressões e dos conteúdos, e dos desdobramentos que esses elementos produzem (ARRIVÉ, 2001). Nosso intento contudo tem, no momento presente, o objetivo de estabelecer uma confrontação consistente entre o pensamento freudiano e o martyniano, sem entretanto deixar desde já indicada a importância dos estudos da linguagem para a reflexão psicanalítica atual.

Fica-nos, no conjunto das considerações aqui delineadas a respeito da abordagem do IPSO e das teorias de Marty, a constatação de que o modelo psicossomático dessa corrente de pensamento apresenta importantes problemas que devem sem dúvida ser colocados a termo e provocar uma revisão nas concepções do campo psicanalítico sobre a psicossomática, já que P. Marty e o IPSO aparecem hoje como principal referência nesse campo de investigação. A concepção de Freud sobre representação dificulta para nós a idéia de uma carência ou déficit representacional. Essa dificuldade, somada às questões ligadas ao modelo da neurose atual, leva-nos a problematizar o modelo martyniano para a psicossomática na conjuntura de sua própria crucialidade teórica.

Colocadas essas ponderações, temos como intuito avançar no tema da psicossomática de maneira diversa, levando em consideração algumas questões de aprofundamento teórico referidas às minúcias das relações etiológicas entre as psiconeuroses e as neuroses atuais. Além disso, é preciso colocar em pauta a relação que se estabelece entre o princípio da neurose atual e a evolução do pensamento freudiano a respeito de conceitos que a este se relacionam, cujas teorias passaram por importantes revisões no percurso de Freud. Buscamos, sob estes termos, investigar de maneira mais profunda o problema das neuroses atuais, colocando em perspectiva um possível remanejamento de sua localização na leitura da obra de Freud. Não objetivamos uma abordagem das neuroses atuais em si (neurastenia, neurose de angústia, hipocondria), mas um aprofundamento centrado no modelo de descarga corporal das excitações, bem como nas relações corpo-mente que podem aparecer como desdobramento dessas reflexões. Esse caminho se centra no desenvolvimento da obra de Freud onde ele tende gradativamente a intensificar a relação entre as psiconeuroses e as neuroses atuais, apesar de ter se debruçado intensamente nas questões da psiconeurose, deixando numa certa “estase” a abordagem teórica da neurose atual.

Desta forma, formulamos as seguintes indagações, as quais dizem respeito diretamente à nossa pesquisa: a partir dos apontamentos realizados, como estabelecer novos parâmetros de discussão sobre a relação entre esses dois grupos de neuroses (neuroses atuais e psiconeuroses), levando-se em consideração os levantamentos que procuramos expor? O sintoma ‘atual’ é afinal, o simples resultado de uma sexualidade mal aplicada na atualidade, ou há interação com fatores históricos conferidos às psiconeuroses nas quais, como vimos (op. cit.), estão aglutinadas as neuroses ‘atuais’? Quais as conseqüências teóricas da formulação do além do princípio do prazer para a discussão da neurose atual? Que perspectivas teóricas podem alavancar discussões aprofundadas sobre os problemas que a “psicossomática” coloca para a psicanálise?

As questões aqui levantadas serão discutidas ponto a ponto na segunda parte do presente trabalho, onde desejamos circunscrever a problemática trazida pela psicossomática ao campo psicanalítico, sobretudo quando se constata que estamos lidando com tipos de fenômenos específicos que dizem respeito não apenas ao domínio da psicanálise, mas que abarcam questões relativas aos estudos da medicina e das funções fisiológicas. Tais são desde já as principais dificuldades para a psicanálise, sobretudo quando se considera também os desafios teóricos que os fenômenos denominados “psicossomáticos” introduzem para o pensamento psicanalítico.

2a PARTE

No documento A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO (páginas 43-48)