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A concepção de transitividade escalar de Hopper & Thompson (1980)

CAPÍTULO 1 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: os pilares da pesquisa

1.1. Funcionalismo linguístico

1.1.6. A transitividade: o fenômeno de estudo

1.1.6.1. A concepção de transitividade escalar de Hopper & Thompson (1980)

SN2. Nessa composição, SN1 é sujeito, Vtrans é verbo transitivo e SN2 remete ao objeto direto. Considerando as noções semânticas de cada elemento dessa estrutura básica, prototipicamente, o sujeito é agente, o verbo expressa ação e o objeto direto sofre afetamento devido à ação exercida pelo sujeito.

Nesse sentido, para Hopper & Thompson (1980), a transitividade prototípica é compreendida, de maneira geral, pela ação de transferência que um agente realiza para um paciente. Por isso, os autores ressaltam que “a transitividade é tradicionalmente entendida como uma propriedade global da oração, em que a atividade é transferida de um agente para um paciente” (HOPPER & THOMPSON, 1980, p. 251).

Ainda na perspectiva da transitividade prototípica, esta funciona como orientação analítica, mas não representa a única possibilidade de uso/estrutura no âmbito da transitividade. Por isso mesmo, como já discutimos sobre a concepção de protótipo nesta tese, faz-se necessário considerar características típicas e desviantes. De acordo com Furtado da Cunha & Souza (2007), a transitividade não precisa ser constituída de todos os elementos do evento transitivo prototípico juntos (sujeito, verbo e objeto). Porém, uma alteração em um dado protótipo pode ser associada a instâncias pragmático-discursivas, e essa é nossa principal tese aqui.

Os objetivos mais importantes da proposta embasada no protótipo da transitividade, os quais passam a ser nossos também, são:

1. mostrar que a transitividade é uma relação crucial da linguagem, e isso tem diversas consequências no que tange à construção gramatical (e, para nós, discursiva); e

2. mostrar que as definições das propriedades da transitividade são discursivamente determinadas (HOPPER & THOMPSON, 1980, p. 251).

O primeiro objetivo está relacionado ao fato de que a transitividade organiza a oração e alcança, por isso, a organização do texto e do discurso. Em seguida, o segundo objetivo aponta a relevância do discurso como motivador da constituição do evento transitivo e vice-versa: como o estabelecimento dessas propriedades reforça, formula, dá o contorno do discurso (pro)posto.

O viés discursivo reconhecido pelos autores relaciona-se tanto com as intenções de quem fala a língua, de seus conhecimentos de mundo quanto com as funções pragmáticas. Nesse sentido, os objetivos de comunicação de quem fala, bem como sua percepção das necessidades de compreensão do interlocutor são fatores determinantes na organização do texto enunciado pelo falante (FURTADO DA CUNHA; COSTA; CEZARIO, 2003). Esse será um forte ponto no qual se ancorarão nossas análises.

Hopper & Thompson (1980), partindo da ideia de gradiência, constroem dez parâmetros sintático-semânticos para mensurar as escalas do evento transitivo:

Quadro 1 - Parâmetros sintático-semânticos de Hopper & Thompson (1980, p. 252)

Parâmetros Transitividade alta Transitividade baixa

1. Participantes dois ou mais um

2. Cinese Ação não-ação

3. Aspecto do verbo Perfectivo não-perfectivo 4. Pontualidade do verbo Pontual não-pontual 5. Intencionalidade do

sujeito intencional não-intencional

6. Polaridade da oração afirmativa negativa 7. Modalidade da oração modo realis modo irrealis 8. Agentividade do sujeito Agentivo não-agentivo 9. Afetamento do objeto Afetado não-afetado 10. Individuação do objeto individuado não-individuado

Os parâmetros do quadro acima apresentam a transitividade em abrangência oracional e em um continuum dinâmico, que mostra diferentes possibilidades de configuração do fenômeno. Pezatti (2004) lembra que orações sem a presença de um objeto não são apenas intransitivas; essas orações podem constar em algum ponto do continuum transitivo. Nós acrescentamos que um O [objeto] pode ter sido omitido ou por questões automáticas (puramente sintáticas), ou por escolha do falante para produzir efeito diverso do que se produz ao usar o O [objeto], o que identificamos como sendo uma escolha de natureza pragmático-discursiva.

O quadro também demonstra que o protótipo da transitividade alcança graus altos e as caracaterísticas desviantes, ou menos prototípicas, revelam transitividade de graus baixos. Nessa perspectiva, Furtado da Cunha; Costa; Cezario (2003) destacam que a escala da transitividade considera toda a sentença como transitiva. E o nosso trabalho quer levar essa perspectiva de análise para o texto, o discurso e tentar mostrar a associação entre graus de transitividade e escolhas discursivas. Vale registrar aqui que a concepção de transitividade gradiente, em toda a oração (e não apenas concentrada no verbo) é a grande singularidade e contribuição de Hopper & Thompson (1980) no tocante às análises do fenômeno.

Quanto aos parâmetros sintático-semânticos, explicaremos cada um segundo as funcionalidades registradas por Hopper & Thompson (1980). O primeiro, que corresponde aos participantes, trata dos envolvidos no evento transitivo. Considerando este parâmetro de transitividade, a presença de dois ou mais participantes no evento expressam grau alto; já um participante caracteriza grau baixo:

Jerry nocauteou Sam Susan partiu

(HOPPER & THOMPSON, 1980, p. 253-254).

O contraste dos dados em tela mostra que, no parâmetro participantes, a primeira sentença apresenta transitividade de grau alto e, a segunda, detém grau baixo. Isso se justifica pelo fato de Jerry nocauteou Sam possuir dois participantes humanos (Jerry e Sam). E em Susan partiu há somente um participante (Susan).

A cinese é um parâmetro que se ocupa de verificar a ação, ou não, dos verbos. Hopper & Thompson (1980, p. 252) destacam a questão da transferência de ação inerente a este parâmetro: “ações podem ser transferidas de um participante para outro; estados não”:

Eu abracei Sally Eu gosto de Sally

Em Eu abracei Sally, a ação de abraçar é transferida do sujeito “Eu” para o objeto “Sally”. Portanto, a cinese tem gradiência alta. No segundo exemplo, a cinese é de grau baixo porque, com o uso do verbo “gostar”, de natureza afetiva, não ocorreu transferência do sujeito para o objeto.

O terceiro parâmetro, aspecto do verbo, diz respeito à análise do viés télico do verbo. Isso significa observar se a transferência da ação foi completa ou parcial. Sobre isso, Furtado da Cunha & Souza (2007, p. 37) afirmam que “uma ação vista do seu ponto final, isto é, uma ação perfectiva ou télica, é mais eficazmente transferida para um participante do que uma ação que não tenha término”. A transferência completa e parcial de uma ação podem ser conferidas, respectivamente, nos dois dados abaixo registrados por Hopper & Thompson (1980, p. 252):

Eu comi algo

Eu estou comendo algo

A pontualidade do verbo, segundo Pezatti (2004, p. 192), “diz respeito ao inesperado de uma ação ou à ausência de uma clara fase transicional entre início e completude”. Em outras palavras, o quarto parâmetro observa se a ação possui etapa de

transição no processo, ou não, para, em seguida, analisar como a ação afetou o paciente. Para ilustrar a pontualidade, Hopper & Thompson (1980, p. 252) contrastam chutar (pontual) e carregar (não-pontual).

A intencionalidade do sujeito, quinto parâmetro da escala de Hopper & Thompson (1980), está relacionado com a volição. Logo, seu objetivo é verificar se a ação do sujeito foi intencional ou não:

Eu escrevi o seu nome Eu esqueci o seu nome

Hopper & Thompson (1980, p. 252) afirmam que escrevi expressa ação intencional, volitiva do sujeito. Em esqueci, a ação não expressa a volição do sujeito, isto é, não foi intencional.

A polaridade da oração é um parâmetro que observa se a oração é afirmativa ou negativa. O sexto parâmetro, então, auxilia na análise da transferência da ação, visto que em orações afirmativas há transferência de ação e, em negativas, não. Furtado da Cunha & Souza (2007, p. 38) exemplificam essa questão:

O menino comeu o sanduíche O menino não comeu o sanduíche

Hopper & Thompson (1980) propõem com o sétimo parâmetro, modalidade da oração, registrar a ocorrência do modo realis (eventos reais) e do modo irrealis (eventos hipotéticos ou que não aconteceram). Nesse sentido, eventos reais, com ações concluídas, remetem à transitividade de grau alto. Já eventos hipotéticos ou não realizados expressam transitividade de grau baixo. A oração Maria vai comprar um vestido novo (FURTADO DA CUNHA & SOUZA, 2007, p. 38) é um exemplo de modo irrealis, pois o futuro indica que o evento ainda não aconteceu.

A agentividade do sujeito discute o seu grau de ação, ou seja, se a ação do sujeito é algo perceptível em evento real ou não. Conforme Hopper & Thompson (1980, p. 252), sujeitos humanos (como George) são mais agentivos do que não-humanos (como O quadro):

George me assustou O quadro me assustou

Os dois últimos parâmetros de Hopper & Thompson (1980) tratam do objeto na escala transitiva. Nesse sentido, o afetamento do objeto verifica a relação de transferência da ação ao objeto:

Eu bebi em um gole o leite Eu bebi um pouco de leite

Comparando os dois exemplos acima de Hopper & Thompson (1980, p. 253), notamos que transferência total da ação ocorre apenas na primeira oração. Já o segundo exemplo apresenta tranferência parcial e, portanto, um afetamento de objeto parcial. Por fim, o parâmetro individuação do objeto refere-se ao paciente considerando seu comportamento.

Um objeto individuado apresenta as seguintes propriedades: próprio, humano, animado, concreto, singular, contável, referencial, definido. A não-individuação, por sua vez, contém as propriedades: comum, inanimado, abstrato, plural, incontável, não- referencial. O quadro 2 explicita a constituição do parâmetro individuação do objeto:

Quadro 2 - Individuação do objeto (HOPPER & THOMPSON, 1980, p. 253)

Individuado Não-individuado

Próprio Comum

humano, animado Inanimado

Concreto abstrato

Singular plural

contável incontável

referencial, definido não-referencial

Taylor (1989) afirma, pautado nas concepções de Hopper & Thompson (1980), que o evento transitivo pode codificar estados de coisas distintos. Essa afirmação está de acordo com a ideia de que o estudo da transitividade deve considerar a escalaridade, o protótipo e o que se desvia da construção prototípica.