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CAPÍTULO 1 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: os pilares da pesquisa

1.1. Funcionalismo linguístico

1.1.3. Iconicidade

A iconicidade compõe as bases conceptuais da LCU, justamente por estar relacionada à ideia de motivação linguística. Logo, nesta tese, em linhas gerais, a iconicidade auxiliou na análise das motivações para as configurações transitivas existentes no português kalunga do Vão de Almas-GO.

Sobre a iconicidade, Croft (1990, p. 164) afirma que “a estrutura da linguagem reflete, de certo modo, a estrutura da experiência”. Nesse sentido, no momento da interação, a opção por determinadas estruturas linguísticas de uma dada língua é motivada externamente pelas vivências de seus usuários. Givón (2001), por sua vez, lembra que a noção de iconicidade nos estudos linguísticos começou a ganhar força na década de 1980 a partir das concepções do filósofo norte-americano Pierce. Este afirma que “na sintaxe de cada língua há ícones lógicos que são auxiliados por regras convencionais” (PIERCE, 1940, p. 106, apud GIVÓN, 2001, p. 34). Essa ideia sustenta a noção givoniana de que a iconicidade da gramática não é absoluta, e pode ser observada de modo escalar. Na maioria das construções gramaticais, seus princípios estão mesclados com dispositivos mais arbitrários. A respeito das ideias de Pierce, Neves (1997, p. 106) acrescenta que foi esse autor quem distinguiu a noção de iconicidade imagética e iconicidade diagramática:

a primeira constitui uma semelhança sistemática entre um item e seu referente, com respeito a uma determinada característica, enquanto a segunda se refere a um arranjo icônico de signos, nenhum deles se assemelhando necessariamente a seu referente, sob qualquer aspecto.

É importante dizer que, no presente trabalho, não adotamos a concepção de iconicidade imagética por considerarmos a semelhança entre item e seu referente como algo relacionado à extensão metafórica. Segundo Taylor (1989), extensão metafórica é um processo em que a extensão semântica de uma construção sintática é motivada pela metáfora. Logo, a sintaxe traz consigo os reflexos dessa extensão. Cumpre ressaltar que a extensão metafórica também ocorre no âmbito lexical.

Em contrapartida, nesta tese, adotamos a iconicidade diagramática, pois esta concentra-se no jogo sintático, sem associações literais aos referentes externos. Portanto, a iconicidade diagramática assume uma visão mais conceptual e cognitiva das línguas. Haspelmath (2008, p. 1-2) elenca os subtipos de iconicidade diagramática mais desenvolvidos pelos estudiosos do assunto:

i) Iconicidade de quantidade: grandes quantidades de significado são expressas por maiores quantidades de forma. Um exemplo disso é a flexão de adjetivo do Latim. Aqui, comparativo e superlativo denotam graus cada vez mais elevados e são codificados por sufixos cada vez mais extensos: long(-us) ‘longo’, long-ior ‘mais longo’, long-issim(-us) ‘longuíssimo’;

ii) Iconicidade de complexidade: significados mais complexos são expressos por formas mais complexas. Em Turco, por exemplo, as causativas são mais complexas semanticamente do que as não-causativas correspondentes. Esse viés faz as causativas serem codificadas por formas mais complexas: düş(-mek) ‘cair’, causativa düş-ür(-mek) ‘fazer cair’; e

iii) Iconicidade de coesão: significados que semanticamente devem estar mais juntos são expressos por formas mais coesas. Em sintagmas nominais possessivos com a relação entre os termos parte-corpo, o possuído e o possuidor são conceitualmente inseparáveis. Isso se reflete em uma maior coesão em várias línguas, como em Maltês: id ‘mão’, id-i ‘minha mão’, contrastando com siġġu ‘cadeira’, is-siġġu tiegħ-i [a cadeira de mim] ‘minha cadeira’ (*siġġ(u)-i).

Haspelmath (2008) afirma que as iconicidades de complexidade e de coesão são mais discutidas em estudos sobre iconicidade diagramática. Já a iconicidade de quantidade é raramente tratada. Os jogos de motivação icônica, na perspectiva diagramática, estão associados à visão da não-arbitrariedade das estruturas apresentadas por Givón (2001). Conforme o autor, a iconicidade deve ser compreendida em uma acepção cognitiva da linguagem com o intuito de se analisar a motivação e a não- arbitrariedade da interface entre forma e função. Podemos dizer, então, que a

iconicidade motiva, a partir da extensão da natureza conceptual, a constituição das categorias linguísticas. Isso demonstra que as estruturas não são constituídas arbitrariamente.

Givón (2001, p. 38) aponta que a marcação pode ser analisada como “meta- princípio” que orienta a iconicidade. As imbricações entre marcação e iconicidade exprimem justamente a correlação entre estrutura e complexidade funcional. O autor lembra que a correlação em tela nem sempre é exata. Tais concepções pautam o seguinte princípio: “as categorias que são estruturalmente mais marcadas tendem a ser também substancialmente mais marcadas” (GIVÓN, 2001, p. 38).

Outra observação relevante acerca da marcação é a sua relação de dependência com o contexto. Segundo o autor, a mesma estrutura pode ser marcada em um contexto e não marcada em outro. A comparação entre “She cut the meat with a knife” (ela cortou a carne com a faca) e “A woman cut the meat with it” (uma mulher cortou a carne com isso) (GIVÓN, 2001, p. 38) ilustra a mencionada dependência de contexto. Para sabermos exatamente o referente de “she” no primeiro dado e o referente de “it” no segundo, é preciso conhecer seus contextos de uso.

Nessa perspectiva, cumpre elucidar que a frequência é um espectro importante na análise da marcação. Givón (2001, p. 39) destaca que, em dados orais sobre assuntos do dia a dia, a voz ativa, como “She wrote the book last year” (ela escreveu o livro no ano passado) é predominante no quesito frequência. Já a voz passiva, como “The book was written last year” (o livro foi escrito no ano passado) e as orações com sujeito impessoal, como “One writes books (all the time)” (Escrevem-se livros (todo o tempo)) são predominantes em discursos acadêmicos que abordam temáticas mais abstratas. A justificativa das diferentes frequências das marcações supracitadas pode ser tecida a partir das articulações entre cognição, comunicação, domínios funcionais, espectros socioculturais, correlatos biológicos presentes nas línguas.

Todas essas considerações acerca da iconicidade, que é “um princípio pelo qual se considera que existe uma relação não arbitrária entre forma e função” (NEVES, 1997, p. 103), mostram sua natureza conceptual. E isso será extremamente útil na análise da transitividade do português kalunga no sentido de investigar as motivações dos eventos transitivos. Tais motivações podem ter relações com mudanças inerentes à gramaticalização, tema da próxima subseção.