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CAPÍTULO 1 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: os pilares da pesquisa

1.1. Funcionalismo linguístico

1.1.6. A transitividade: o fenômeno de estudo

1.1.6.2. A transitividade e a semântica dos verbos

Givón (1993a, p. 100) sedimenta sua discussão acerca das relações entre transitividade e semântica dos verbos a partir dos conceitos de três traços semânticos presentes em um protótipo de evento transitivo:

(a) Agentividade: o sujeito da oração transitiva prototípica é deliberadamente um agente. Ele realiza uma ação.

(b) Afetamento: o objeto direto de uma oração transitiva prototípica é concreto e é um paciente indiscutivelmente afetado pela ação do agente.

(c) Perfectividade: o verbo transitivo prototípico é télico, indica evento acabado, rápido, suscetível a mudanças e que aconteceu em tempo real.

Os conceitos apresentados, acima, pelo autor são pautados na proposta escalar de transitividade de Hopper & Thompson (1980). E esta relação com a escalaridade do fenômeno em questão auxilia Givón na construção de sua contribuição semântica. “A formulação de Givón identifica o essencial nos dez fatores arrolados por aqueles autores para identificar a transitividade mais em termos semânticos que morfossintáticos” (CAMACHO, 2002, p. 229). Assim, percebe-se que as propriedades semânticas do agente, paciente e verbo consituem o evento transitivo prototípico e, por isso, a gradiência da transitividade pode ser utilizada na análise da agentividade, do afetamento e da perfectitividade.

O autor, mesmo concentrado no viés semântico, preocupa-se em mostrar a transitividade por meio, também, de conceito sintático: “Verbos (e orações) que possuem um objeto direto serão considerados transitivos; verbos (e orações) que não possuem um objeto direto serão considerados intransitivos” (GIVÓN, 1993a, p. 100; grifos do autor). Portanto, o protótipo sintático da oração transitiva encontra-se na definição de orações e verbos com objeto direto.

Givón (2001) sinaliza também uma restrição no mapeamento entre transitividade semântica e sintática, nas línguas em geral, em orações simples. Em um evento semanticamente transitivo constituído de uma oração simples, com os traços de agentividade, afetamento e perfectividade, o agente, prototipicamente, será o sujeito da oração. E o objeto direto será o paciente. Tais protótipos são válidos nas línguas, inclusive com a restrição de mapeamento supracitada. Entretanto, as diferenças estão na

forma como as línguas aderem à restrição de mapeamento. Em outras palavras, as distinções que alteram os protótipos em tela estão no fato de que as línguas podem permitir que verbos transitivos, do ponto de vista sintático, possuam sujeitos não- agentes e objetos diretos não-pacientes. Sobre essa questão, Givón (2001) aponta que entre as línguas nominativas, o inglês permite amplamente outras funções semânticas, além de agente e paciente, constituir, respectivamente, as funções sintáticas sujeito e objeto direto.

Cumpre salientar aqui a definição de Givón (2001, p. 107) para papéis semânticos. Segundo o autor, os papéis semânticos dos participantes de uma oração orientam os tipos semânticos dos verbos, que são núcleos sintáticos e semânticos da oração. Nesse sentido, as definições dos papéis semânticos são:

• agente = o participante, tipicamente animado, que age deliberadamente para iniciar o evento, e, portanto, tem a responsabilidade por ele (Agt).

• paciente = o participante, seja animado ou inanimado, que ou está em um estado ou registra uma mudança de estado, como resultado de um evento (Pat).

• dativo = um participante consciente no evento, tipicamente animado, mas não o iniciador deliberado (Dat).

• instrumento = um participante, tipicamente inanimado, usado pelo agente para executar a ação (Instr).

• benefactivo = o participante, tipicamente animado, beneficiado por quem a ação é executada (Ben).

• locativo = o local, geralmente concreto e inanimado, onde o estado se encontra, onde o evento ocorre, ou para o qual algum participante está se movendo (Loc).

• associativo = um associado ao agente, paciente ou dativo do evento, cujo papel no evento é semelhante, mas não é tão importante (Assoc).

• modo = o modo pelo qual um evento ocorre ou um agente realiza a ação (Mann). Essas definições estão presentes nas oito subclassificações de protótipos de verbos transitivos relacionados com pacientes que sofrem mudança física propostas por Givón (1984, p. 96-97):

(i) Objeto criado:

a. Ele construiu uma casa b. Ele pintou um quadro c. Ela fez um vestido

d. Ela desenhou um diagrama e. Ele construiu uma ponte (ii) Objeto totalmente destruído: a. Eles demoliram a casa

b. Ela despedaçou o copo c. Eles evaporaram a água (iii) Mudança física no objeto: a. Ela rachou a panela

b. Ele ampliou a cama c. Eles cortaram o milho d. Ela fatiou o salame e. Eles clarearam seu cabelo (iv) Mudança de lugar do paciente: a. Ele moveu o celeiro

b. Eles conduziram o carrinho de mão (v) Mudança com um instrumento implicado: a. Ele martelou a unha (martelo)

b. Ela chutou o muro (pé)

c. Ele deu palmadas no cachorrinho (palma) d. Eles o esfaquearam (faca)

e. Ela prendeu os coiotes (armadilha) (vi) Mudança superficial:

a. Ela lavou a camisa dele b. Eles pintaram o celeiro c. Ele deu banho no bebê (vii) Mudança interna: a. Eles aqueceram a solução b. Ele resfriou o gazpacho

(viii) Mudança com modo implicado: a. Eles a mataram (matar com intenção)

b. Ela despedaçou a xícara (quebrar completamente) c. Eles o surraram (bater forte e repetidamente)

d. Ela rasgou o livro (rasgar completamente, em pequenos pedaços)

Givón (2001, p. 128) acrescenta que alguns verbos prototipicamente transitivos podem denotar um sentido de localização incorporada:

a. Ela os abrigou durante todo o inverno (manter em casa) b. Ele ensacou a maçã (colocar em um saco)

c. Eles os aprisionaram (colocá-los em uma prisão)

As mudanças físicas perceptíveis no objeto-paciente encontram-se relacionadas aos verbos transitivos prototípicos, conforme as subclassificações citadas. Desse modo, Givón (1984, 2001) utiliza a gradiência da transitividade proposta por Hopper & Thompson (1980) a fim de reconhecer que outros verbos podem alcançar graus altos no âmbito sintático. Todavia, a escala de transitividade deve ser analisada também considerando o sujeito-agente: “o sujeito-agente do verbo transitivo prototípico é consciente (tem volição) e ativo (inicia o evento)” (GIVÓN, 1993a, p. 109; grifos do autor).

Vale destacar que Givón (1984, 1993a, 2001) também discute a transitividade desviante do protótipo. As categorias elencadas pelo autor aqui são: verbos com objeto direto locativo; verbos com objeto direto recipiente ou locativo e com paciente implicado; verbos com parte do sujeito em movimento; verbos com sujeito dativo- experienciador; verbos com objeto recíproco/associativo; o verbo ter; e verbos com objetos cognatos.

Nesse contexto analítico, o autor aponta que, pelo fato da transitividade ser escalar, os parâmetros gradientes do fenômeno mostram as variações de sua classificação sintática. Em Ribeiro (2009), ressaltamos que a extensão metafórica auxilia na compreensão dessas concepções givonianas.

Givón (1984) reconhece, no grupo de classificação de verbos prototípicos, identificação e articulação de verbos transitivos mais distantes do protótipo. Essa questão se justifica pelo fato das motivações pragmáticas possibilitarem articulações

entre usos prototípicos e não-prototípicos durante a interação dos/as falantes. Isso configura-se como um caso de extensão metafórica, no sentido de, cognitivamente, durante a interação entre usuários de uma língua natural, ocorrer a equiparação entre verbos prototípicos e não-prototípicos.

De acordo com Lakoff & Johnson (2002), a metáfora constitui a língua, é motivadora das inúmeras possibilidades de construções, combinações sintáticas e semânticas. Logo, “entendemos que a extensão metafórica consiste na transferência de sentido de um conceito fonte de algum elemento para outros construtos” (RIBEIRO, 2009, p. 33). Taylor (1989) embasa essa ideia à medida que considera a extensão metafórica atrelada à metáfora como elemento motivador da extensão semântica em estrutura sintática. Sobre metáfora, tratamos com maiores detalhes na subseção sobre gramaticalização.

No âmbito do discurso, essas questões podem ser analisadas no escopo de como a transitividade com verbos prototípicos e não-prototípicos constituem as estruturas do discurso ideológico, nos termos de van Dijk (2000), como: tópicos, implicações e pressuposições, coerência local, sinonímia e paráfrase, contraste, exemplos e ilustrações, estruturas proposicionais, atores, modalidade, evidencialidade, cobertura e imprecisão, topoi. (cf. subseção 1.2.1.1). Nesse sentido, em nossas análises, observamos as estruturas ideológicas que circundam o evento transitivo de um determinado enunciado discursivo (cf. capítulo analítico).

Cumpre ressaltar aqui que Givón (2001) trata de outros fenômenos ligados à transitividade, no que concerne à classificação de verbos e de orações simples, como intransitividade e verbos bi-transitivos. A semântica da transitividade aqui levantada foi considerada no momento de reconhecimento dos verbos que aparecem nos dados analisados referentes ao discurso do parto do Vão de Almas-GO. A semântica dos verbos proposta por Givón auxilia também no reconhecimento da estrutura do discurso nos moldes de van Dijk (2000). Isso garantiu a ida da transitividade para o campo do discurso, do texto em contexto real; isso implicou análises dos enunciados/orações sim, mas de demonstrações dessas orações em cada discurso analisado; ou seja, não ficamos apenas no microcosmo do verbo e do estudo da oração clássica.

1.1.6.3. As interfaces entre transitividade, relações gramaticais, voz e valência