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CAPÍTULO 1 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: os pilares da pesquisa

1.2. Estudos Críticos do Discurso (ECD): concepções gerais

1.2.1. Discurso e ideologia conforme os ECD: conceitos e estruturas

1.2.1.1. Estruturas do discurso ideológico

Cumpre dizer que o discurso é muito complexo, com muitos níveis de estruturas, cada uma com suas categorias que podem ser combinadas de variadas maneiras. Para van Dijk (2000), os discursos têm estruturas que podem apresentar ideologias, mas isso pode ser mais típico em algumas estruturas. Assim, em tese, o significado semântico e estilo apresentarão mais ideologia do que a morfologia e muitos aspectos da sintaxe porque estes são menos dependentes do contexto. Mas isso não significa que a morfologia e a sintaxe não possam apresentar/representar ideologias. Para tratar das estruturas do discurso, destacaremos estruturas relacionadas ao significado e, depois, ao espectro sintático.

As estruturas relacionadas ao significado têm conteúdo ideológico mais diretamente expresso no discurso. Van Dijk (2000) elenca as seguintes estruturas de significado: tópicos, implicações e pressuposições, coerência local, sinonímia e

paráfrase, contraste, exemplos e ilustrações, estruturas proposicionais, atores, modalidade,evidencialidade, cobertura e imprecisão, topoi.

Os tópicos são significados globais do discurso e mostram as suas informações mais importantes. Eles podem ser construídos com proposições e aparecem com maior recorrência em manchetes de jornais. Mas outros gêneros apresentam tópicos, como sumários, resumos. É importante dizer que há diferença entre tópicos e temas. Os primeiros, em geral, são constituídos de proposições, e os segundos, mais abstratos, podem ser formados por uma única palavra. Nesse sentido, os "tópicos representam a essência ou a informação mais importante de um discurso e nos conta sobre o que é o discurso, globalmente falando" (VAN DIJK, 2000, p. 45). O autor aponta também que "o tópico é tipicamente a informação que é melhor lembrada de um discurso" (VAN DIJK, 2000, p. 45). No dado a seguir, gerado no processo de coleta-piloto, há um tópico:

Excerto 2

M02:CP: É na época eu tava aqui em Brasília, aí fui embora no mês de julho, setembro eu casei...

Nesse dado, o tópico mostra uma informação importante do discurso: o casamento da colaboradora. Assim, aqui, temos um conteúdo relevante do discurso. enunciado.

As implicações e pressuposições estão calcadas em modelos mentais, os quais contêm informações já conhecidas que são acionadas em determinadas práticas sociais para constituir um discurso. Isso pode ser melhor visualizado quando proferimos algo a alguém e, nessa interação, já conhecemos algumas maneiras de pensar do nosso interlocutor. Um exemplo disso ocorre com o dado a seguir:

Excerto 3

(1) M03:CP: Aí uns cozinhava assim um tanto pra mim tomar né, e outro tanto era pra tomar banho, porque disse que a mulher quando ganha neném disse que tem que tomar banho com esses remédio porque senão fica...

(2) Pesquisadora: E como é que é esse banho? Corpo todo ou só as partes? (3) M03:CP: Não, só mais ou menos daqui assim

(4) Pesquisadora: A parte de baixo?

Nesse contexto, a colaboradora estava explicando os banhos medicinais kalunga nas partes íntimas da mulher. Como ela não quis, em primeira instância, denominar o órgão genital feminino, ela utilizou a orientação corporal para que a pesquisadora compreendesse a forma de banho medicinal.

A coerência local é uma das características típicas do significado do discurso. Os significados das proposições de um discurso devem ser relacionados de alguma forma, para haver sentido. Essa coerência pode ser global ou local. No dado 2 da coleta piloto, podemos considerar todas as proposições como sequências de coerência local. Da forma como a colaboradora narrou, notamos a plausibilidade do que foi enunciado (estava em Brasília, foi embora de volta ao Vão de Almas-GO em julho e em setembro se casou).

A sinonímia e a paráfrase são também propriedades semânticas do discurso que tratam das relações entre as proposições. A sinonímia estrita não existe, pois cada palavra tem sua nuance de significado. E esse mesmo princípio rege a paráfrase. Por mais que queremos dizer “a mesma coisa”, uma reescrita ou uma nova fala não é exatamente igual ao texto original. Um exemplo disso em dados da coleta-piloto aparece quando duas colaboradoras enunciam o mesmo conteúdo, mas com usos diferentes:

Excerto 4

M04:CP: [...] tinha um outro prefeito lá só que o outro prefeito tinha [tentando lembrar] H01:CP: Se suicidado

M04:CP: é tinha se matado ele mesmo

M04:CP realiza uma paráfrase da fala de H01:CP, optando por uma estrutura redundantemente mais transitiva, com o intuito de garantir entendimento (“tinha se matado ele mesmo”).

Já o contraste é uma forma de polarização de ideias que mostram a ideologia por meio da estrutura linguística. Um exemplo disso, conforme van Dijk (2000, p. 49), é a polarização que se pode realizar com os pronomes “nós” e “eles” (nós trabalhamos duro, e eles são preguiçosos). Nas ocorrências da coleta-piloto, encontramos o contraste entre os advérbios “aqui” e “lá”:

Excerto 5

M05:CP: 95. Aí eu casei setembro de 95, aí mais ou mês de outubro foi uns pai lá em casa. Meu tio, que é o pai da E., foi lá falou: “M., vamos ver se você arruma uma escola aqui pra você dar”, porque tem tantos meninos aqui que tão sem estudar, porque na época só tinha duas escolas lá, duas municipal e uma estadual. Mas mesmo com as dificuldade, rio encheno, muitos menino na época não estudava; aí tá bom, aí a gente fomos lá em Cavalcante, aí conversou, mas “ah não, já tava chegando o final do ano” aí eles pegou deixou pra gente voltar mês de fevereiro[...]

Como a colaboradora estava em Brasília no momento da coleta, ela utilizou “lá” para referir-se à casa dela no Vão de Almas-GO e à própria região kalunga. Mas quando ela reproduz a fala do tio, usa o “aqui”, reproduzindo a situação no Vão de Almas-GO. Ao final, a colaboradora utiliza “lá” para acompanhar “em Cavalcante”, demarcando que essa cidade é um locus distante (apesar de Cavalcante ser uma das cidades mais próximas do Vão de Almas-GO). Discursivamente, o “lá” indica o lugar que não me pertence. Por isso, o contraste entre lá e aqui.

Os exemplos e as ilustrações são relações discursivas que mostram relações por analogia. Se usamos exemplos atrelados ao “nós” e ao “eles” como comprovação de ideias, é um método de apresentar ideologias. Na ocorrência acima, temos exemplos e ilustrações: “rio encheno, muitos menino na época não estudava” são exemplos das dificuldades relatadas pela colaboradora.

As estruturas proposicionais demonstram que o discurso é organizado em proposições. Uma frase ou uma sequência de frases podem expressar uma ou mais proposições, com sentidos variados. Cumpre dizer que a análise filosófica e a lógica tradicional de proposições atribuíram-lhes a noção de predicado; este contém argumentos em sua constituição. No predicado, há a presença dos atores. Estes podem assumir vários papéis semânticos, como agente, paciente ou beneficiário de uma ação (cf. subseção 1.1.6.2). Assim, reconhecer ideologicamente os atores de determinados argumentos torna-se atividade essencial para analisar detalhadamente as práticas sociais envolvidas.

A modalidade tem a função de modificar proposições conforme nossas representações de mundo, nossas ideologias, nossas crenças. Estruturas como “É necessário que”, “É possível que” ou “Sabe-se que” são exemplos de modalidade.

Por sua vez, a evidencialidade é a “prova”/fonte do que se enuncia. Os evidenciais expressam crenças e ideologias também, pois cada gênero, contexto e cultura têm seus próprios critérios de avaliação para o que é boa evidência, ou o que

seriam evidências aceitáveis ou ruins. Exemplos: “eu já vi com meus próprios olhos”, “eu li no jornal”, “o médico disse que”, etc. A colaboradora do Vão de Almas-GO utilizou a evidencialidade para manter os conhecimentos tradicionais acerca dos cuidados pós-parto, apontando as orientações de sua mãe sobre o que comer ou não após o parto:

Excerto 6

M01:CP: Aí quando eu ganhei a menina aí tô lá né, vai a bandeja, quando eu olho só verdura, falei “vixi, agora”; aí eu falei logo: “não vou comer não”. Aí como eu ficava mais uma mulher lá, que é enfermeira né, aí ela: “não M., pode comer, não faz mal não, aonde é que você já viu” Aí eu disse: “não, mas mãe disse que essas comida aí faz mal, não vou comer não”.

A cobertura e a imprecisão são instrumentos linguísticos políticos e ideológicos. É possível cobrir ou ser vago quando não sabemos uma informação ou quando não queremos parecer “politicamente incorretos”. Eufemismos e negações indiretas são exemplos de cobertura e imprecisão. No caso do verbo “conversar” do exemplo M01:CP, a ausência do “com quem conversou” demonstra essa imprecisão para proteger a própria face:

Excerto 7

M01:CP: [..] aí tá bom, aí a gente fomos lá em Cavalcante, aí conversou, mas “ah não, já tava chegando o final do ano” aí eles pegou deixou pra gente voltar mês de fevereiro[...]

A colaboradora não revela com quem conversou, nem no sentido institucional (conversar com prefeito, com prefeitura). Essa é uma maneira de proteção de face da própria colaboradora talvez por medo de uma possível represália por parte do poder constituído e que está sendo exposto aí.

Por fim, o topoi (um tipo de lugar-comum) se define como tópicos padronizados e divulgados. Ideologicamente, os topoi são utilizados para disseminar ideias dominantes, mas com carapaça de tolerância. Exemplo de topoi: “os refugiados e outros imigrantes são recomendados para ficar em seu próprio país, para ajudar a construí-lo”. (VAN DIJK, 2000, p. 53).

No que tange ao espectro sintático, van Dijk (2010, 2000) ressalta que o uso de uma oração passiva no lugar de uma ativa, ou vice-versa, é uma forma de enfatizar, ou não, a responsabilidade pela ação. E a topicalização ou rebaixamento de elementos de

uma oração são mecanismos para que isso ocorra sintaticamente. A consequência desse rebaixamento ou topicalização nas orações passiva ou ativa é a representação ideológica, via sintaxe, do conteúdo a ser destacado ou não. Sem dúvidas, ao observarmos as vozes verbais e valências, no âmbito do Protocolo-Mãe (cf. capítulo analítico), com diferentes camadas, nossas análises alcançaram relações diferenciadas, foram além do espectro da forma ou da função isoladas em uma sentença, uma vez que o nosso olhar se direciona para além da sentença, em direção ao discurso.

Assim, sedimentados nesses princípios discursivos de van Dijk (1999, 2010), buscamos construir uma tese linguística orientada pelas relações entre análise do micronível das estruturas e análise do macronível social com a intenção de alcançarmos uma cosmovisão sociopolítica crítica. Isso foi possível porque fizemos a análise da transitividade do português kalunga em discursos do parto, combinando microanálise linguística e reflexões discursivas acerca do que essa microanálise apontou. E, enfim, em uma postura de contribuição social, mostramos que o povo kalunga constrói e mantém, via língua, via discurso, via vivência, via escola, seus letramentos, suas identidades, seus conhecimentos. A partir da LCU, a microanálise linguística estará presente, pois registraremos os usos da transitividade encontrados no Vão de Almas- GO.

1.3. Os Letramentos: concepções gerais, definições e aplicações para esta pesquisa