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Os Letramentos: concepções gerais, definições e aplicações para esta pesquisa

CAPÍTULO 1 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: os pilares da pesquisa

1.3. Os Letramentos: concepções gerais, definições e aplicações para esta pesquisa

variadas disciplinas sociais, como Educação, Psicologia e Antropologia. E, no âmbito da Linguística, foi ocupando espaço com as Políticas de Letramento, associadas intrinsecamente com o desenvolvimento da língua escrita. Assim, de forma geral, para Rojo (2009), Letramento já é em si uma área multidisciplinar, bastante ligada à Linguística e à Educação, justamente por relacionar práticas sociais da linguagem, contextos, leitura, escrita à luz de um viés sociológico, antropológico e sociocultural.

A partir desse viés, inúmeros estudos a respeito da oposição língua oral e língua escrita tomaram força durante a década de 1970, como análises de comunidades com longa tradição escrita e de comunidades mais pautadas na oralidade. Goody (1968, apud RIOS, 2002), por exemplo, aponta que a escrita, em algumas culturas do norte de Gana, foi usada de modo mais estrito, em situações de rituais religiosos, e defende que a escrita é uma via pertinente para repassar pensamentos especializados, conceitos

abstratos. Essa linha analítica defende também que a escrita promove o desenvolvimento da história, da filosofia e de espectros sociais complexos, como a burocracia.

Estudos os quais contemplam escrita e oralidade no tocante à organização lógica do pensamento começaram a ser questionados na década de 1980. De acordo com Rios (2002), a concepção de letramento como prática iniciou-se com o trabalho acerca de Vai, na África (SCRIBNER & COLE, 1981, apud RIOS, 2002). Os autores analisam que as práticas reais, vivenciadas por uma sociedade, demonstram letramento. No caso do Vai, a sociedade estava se relacionando com tipos distintos de escrita, a Vai, uma indígena, Árabe e Inglês. Essas escritas se articulavam a variadas situações de vivência e a escola foi importante nisso. Contudo, o desenvolvimento de raciocínio lógico não ocorreu, considerando os moldes de tradições ocidentais.

Nessa perspectiva, Street (2014) aponta que, nos anos 1980, surgiram análises de letramento e oralidade à luz da ideia de contínuo, refutando a divisão, a oposição, tão discutidas na década anterior. Todavia, para o autor, essa mudança de paradigma da divisão para contínuo não ocorreu de fato, pelos seguintes motivos:

definição restrita de contexto social, relacionada com a divisão, na linguística, entre pragmática e semântica; a reificação do letramento em si mesmo em detrimento do reconhecimento de sua localização em estruturas de poder e ideologia, também relacionada a pressupostos linguísticos gerais sobre a 'neutralidade' de seu objeto de estudo; e a restrição de 'significado' dentro da linguística tradicional no nível da sintaxe.

(STREET, 2014, p. 171) É nesse contexto que o autor, ainda nos anos 1980, propõe o modelo ideológico de letramento4, em distinção do modelo autônomo de letramento. Para Street (2014), o modelo autônomo preocupa-se com as variáveis técnicas e individuais do letramento, sem considerar contexto social. Rojo (2009) destaca que o enfoque autônomo prevê que o indivíduo desenvolve habilidades de leitura e escrita conforme seu contato com esses elementos em ambiente escolar. Já o modelo ideológico, conforme Street (2014), vê o letramento de modo diversificado, em que leitura e escrita não são vistas apenas em ambiente escolar. Os letramentos estão articulados com as práticas sociais, contextos sociais/culturais e com as relações de poder.

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Street (2014, p. 173) afirma que o termo "ideológico" não se refere ao marxismo e ao antimarxismo, mas sim à ideologia como "lugar de tensão entre autoridade e poder, de um lado, e resistência e criatividade individual, do outro [...] Essa tensão opera por meio de uma variedade de práticas culturais, incluindo particularmente a língua e, claro, o letramento".

Street (2014, p. 172) diz que a distinção entre modelo autônomo e ideológico foi criticada por alguns estudiosos, que a consideraram como "uma polarização desnecessária e prefeririam uma síntese". Mas, para o autor, quem faz a polarização mencionada são os pesquisadores que utilizam a concepção autônoma, a partir do momento em que polarizam elementos técnicos e culturais do letramento. A respeito do modelo ideológico, o autor ressalta que

[...] não tenta negar a habilidade técnica ou os aspectos cognitivos da leitura e da escrita, mas sim entendê-los como encapsulados em todos culturais e em estruturas de poder. Nesse sentido, o modelo ideológico subsume, mais do que exclui, o trabalho empreendido dentro do modelo autônomo.

(STREET, 2014, p. 172) Da crítica ao modelo autônomo e da adoção do modelo ideológico, surgem os Novos Estudos do Letramento. Gee (2008, p. 67) é quem cunha a expressão Novos Estudos do Letramento, abordando espectros socioculturais:

Os Novos Estudos do Letramento têm suas origens no colapso do velho contraste "cultura oral – cultura letrada". Fora da desconstrução desse contraste, virão abordagens mais contemporâneas para o letramento não como algo singular, mas como um conjunto plural de práticas sociais: letramentos. Tradução nossa5

Gee (2008) contribui bastante para a discussão das abordagens dos Novos Estudos do Letramento. O autor retoma o modelo ideológico, discute as concepções de primitivo e civilizado, e questiona o contraste oralidade-letramento, propondo a perspectiva de diferentes visões de mundo. Partindo dos Novos Estudos do Letramento, o grupo de Lancaster, liderado por Barton & Hamilton (2000), desenvolve a Teoria Social do Letramento, calcada nas práticas e nos eventos de letramento. Segundo os autores, o Letramento como prática social possui as seguintes características:

 letramento é melhor entendido como conjunto de práticas sociais; estas podem ser inferidas a partir de eventos que são mediados por textos escritos;  existem diferentes letramentos associados a diferentes domínios da vida;  práticas de letramento são padronizadas por instituições sociais e relações de

poder, e alguns letramentos são mais dominantes, visíveis e influentes do que outros;

 práticas de letramento são propositais e encaixadas em objetivos sociais mais amplos e práticas culturais;

 letramento é historicamente situado;

5 the New Literacy Studies has its origins in the collapse of the old “oral culture–literate culture” contrast.

Out of the deconstruction of this contrast come more contemporary approaches to literacy not as a singular thing but as a plural set of social practices: literacies.

 práticas de letramento mudam e as novas são frequentemente adquiridas através de processos de aprendizagem informais e de produção de sentido.

(BARTON & HAMILTON, 2000, p. 8) Os eventos de letramento, por sua vez, são atividades em que o letramento tem uma função social. Os autores ressaltam que os eventos estão em consonância com a natureza situada do letramento. Nessa linha, uma importante contribuição de Barton & Hamilton (1998) encontra-se sedimentada na concepção de letramentos dominantes e letramentos vernaculares. "Práticas de letramento vernaculares são essencialmente aquelas que não são regidas por regras e procedimentos das instituições sociais dominantes formais; são as que têm suas origens na vida cotidiana" (BARTON & HAMILTON, 1998, p. 247). Já os letramentos dominantes, por sua vez, fazem parte das instituições formais, em que a escrita se sobrepõe, soberanamente, à oralidade. Tais visões, especialmente a de letramentos vernaculares, são fundamentais para o presente trabalho porque o eixo temático dos dados orais e escritos gerados está ancorado no cotidiano: o nascer, o parto, os cuidados com a mãe e o bebê kalungas.

É importante ressaltar que, neste trabalho de tese, assumimos o modelo ideológico, as práticas e eventos de letramentos, bem como a concepção de letramentos vernaculares como espectros teóricos e de análise dos letramentos, pois coadunam-se com um caminho de visualização da transitividade dos discursos do parto a partir do prisma das práticas, vivências e conhecimentos que o/a kalunga tem dessa temática. Isso implica afirmar que os cuidados típicos kalunga acerca do antes e depois do parto são sim conhecimentos científicos internos, práticas e eventos que devem ser reconhecidos e valorizados. E essas concepções permitem realizar análises de textos orais, que foram gerados por meio de entrevistas com as mulheres kalunga do Vão de Almas-GO. No tocante aos textos escritos (que foram arrolados durante as oficinas no nono ano da Escola Santo Antônio), registramos, neste estudo, no âmbito de nossa contribuição social (cf. capítulo metodológico).

Nessa seara, o enfoque ideológico – pautado nas práticas sociais, culturais e nos contextos – nos auxilia na análise da transitividade, bem como na contribuição social que realizamos com a comunidade. Após esse reconhecimento do enfoque ideológico como eixo norteador da nossa concepção de letramentos, cabe destacarmos que os múltiplos letramentos e o letramento crítico também contribuirão nesta tese.

Os múltiplos letramentos, de acordo com Street (2012), estão pautados em práticas sociais multifacetadas e situadas, desafiam o letramento singular e autônomo

supracitado, remetem à relação entre letramentos e culturas, e variam no tempo e no espaço. A concepção de múltiplos letramentos, por abarcar o letramento ideológico, contesta as relações de poder. E isso coaduna-se com um dos princípios dos Estudos Críticos do Discurso, de justamente questionar relações de poder e buscar contribuições sociais para a comunidade pesquisada. E, certamente, esse é um aspecto de nossa pesquisa.

Nesse sentido, os múltiplos letramentos abarcam diferentes saberes e conhecimentos em práticas sociais cotidianas e situadas. Existem diferentes agências de letramentos, não só a escola (STREET, 2012). Assim, no decorrer deste trabalho, essencialmente nos capítulos metodológico e analítico, destacamos a coexistência dos conhecimentos da comunidade kalunga de Vão de Almas-GO e os conhecimentos externos (que envolvem a medicina ocidental); valorizamos os letramentos vernaculares (da comunidade), imateriais no sentido de não ser escrito, ser oral – para promover seu reconhecimento e empoderamento – por meio de um letramento dominante, de escrita formal e acadêmica, em que a própria tese se constitui. Além disso, como contribuição social, a pedido das/os kalunga, promovemos letramentos nos âmbitos escolares e da escrita partindo de práticas sociais situadas (cf. capítulo metodológico).

Ideologicamente, os múltiplos letramentos relacionam-se com a abordagem ecológica discutida por Barton (1994) e com os letramentos críticos apontados por Luke (2000). Uma abordagem ecológica de letramentos não está restrita à escola; as diversas práticas sociais de uma sociedade constituem os letramentos, de modo orgânico e situado na vida cotidiana. E os espectros sociais, históricos e psicológicos devem ser levados em conta na análise das práticas de letramentos.

A abordagem ecológica contribui significativamente neste trabalho por considerar a sociedade como um todo, como possibilidades de ambientes para as vivências de letramentos, e não apenas o “ecossistema” escola. E essa visão (re)significa as práticas de letramentos, contemplando a oralidade, a leitura de mundo, e não supervalorizando a escrita e a leitura de decodificação, por exemplo. A abordagem ecológica do Letramento é uma concepção que se aproxima da Ecolinguística (cf.capítulo metodológico) por considerar a noção do ambiente, do ecossistema como algo que está intrinsecamente relacionado às práticas sociais de linguagem. E, no caso da abordagem ecológica do Letramento, sua grande contribuição é reconhecer outros ambientes de letramentos além do escolar.

Já os letramentos críticos têm relação intrínseca com a pesquisa-ação que vivenciamos no contexto escolar com a comunidade, que será tratada no capítulo metodológico. Segundo Luke (2000), o letramento crítico não prevê uma fórmula pronta e infalível para a sala de aula. O lado crítico privilegia justamente diferentes vivências de letramentos, em práticas sociais situadas na comunidade. É certo que o letramento crítico tem o objetivo geral de alcançar melhorias nos processos de leitura e escrita dos estudantes em ambiente escolar. Todavia, cada realidade deve ter uma proposta de letramentos compatível com suas pessoas e identidades. E, para nós, compatível com o ambiente físico e social dos indivíduos.

Portanto, nosso objetivo aqui é mostrar que a transitividade, fenômeno além da sentença e que constitui discursos, também revela enquadre de letramentos quando consideramos as práticas sociais. Estas estão articuladas às diversas culturas e conseguem ultrapassar as barreiras hegemônicas da cosmovisão tradicional de leitura e escrita ligadas apenas a alfabetização e decodificação. E, no caso do conhecimento, apontar que o enfoque ideológico é mais condizente com a realidade kalunga. Logo, a junção entre múltiplos letramentos, abordagem ecológica e letramentos críticos e transitividade culmina em uma postura ideológica dos letramentos: legitimar saberes e práticas sociais contra-hegemônicas por meio das estruturas transitivas, dos enunciados discursivos produzidos pelos falantes.