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CAPÍTULO 1 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: os pilares da pesquisa

1.1. Funcionalismo linguístico

1.1.2. Protótipo e Continuum

Para Givón (2001), a ideia de protótipo encontra-se pautada na existência de um representante possuidor de características mais salientes de uma categoria. E a prototipicidade contribui na análise de categorias linguísticas à medida que observa suas características típicas e desviantes.

Taylor (1989) propôs uma categorização via protótipos, em que uma dada estrutura linguística pode ser mais ou menos prototípica conforme a categoria analisada. Os estudos de Hopper & Thompson (1980) exemplificam essa proposta de Taylor (1989), pois os autores tratam a transitividade também a partir dos protótipos, com uma perspectiva gradiente do fenômeno: orações transitivas prototípicas são as que possuem um verbo de ação, com sujeito agentivo, intencional e objeto afetado, como em “João chutou a bola”. Já “João viu a bola” é uma oração menos prototípica do que a anterior, visto que o verbo “ver” é de percepção, não de ação.

A prototipicidade contribui na construção de categorias linguísticas sedimentadas nos processos cognitivos constitutivos da linguagem. Faz-se necessário elucidar que a noção de continuum apresenta-se como fundamental para a compreensão dos protótipos. Para Givón (2001), o continuum prevê as mudanças de um processo linguístico a partir de sua frequência e movimentação. Essa perspectiva de categorização não visa codificar usos e estruturas de maneira isolada e estanque. As

categorias prototípicas servem de parâmetros na verificação dos diversos usos linguísticos, sendo eles típicos ou não.

É importante dizer que Givón (2001) fornece um enfoque mais psicológico à abordagem de protótipos, citando os princípios postulados por Rosch (1973, 1975), sustentados nas categorizações humanas: recursos criteriais múltiplos, em que vários espectros de critérios podem determinar as características dos membros de uma categoria; protótipos e membros mais típicos: o membro que apresentar mais recursos criteriais de uma dada categoria é considerado o mais prototípico. Mas outros membros podem apresentar menos recursos e, ainda sim, pertencerem à mesma categoria; associação característica forte: os recursos criteriais de uma categoria tendem a ser bastante associados. E, na maioria das vezes, possuir uma característica implica ter outras; e agrupamento em torno de categorias de significado (protótipo): o protótipo orienta a categorização em torno de significados semelhantes.

Desse modo, os protótipos, metodologicamente, orientam análises de categorias gramaticais. A prototipicidade cumpre o papel de mostrar, via usos, aquilo que configura uma caracterização marcada (ou não) da língua. É válido dizer que essa caracterização não se resume a uma simples classificação. A caracterização é um modo de se perceber e de se observar as posturas possíveis de um protótipo.

Outra concepção interessante acerca da prototipicidade está associada à ideia de “semelhanças de família” ou “ar de família”. Duque (s.d.a) assinala que Wittgenstein, em uma perspectiva filosófica, cunhou a expressão “semelhanças de família” para designar uma rede entrecruzada de semelhanças. Para ilustrar essa ideia, Wittgenstein lista distintos jogos (jogos de cartas, de tabuleiro, etc.) e aponta que nenhum deles tem conjunto de traços em comum, mas sim uma rede entrecruzada de semelhanças, parentescos. Nesse sentido, as categorias são difusas.

As “semelhanças de família”, com seus questionamentos a respeito dos traços em comum e, consequentemente, da existência de um exemplar prototípico seminal de uma dada categorização, contribuíram para uma construção da Teoria dos Protótipos, de caráter cognitivista. A Teoria dos Protótipos aponta que as categorias são heterogêneas, dinâmicas e não binárias. Um estudo experimental sobre as cores básicas feito por Berlin & Kay na década de 1960 mostra que o continuum com as categorias de cor gira em torno de entidades focais, e sua generalização encontra-se articulada a fatores biológicos, cognitivos e ambientais. “Assim, as categorias de cor têm centro e periferia

e seus membros, em consequência, não têm todos o mesmo status (existem roxos melhores, verdes melhores, amarelos melhores etc.)” (DUQUE, s.d.a, p. 10).

A Teoria dos Protótipos, portanto, lida com a acepção de atributos, e os falantes possuem um centro cognitivo, de percepção ou conceptual, que norteia a estruturação das categorias. E isso permite que membros mais distantes do centro cognitivo façam parte de novas categorias. Essa característica deixa a prototipicidade mais maleável e leva em conta mais possibilidades de usos linguísticos, sem descartar aquilo que seria um “mau exemplo”:

A Teoria dos Protótipos introduz, assim, uma metodologia alternativa de análise e apresentação da estrutura do significado. Uma descrição categorial deve considerar, como fonte dos atributos a incluir, tanto os bons e os maus exemplos, quanto os membros marginais (de pertinência duvidosa). Com esta informação é possível construir o mapa categorial, que deve apresentar os atributos em ordem de representatividade.

(DUQUE, s.d.a, p. 10-11) Essa maleabilidade permite uma nova visão acerca dos protótipos, conforme o esquema a seguir:

Figura 1 - Esquema de Givón (1986 apud Duque, s.d.b, p. 6).

O esquema acima aponta uma relação colateral entre os membros de uma categoria e seus atributos, sem centralizar a prototipicidade em torno de um membro com traços mais salientes. A relação colateral, em cadeia, em que cada membro se aproxima um a um, promove uma visualização do todo de uma categoria e, ao mesmo tempo, a possibilidade de criação de novas categorias. Cumpre dizer que a noção de categoria, aqui, também foi ampliada, já que na Teoria dos Protótipos é possível estabelecer maiores relações entre diferentes categorias, e não descrever uma apenas. Duque (s.d.b, p. 8) assinala as contribuições dessa nova maneira de olhar os protótipos:

a) O protótipo se reduziu a um fenômeno de superfície;

b) O protótipo toma diferentes formas, de acordo com o modelo da categoria que a cria, daí a denominação de efeitos prototípicos;

c) Sua extensão, no campo da polissemia, através da noção de semelhança de família, favorece o surgimento de uma flexibilidade que lhe priva, do elemento definidor essencial da versão padrão, o protótipo. Ainda que apenas seja considerado como efeito, já não é, obrigatoriamente, o exemplar reconhecido como o mais idôneo pelos indivíduos.

Para discutirmos a importância dos protótipos, sua relação com a transitividade e o discurso, a seguir um excerto que faz parte da coleta-piloto de dados que realizamos em um de nossos trabalhos de campo junto às/aos kalunga:

Excerto 1

M01:CP: 95. Aí eu casei setembro de 95, aí mais ou mês de outubro foi uns pai lá em casa. Meu tio, que é o pai da E., foi lá falou: “M., vamos ver se você arruma uma escola aqui pra você dar”, porque tem tantos meninos aqui que estão sem estudar, porque na época só tinha duas escolas lá, duas municipal e uma estadual. Mas mesmo com as dificuldade, rio encheno, muitos menino na época não estudava; aí tá bom, aí a gente fomos lá em Cavalcante, aí conversou, mas “ah não, já tava chegando o final do ano” aí eles pegou deixou pra gente voltar mês de fevereiro[...]

Cumpre dizer que esse instante foi o início da conversa com a colaboradora. Antes de dialogarmos sobre o parto, temática de cunho íntimo, que merece todo o cuidado e respeito, primeiro abordamos as vivências de um modo geral. No caso, essa colaboradora é kalunga do Vão de Almas-GO e professora da escola que também faz parte do universo de pesquisa. Por isso, aqui, o surgimento da escola entra em cena.

Depois dessa contextualização, vamos observar a construção que possui o verbo “conversar” como núcleo do evento transitivo. Nota-se, no contexto, que após o verbo “conversar” não há um complemento do tipo [com alguém]. Houve aí uma ausência do complemento. Mas, pelo contexto, deduzimos que M:CP e seu tio conversaram com autoridades. “lá em Cavalcante” (cidade goiana da qual a comunidade kalunga Vão de Almas faz parte considerando-se a noção de município) e “eles pegou deixou pra gente voltar mês de fevereiro” são as estruturas as quais permitem o reconhecimento semântico e discursivo do que seria um complemento se o uso do verbo em tela fosse prototípico.

Sobre protótipo e afastamento do protótipo, podemos dizer que o discurso motivou essa relação: o verbo “conversar” implica um complemento em sua versão prototípica. No contexto, não aparece esse complemento, e esse vazio não é automático ou do tipo objeto nulo ou zero. Esse apagamento do complemento pode ter sido causado

pela necessidade de não querer/poder explicitar a entidade que aí apareceria: o prefeito, a prefeitura, o secretário de Educação, a secretaria de Educação, ou seja, o poder público instituído. Justamente, essa omissão pode ter sido feita para evitar colocar esse poder como problemático.

Em nossas análises, usamos as concepções de protótipo para tentar justamente entender os usos linguísticos típicos e/ou atípicos da transitividade nos discursos sobre o parto. Depois dessas considerações sobre o protótipo, faz-se necessário apresentar as concepções de iconicidade que também orientam o presente trabalho.