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As interfaces entre transitividade, relações gramaticais, voz e valência

CAPÍTULO 1 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: os pilares da pesquisa

1.1. Funcionalismo linguístico

1.1.6. A transitividade: o fenômeno de estudo

1.1.6.3. As interfaces entre transitividade, relações gramaticais, voz e valência

preciso antes reconhecer as relações gramaticais (RGs), uma vez que estas apresentam estruturalmente as relações entre as palavras nas frases e orações (PAYNE, 2006). E nessas relações é que a voz verbal é codificada e, consequentemente, a valência também, como veremos mais adiante.

As relações gramaticais ocorrem entre os termos sintáticos sujeito, objeto direto, objeto indireto, ergativo, absolutivo, predicado. E, como outras noções estruturais, RGs são discutidas no âmbito sintático estritamente, sem considerar o viés semântico. Outro ponto fundamental sobre as RGs é que são essencialmente conceitos relacionais. Logo, para analisar as RGs é preciso haver, no mínimo, dois elementos relacionados. Um elemento nominal único não promove relações no nível sintático. Assim, as propriedades gramaticais que identificam RGs são determinadas por construções sintáticas, e não simplesmente por propriedades semânticas individuais de substantivos ou verbos a priori (PAYNE, 2006).

Quando se discutem RGs, inevitavelmente o termo argumento entra em cena, para se referir a qualquer elemento nominal que tenha uma relação gramatical com um verbo, ou com outro substantivo. Essas relações entre argumentos não são estanques; elas variam conforme as tendências estruturais das línguas. Cumpre dizer que há também o não-argumento, ou oblíquo, que é algo que não tem uma relação gramatical. De acordo com Payne (2006), a identificação das RGs pode se dar por: marcação de caso nos nomes, marcação morfológica em verbos e/ou ordem dos constituintes.

Mesmo as RGs sendo estritamente sintáticas, elas têm relações com os papéis semânticos, partindo de protótipos. O sujeito, por exemplo, é prototipicamente agente; e o objeto é paciente. Mas a quebra desse protótipo é justamente o que mais interessa em nossa análise, uma vez que ela, via de regra, é motivada pragmático-discursivamente.

Aqui chegamos ao espectro da voz verbal, em que motivações pragmático- discursivas geram formas morfológicas e sintáticas específicas para comunicar de uma dada forma, com um dado propósito. Neste trabalho, nos detemos nas relações entre voz, valência e transitividade. No capítulo analítico, as vozes verbais foram consideradas no Protocolo-Mãe. Antes de adentrarmos no assunto “voz verbal”, falemos de valência.

Segundo Payne (2006, p. 237), valência pode ser discutida sob a égide da semântica, da sintaxe, ou em uma combinação das duas. Assim, a valência semântica refere-se ao número de participantes na cena previsto por um verbo. Um verbo prototipicamente transitivo pede um agente e um paciente. Mesmo na voz passiva, essa valência semântica continua viva. Em Português, podemos ver isso em “Monaliza foi roubada (por ladrões italianos)”. Mesmo sendo passiva, prevemos a existência de dois participantes na cena, mesmo que um deles (o agente no caso) não seja explicitado por alguma razão. Já a valência sintática refere-se ao número de argumentos exigidos pelo verbo. Tomando por base o exemplo anterior, vemos que a passiva apresentada só tem um argumento obrigatório (“por ladrões italianos” não é um argumento; é um tipo de adjunto). Enquanto a forma ativa dela (“Ladrões italianos roubaram a Monaliza”) tem necessariamente dois.

Vejamos outro exemplo em português. Dependendo de como o verbo “comer” é utilizado, é possível reconhecê-lo com valência sintática 1 ou 2. Em “Meu filho não comeu hoje”, não há objeto direto, por isso, “comer” aqui tem valência 1. Isso porque não há tanta importância na comunicação em expressar o que foi comido. Há, portanto, um novo sentido associado a esse “comer” intransitivo. Sua valência sintática é um.

Assim, os verbos das línguas podem ser monovalentes (valência 1), no caso do verbo expressar apenas 1 argumento; bivalentes (valência 2), quando o verbo expressa 2 argumentos – os verbos transitivos são exemplos disso – e trivalentes, quando o verbo envolve 3 argumentos. Payne (2006) afirma que os trivalentes, muitas vezes, são chamados de bitransitivos. Esses termos são baseados no fato de que verbos como “dar” podem ter dois objetos: a coisa dada e o destinatário. A valência é mais geral, pois considera todas as possibilidades de argumentos, e não apenas os objetos. Aqui cumpre registrar que, em Português, podemos pensar em verbos sem valência, ou melhor, avalentes. Isso significa que esses verbos não possuem nenhum argumento. Exemplos disso são os verbos que denotam fenômenos da natureza, como “chover”, “amanhecer”, “nevar”, “trovejar”, etc.

Payne (2006), a partir da valência, tece relações com a transitividade, uma vez que a presença ou não de argumentos influencia estruturalmente na organização transitiva. Uma valência 1, por exemplo, expressa intransitividade, enquanto valência 2 aponta transitividade. O autor considera essa visão como bastante atrelada à ideia tradicional de transitividade e cita os estudos de Hopper & Thompson (1980) como importantes, pois os autores em tela ampliaram a concepção tradicional de

transitividade, referindo-se ao grau em que um agente volitivo ativo transfere uma ação para um paciente (cf. subseção 1.1.6.1). Mas, vale registrar, que os graus de transitividade podem variar consideravelmente, independentemente do número de argumentos que um verbo tenha. E é disso que tratam Hopper & Thompson em seu clássico artigo de 1980.

Diante do exposto até aqui, podemos ainda verificar que a voz verbal influencia no ajuste da valência verbal e esses dois mecanismos, por sua vez, interferem no esquema transitivo de uma oração como um todo, chegando a afetar todo um dado discurso. A voz verbal ocupa-se de reger a interação entre papéis semânticos, papéis pragmáticos, relações gramaticais e os processos morfológicos que mostram especificidades de voz. A relação entre voz verbal e discurso ainda precisa ser mais amplamente investigada. Estudos funcionalistas têm essa preocupação, e nós buscamos discuti-la considerando a voz verbal no âmbito do Protocolo-Mãe (cf. capítulo analítico).

Payne (2006) propõe uma tipologia funcional das construções de ajuste de valência, partindo do conceito de voz:

Quadro 3 - Construções com diminuição da valência

 reflexivas, recíprocas e médias: combinam controle e afetamento em um único participante;

 omissão de sujeito e passiva: desconsideram um participante de controle;

 omissão de objeto, antipassiva, rebaixamento de objeto, incorporação de objeto: desconsideram participante afetado.

Quadro 4 - Construções com aumento de valência  Causativas: adicionam um participante de controle;

 aplicativas, deslocamento dativo, alçamento de possuidor, dativo de interesse: destacam um participante periférico.

As definições acima são generalizações propostas pelo autor e que podem ser analisadas em trabalhos que se ocupam, de modo central, nessas questões. Após essas considerações acerca dos pressupostos que circundam a transitividade e a LCU, fenômeno e arcabouço teórico principal deste trabalho, respectivamente, faz-se necessário apresentar dois eixos teóricos que auxiliarão nossa análise: os Estudos

Críticos do Discurso (ECD), conforme van Dijk (1999, 2000, 2010), que amparam nossa concepção de discurso e fomenta nossa ampliação da transitividade como mecanismo além da oração; e, por fim, os Letramentos, que constituem práticas sociais situadas, os conhecimentos internos e externos relativos aos cuidados antes, durante e depois do parto das kalunga do Vão de Almas-GO, bem como sedimentam as oficinas sobre esse eixo como contribuição social para a comunidade pesquisada.