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CAPÍTULO 2 – METODOLOGIA: o itinerário de construção da pesquisa

2.2. Vivenciando e construindo a pesquisa qualitativa e de postura ecoetnográfica com

2.2.4. Oficinas de Letramentos para o nono ano da Escola Santo Antônio/Comunidade

2.2.5.1. Primeira rodada das oficinas de Letramentos

A primeira oficina foi vivenciada em maio de 2015 com a realização de três encontros vespertinos a fim de trabalhar com os/as alunos/as do nono ano o gênero textual “receita” na perspectiva multidisciplinar apresentada na subseção anterior [temática parto/cuidados com mãe e bebê kalunga com conteúdos relativos às disciplinas de Língua Portuguesa, Matemática e Ciências]. Nessa oportunidade, a interação em sala de aula, no âmbito da oficina de Letramentos, contou com a participação, além dos/as discentes do nono ano, de D. D., uma das lideranças da comunidade e que, gentilmente, se dispôs a nos ensinar a respeito da temática em voga, dos/as professores/as kalunga da Escola Santo Antônio e da pesquisadora.

No primeiro encontro, os/as professores/as kalunga foram essenciais para o processo de interação com os/as estudantes e promoção de discussões sobre: a importância das plantas medicinais; qual a origem do tipo de medicamento é utlizado pelo kalunga quando está doente (farmácia ou planta medicinal); qual tipo de planta medicinal foi ou poderá ser utilizada como profilaxia para um tipo de doença; e qual seria a atitude se tivessem de auxiliar uma gestante que precisasse ser medicada para tratar algum problema de saúde.

A utilização dessas discussões funcionou para instigar os/as alunos/as a refletirem sobre a importância de se ter conhecimento sobre o saber dos kalunga

relacionado com o uso das plantas medicinais. Nesse momento, D. D. foi fundamental em repassar sua experiência no uso de tais plantas e destacar para os/as participantes da oficina a respeito da partilha do conhecimento dos idosos para a nova geração. Isso poderá assegurar a permanência das práticas sociais tradicionais relativas ao povo kalunga.

Nesse contexto, após as interações mencionadas, a pesquisadora introduziu em sala de aula o gênero textual receita, com a participação das/os docentes kalunga, de maneira prática e com o intuito de incluir o conhecimento prévio de todas/os participantes. A partir da discussão das plantas medicinais, a pesquisadora teceu explicações do gênero receita e, depois, solicitou que os/as estudantes escrevessem em seus cadernos nomes de plantas medicinais que conhecem e descrevessem suas funcionalidades e o passo a passo da produção de um remédio ou chá dessas plantas medicinais. Tal etapa foi fundamental para que os/as alunos/as começassem a se familiarizar com o gênero textual receita, ao mesmo tempo em que relacionavam este conhecimento de registro escrito com seus conhecimentos tradicionais. Todos/as discentes realizaram esta atividade. Dessa forma, nossa primeira tarde se encerra com êxito, visto que funcionou como prelúdio das atividades que planejamos desenvolver durante os três dias de interação entre nós.

No segundo encontro, trabalhamos três atividades envolvendo: melhoria da escrita dos/as alunos/as a partir da atividade escrita feita no dia anterior; produção de remédio caseiro com plantas medicinais sob orientação da D. D. para gestante kalunga que está sob ameaça de perder a criança; e conceitos de Ciências e Matemática ministrados pelo Prof. A., a partir da temática desenvolvida pela D. D. na elaboração do remédio em questão.

A atividade de melhoria da escrita dos/as discentes foi cumprida de forma colaborativa entre os/as estudantes, a pesquisadora, D. D. e docentes kalunga com base em um texto produzido pela aluna C. (cf. Apêndices) no encontro anterior. Em comum acordo com a turma, arrolamos o texto de C., o transcrevemos na lousa e, coletivamente, melhoramos o texto em tela de acordo com as contribuições dos/as participantes. Alcançamos o objetivo da atividade, pois os/as alunos/as, em sua maioria, perceberam os elementos que contribuíram para melhoria da versão inicial. Os/as estudantes, assim como os/as demais participantes, notaram o resultado da reescrita: um texto melhor redigido e de fácil compreensão para o/a leitor/a. Esta atividade serviu

também para colaborar com os/as docentes kalunga. Eles/elas perceberam que podem utilizar tal metodologia em suas práticas de sala de aula.

Após o término dessa etapa, os/as alunos/as, a pesquisadora e os/as professores/as acompanharam D. D. até a cozinha da escola para sua demonstração de como produzir um chá que evita aborto espontâneo. Ela mostrou os ingredientes necessários explicando o modo de fazer o chá e enfatizando que deve tomá-lo em temperatura de água morna. Aproveintando o ensejo, o Prof. A. ensinou aos/às alunos/as como manusear o termômetro e identificar a temperatura da água utilizada para fazer o chá. Esta interação foi fulcral para o que defendemos aqui: articular práticas sociais da comunidade kalunga com os conhecimentos inerentes ao universo escolar. Aqui foi o ápice desta concepção que adquirimos via estudos dos Letramentos (cf. capítulo teórico). Cumpre ressaltar que D. D., infelizmente, não teve acesso à educação escolar formal. Mesmo assim, colaborou imensamente com seu conhecimento tradicional na escola, em parceria com os/as estudantes, os/as professores/as e com a pesquisadora.

Após os ensinamentos de D. D., na condução da terceira atividade, o Prof. A. abordou o conceito de temperatura para resolução de problemas matemáticos e de ciências (cf. Apêndices), ressaltando que a resolução desses tipos de problemas exige também conhecimentos de leitura/língua portuguesa para possibilitar a correta interpretação. Segundo o professor kalunga, mesmo sabendo matemática e ciências pode-se errar a resolução de um problema devido à interpretação equivocada de alguma palavra cujo significado não se conhece. Nesse sentido, o Prof. A. elaborou problemas de ciências e matemática a partir da aula de D. D. e os aplicou em sala de aula, abordando a atenção na interpretação dos problemas a serem resolvidos. Os/as estudantes puderam concluir os exercícios em casa devido ao término deste período de aula na escola.

No terceiro e último dia dessa rodada das oficinas de Letramentos, o Prof. A finalizou a explicação da resolução de problemas de matemática e ciências, expondo que existe mais de uma forma para resolvê-los.

Logo após essa atividade, o Prof. R. relembrou aos/às alunos/as a receita de chá ensinada por D. D. e a importância desse chá para as grávidas kalunga. Nesse momento, o Prof. R solicitou aos/às estudantes que falassem sobre a relevância do chá para a comunidade kalunga. Logo em seguida, o aluno E. expressou que “Foi importante pra nós guardar na cabeça até para se tiver uma mulher grávida, aí se ela pode colocar o

bebê fora”, assim, ratificando a compreensão da aplicabilidade da receita de chá que pode evitar uma mulher grávida sofrer um aborto espontâneo.

Após o Prof. R. relembrar a receita ensinada por D. D., a Profa. M. aproveitou esse momento para explicar como escrever a receita de um remédio caseiro com base na receita relembrada, estimulando a participação dos/das alunos/as na produção do texto. Os elementos do gênero textual “receita” foram trabalhados gradativamente, despertando nos/nas estudantes o entendimento da organização, coerência, coesão, semântica e conjugação verbal à medida que a receita era redigida de forma colaborativa entre professora e alunos/as. Ao final, os/as discentes registraram a receita de D. D. em cartolinas (cf. Apêndices), com o texto produzido coletivamente e desenhos os quais remetem à receita.

Assim o primeiro ciclo de oficinas de Letramentos foi concluído. Faz-se necessário destacar que, ao final dos três encontros, as/os discentes rgistraram, a nosso pedido, por escrito, suas opiniões e impressões das atividades realizadas. E docentes kalunga, D. D. e a pesquisadora ficavam na escola, após a saída dos/as discentes de nono ano, com o intuito de avaliar as ações realizadas no dia. Esses momentos foram também de muita aprendizagem mútua, pois cada um/a de nós demonstrou o que pensa tanto no âmbito das estratégias já exitosas quanto na esfera de nossas dificuldades. De modo geral, no tocante às/aos estudantes, percebemos envolvimento e vontade de aprender na perspectiva que adotamos. No entanto, temos consciência de que os/as estudantes detêm muito conhecimento tradicional, mas o conhecimento escolar precisa continuar avançando, especialmente no espectro da escrita. Os textos dos/as alunos/as ainda apresentam muitas marcas de oralidade. Por isso, um trabalho como o que fizemos se justifica: interfaces entre conhecimentos tradicionais e escolares, de forma multidisciplinar, com o processo gradativo de inserção no universo da escrita, em parceria com a oralidade.

Nós, docentes kalunga e pesquisadora, destacamos a necessidade de continuar os estudos sobre Letramentos, Gêneros Textuais e suas aplicações em sala de aula. Os/as professores/as relataram que trabalharam tais conteúdos na LEdoC/FUP/UnB. Porém dúvidas sempre existem no momento de aplicação em classe. Por isso, ressaltaram a importância da oficina, bem como da necessidade de estudarem mais acerca do tema. Como pesquisadora, senti, de fato, a importância dessa reflexão dos/as próprios/as docentes. Por isso, combinamos de, mais adiante, desenvolvermos, somente com os/as professores/as, uma oficina específica de Gêneros Textuais [que foi nossa última

rodada]. Vale ressaltar que D. D., nossa convidada ilustre, nos avaliou muito bem, solicitou que continuemos com ações dessa natureza na escola e se sentiu acolhida por todos/as. E nós agradecemos imensamente a disponibilidade dela em colaborar conosco. Dessa forma, a seguir, registraremos a segunda rodada das oficinas de Letramentos propostas nesta tese.