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CAPÍTULO II CONSTRUÇÃO E EVOLUÇÃO DOGMÁTICA DO CONCEITO

2.4. Evolução dogmática da culpabilidade e sua relação com o livre-arbítrio

2.4.3. Teoria normativa da culpabilidade

2.4.3.2. A concepção normativa de Welzel

Ao asseverar que a ação humana penalmente relevante é dolosa ou culposa, Welzel desloca o elemento psicológico da culpabilidade para a estrutura do fato típico. Com isto, já não se pode falar em uma teoria da culpabilidade com fundamento no viés psicológico, razão pela qual se emprega, usualmente, a expressão “normativa pura”181

, para identificar a culpabilidade sob a égide da teoria finalista.

À vista disso, a teoria finalista foi acusada de promover o esvaziamento da culpabilidade, ou a subjetivação do injusto. A esta crítica, Welzel opunha o argumento no sentido de que o fato de haver transplantado o dolo para a estrutura do injusto não subtraía caráter objetivo do tipo. Ao revés, a doutrina finalista haveria demonstrado a verdadeira feição da culpabilidade, destituída de elementos psíquicos182.

Para a doutrina finalista, a culpabilidade deve ser identificada com a ideia de reprovabilidade. Trata-se de uma qualidade da ação antijurídica que permite exercer juízo de reprovabilidade sobre seu autor. Welzel trabalha à luz da distinção entre valoração e objeto da valoração ou entre reprovabilidade e ação reprovável. Assim, culpabilidade é a

Régis. Prefácio. In: WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. Tradução: Luiz Régis Prado. 2.ed., São Paulo: RT, 2009, p.19).

180 PRADO, Luiz Régis. Prefácio. In: WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. Tradução: Luiz Régis Prado. 2.ed., São Paulo: RT, 2009, p.18.

181 “Muitos autores negam o caráter puramente normativo da culpabilidade finalista (v.g. Cerezo Mir, Hirsch, Stratenwerth). Na verdade, há apenas uma acentuação do aspecto normativo” (PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro. 10.ed. São Paulo: RT, 2011, p.389).

182

WELZEL, Hans. Derecho penal: parte general. Traducción: Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956, p.152.

valoração da vontade de ação, enquanto objeto dessa valoração é a vontade antijurídica de ação (e, por ela, toda ação antijurídica)183.

Conforme Welzel, esta vontade de ação valorada como culpável é o que se deve compreender por “culpabilidade”. Com isto, se contribui para uma ambiguidade equivocada no conceito da culpabilidade. Culpabilidade, em sentido estrito, conforme Hans Welzel, deve ser “apenas a reprovabilidade, ou seja a qualidade específica do desvalor na vontade de ação. Em sentido mais amplo, culpabilidade significa também a vontade de ação mesma, junto com sua qualidade de desvalor, como totalidade: a vontade culpável (ou seja a ação culpável)”184.

Como já salientado, foi Alexander Graf zu Dohna quem, por primeiro, destacou a distinção entre valoração (reprovabilidade) e objeto da valoração (dolo), limitando a culpabilidade à valoração do objeto. O mérito da doutrina finalista concebida por Welzel, então, conforme ele próprio, não reside nessa distinção, mas sim em conferir ao dolo seu local adequado na ação típica, o que não havia sido feito por Dohna185.

Em resumo, culpabilidade é a reprovabilidade da resolução de vontade. Culpabilidade é, portanto, culpabilidade de vontade, e, por isso, apenas aquilo que depende da vontade do homem pode ser-lhe reprovado como culpável. Por isso, suas qualidades e aptidões – ou seja, tudo aquilo que ele “é” – podem ser valiosas ou de escasso valor (consequentemente, podem ser também valoradas), mas apenas o que tenha feito delas ou como as tenha empregado – em comparação ao que podia e deveria ter feito delas ou como as tivesse podido e devido empregar – apenas isso pode ser levado em conta como “mérito” ou reprovado como culpabilidade186.

183

WELZEL, Hans. Derecho penal: parte general. Traducción: Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956, p.148-149.

184

No original: “Esta voluntad de acción valorada como culpable, es denominada ahora también coino ‘culpabilidad’. Con ello se da paso a una ambigüedad equívoca en el concepto de la culpabilidad. Culpabilidad, en sentido estricto, es solamente la reprochabilidad, o sea la calidad específica de disvalor en la voluntad de acción. En el sentido más amplio, ‘culpabilidad’ significa también la voluntad de acción misma, junto con su calidad de disvalor, como totalidad: la voluntad culpable (o sea la acción culpable)” (WELZEL, Hans. Derecho penal: parte general. Traducción: Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956, p.149).

185 WELZEL, Hans. Derecho penal: parte general. Traducción: Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956, p.152.

186

WELZEL, Hans. El nuevo sistema del derecho penal: introducción a la doctrina de la acción finalista. Traducción y notas: José Cerezo Mir. 4.ed. 2º. Reimp. Buenos Aires: B de F, 2004, p.126.

Com o advento da doutrina finalista, a culpabilidade passa a se tornar exclusivamente normativa, destituída de elementos volitivos, transplantados para a estrutura da ação típica. A (potencial) consciência da antijuridicidade, outrora considerada elemento subjetivo – integrante do dolo –, é destacada do dolo, permanecendo na estrutura da culpabilidade, como elemento normativo. Assim, a culpabilidade passaria a ser constituída da imputabilidade, potencial consciência da antijuridicidade e exigibilidade de conduta diversa (exigibilidade de conduta adequada à norma).

A imputabilidade187 seria a capacidade de culpabilidade, umbilicalmente associada à ideia de capacidade de autodeterminação. Esta capacidade de culpabilidade seria constituída de um elemento de conhecimento (intelectual) – a capacidade de compreensão do injusto – e um elemento de vontade (volitivo) – a capacidade de se determinar de acordo com esta compreensão. A ausência de qualquer dos dois elementos deve conduzir ao reconhecimento da inimputabilidade. É o que pode ocorrer nas hipóteses de menoridade ou de agente portador de patologia psíquica188.

Imputabilidade, assim, seria uma aptidão genérica para a sujeição à pena. Imputável é aquele a quem se pode atribuir a responsabilidade penal. No caso dos portadores de enfermidade mental ou de menores, esta aptidão para o recebimento da reprimenda penal não existiria. Não há, na conduta deles, a reprovabilidade que marca a ação típica e antijurídica dos demais agentes. Não podendo ser submetidos à pena, deveriam se submeter a medidas de outra natureza189.

No que concerne à consciência potencial da antijuridicidade, o finalismo diferencia este elemento do dolo, como já asseverado. Nestes termos, em sede de culpabilidade seria

187 Em referência à expressão, na obra de Aristóteles, destacam Luiz Régis Prado e Érika Mendes de Carvalho: “O termo imputabilidade significa em grego deon tina poiein, ou seja, fazer recair sobre alguém. O verbo fazer (poiein) mantém, portanto, a identidade daquele que age com sentido e imputabilidade (poietes). Assim sendo, a imputabilidade tem significação tanto no campo jurídico quanto no político” (In: Teorias da imputação objetiva do resultado: uma aproximação crítica a seus fundamentos. 2.ed. São Paulo: RT, 2006, p.23-24). TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos do direito penal. 5.ed.São Paulo: Saraiva, 2008, p.312.

188 WELZEL, Hans. El nuevo sistema del derecho penal: introducción a la doctrina de la acción finalista. Traducción y notas: José Cerezo Mir. 4.ed. 2º. Reimp. Buenos Aires: B de F, 2004, p.146.

189 No Brasil, os inimputáveis por doença mental são submetidos às medidas de segurança e os menores às medidas sócio-educativas. No que se refere às medidas de segurança, é necessário destacar que houve muita controvérsia em torno de sua natureza – punitiva ou terapêutica. O STF, por ocasião do julgamento do HC 84.219/SP, rel. Min. Marco Aurélio, entendeu que a medida de segurança é espécie do gênero sanção penal. Com efeito, extrai-se do voto do Min. Sepúlveda Pertence a seguinte afirmação: “ao vedar as penas de

aferida a reprovabilidade pessoal do dolo e dos demais elementos subjetivos do tipo (tais como o elemento subjetivo específico, a especial finalidade no agir). Na culpabilidade, é analisada a reprovabilidade de “todas as circunstâncias externas e internas que tenham influído na decisão concreta no momento concreto”190.

Quanto à exigibilidade de conduta diversa – que já havia sido desenvolvida pelos adeptos da teoria psicológico-normativa, mormente com a entusiasta defesa de Freudenthal, que viu neste elemento normativo uma possibilidade de se falar em causa geral de exculpação – é aferida como elemento negativo, sobretudo na hipótese em que o agente está submetido a excepcionais situações. Nestas hipóteses, sua conduta não seria dotada da reprovabilidade.

De toda sorte, é imperioso destacar que, na concepção finalista, o livre-arbítrio é fundamental como elemento de legitimação da reprovabilidade. Assim, a conduta do inimputável não é reprovável por lhe faltar a possibilidade de autodeterminação. De igual sorte, não há esta capacidade nas hipóteses em que não há a consciência da antijuridicidade; nas situações de inexigibilidade de conduta diversa, a vontade manifestada pelo agente é viciada, razão pela qual não há como se falar em censurabilidade.

2.4.3.3. O livre-arbítrio na concepção de