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CAPÍTULO III CONCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE CULPABILIDADE

3.7. A negação da culpabilidade

Enrique Gimbernat Ordeig, professor catedrático da Universidade Complutense de Madrid, leva às últimas consequências as críticas à culpabilidade – abordando, em especial, a indemonstrabilidade do “poder de agir de outro modo” – , chegando a negar-lhe a utilidade para o Direito Penal. Já não se trata, então, de contestar o fundamento material da culpabilidade, ou sua funcionalização para o atendimento de demandas preventivas ou de finalidades político-criminais de outra espécie.

Gimbernat Ordeig recorre à obra de Richard Schmid, para quem o surgimento da criminologia promove significativa alteração na questão da culpabilidade. A criminologia seria a ciência das causas da criminalidade; a existência (e identificação) das causas da criminalidade seria incompatível com a culpabilidade. Mesmo que se considere possível – como forma de tentar salvar o conceito de culpabilidade, destaca Ordeig – que dentre as causas da criminalidade se encontre alguma dirigida ao próprio agente, como sua má índole ou vontade, esta seria uma causa imprópria, com a qual já se abandona a ideia de causa363.

A análise do professor espanhol não se adstringe à culpabilidade. Ao revés, trata-se de um acurado estudo sobre a dogmática jurídico-penal, e a crise que vivencia, fortalecida, em grande parte pelo encastelamento do Direito Penal em suas próprias categorias. Invocando a obra de autores como Nedelmann, faz menção à irracionalidade da ciência do Direito Penal, que fecha os olhos para os estudos da psicologia e da criminologia, enclausurando-se no formalismo das categorias jurídicas364.

Sob tal perspectiva, já não faz sentido discutir o livre-arbítrio como forma de fundamentar a culpabilidade. Gimbernat Ordeig propõe, então, uma discussão que transponha a barreira do Direito Penal da culpabilidade. O catedrático de Madrid chega a tais reflexões após constatar que mesmo os críticos mais destacados do livre-arbítrio (sobretudo aqueles que se apegam ao argumento da sua indemonstrabilidade fática) não ousam a prescindir da concepção de culpabilidade365.

362 MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. Ob. cit., p.297. 363

ORDEIG, Enrique Gimbernat. ¿Tiene un futuro la dogmatica juridicopenal?. Disponível em:

http://new.pensamientopenal.com.ar/01092009/doctrina03.pdf. Acesso em: 10/12/2013. 364

ORDEIG, Enrique Gimbernat. ¿Tiene un futuro la dogmatica juridicopenal? Ob. cit. 365

ORDEIG, Enrique Gimbernat. ¿Tiene un futuro la dogmatica juridicopenal?. Disponível em:

De fato, Gimbernat Ordeig é um dos poucos autores que sustentam ser despicienda a culpabilidade para o Direito Penal. Culpabilidade, então, não constitui fundamento nem limite da pena a ser imposta. E mais: se o fundamento material da culpabilidade não pode ser demonstrado, essa categoria deve estar apartada da teoria do delito, sendo substituída pela necessidade de pena. Com isto, as exigências de prevenção geral e especial ganham uma relevância e expressividade ímpar na obra do autor366.

Mesmo abdicando da ideia de culpabilidade, Ordeig chega a conclusões muito próximas daquelas relativas aos adeptos desta categoria como elemento integrante da estrutura do crime. Assim, são preservadas em sua teoria os princípios elementares que orientam a culpabilidade, tais como a exclusão da responsabilidade objetiva, a adoção de medidas de segurança para os inimputáveis, a existência da dirimente do erro de proibição inevitável e a distinta reprovabilidade nos crimes culposos e dolosos367. A diferença, porém, é que, na obra de Ordeig, tais consequências estão relacionadas às finalidades preventivas da pena.

Algumas das principais críticas à doutrina de Gimbernat Ordeig são apresentadas pelo seu compatriota, José Cerezo Mir, para quem prescindir da culpabilidade é incompatível – ao contrário do que sufraga Ordeig – com a pretensão de rechaçar a responsabilidade penal objetiva. De igual sorte, abdicar do princípio da culpabilidade como fundamento e limite da pena, substituindo-a por exigências de prevenção geral e especial significaria encontrar respostas distintas para os problemas da responsabilidade pelo resultado, do erro de proibição e da isenção de pena para os inimputáveis368.

No Brasil, Fábio Machado considera o sistema proposto por Ordeig incompatível com os postulados de um Estado Democrático de Direito, pois fundamenta-se na permanente intimidação aos cidadãos, o que se aproximaria dos regimes autoritários369. Para Sebástian Mello, a pretensão de substituir a culpabilidade por critérios de prevenção fracassa, justamente porque a culpabilidade representa a garantia de proteção aos direitos fundamentais370.

366 ORDEIG, Enrique Gimbernat. ¿Tiene un futuro la dogmatica juridicopenal? Ob. cit. 367 MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. Ob. cit., p.278.

368 MIR, José Cerezo. El delito como acción culpable. Anuario de derecho penal y ciências penales. Madrid: Ministerio de Justicia (Centro de Publicaciones) y Boletin Oficial del Estado, 1996, p.13.

369

MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Ob. cit. p.177. 370

Imperioso referir que a doutrina de Ordeig não é a única a propugnar o abandono da culpabilidade como fundamento e limite da imposição de pena. Neste diapasão, pode-se fazer menção à doutrina de Baurmann, que defende um “Direito de medidas referido ao fato”, em que a “função de proteção do princípio da culpabilidade se cumpriria através dos critérios da danosidade social e da motivabilidade”371

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Baurmann, portanto, vai muito além do quanto proposto por Gimbernat Ordeig, na medida em que pretende não apenas abdicar do conceito de culpabilidade, mas, mais que isso, prescindir da ideia de pena, que seria substituída pela adoção de medidas outras. As referidas medidas não se fundamentariam na perigosidade do agente (como as atuais medidas de segurança aos inimputáveis), mas sim na danosidade social produzida pelo fato.

Por sua vez, Kargl, ao sustentar um Direito Penal destituído de culpabilidade, faz menção a um “Direito Penal sustentado sobre as instituições jurídico-constitucionais básicas”372

, tese considerada muito vaga por Roxin. Kargl abdica do princípio da culpabilidade, amparando-se na “instituição básica” da dignidade humana. Já Scheffler pretende a substituição do princípio da culpabilidade por um sistema de Direito Penal de cunho exclusivamente criminológico, relacionando o “princípio do ser objetivamente responsável” com o princípio da proporcionalidade373

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Sack assevera que o desenvolvimento do estudo da criminologia tornou a intervenção punitiva incompatível com a culpabilidade, pois já não seria possível imputar ao agente o comportamento considerado desviado, porquanto tal comportamento deveria ser considerado parte integrante do sistema social. O comportamento desviado, então, só poderia ser imputado ao próprio sistema, e não ao autor da conduta374.

Tais teorias, porém, são incompatíveis com a legitimidade de uma intervenção punitiva, racional e limitada, que preserve as garantias individuais do agente e a tutela dos bens jurídicos da sociedade. No caso da doutrina de Sacks, por exemplo, só haveria compatibilidade da sua crítica com as doutrinas não-justificacionistas (abolicionistas) do Direito Penal, o que, de resto, é incompatível com o ordenamento jurídico nacional, na medida em que a Constituição Federal agasalhou o princípio da vedação à proteção

371 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo I. Tradução: Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz y García Conlledo y Javier de Vicente Remesal Madrid: Civitas, 1997, p.812.

372 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Ob. cit., p.813. 373

deficiente, ao impor mandados constitucionais de criminalização375 em inúmeros dispositivos.