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CAPÍTULO III CONCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE CULPABILIDADE

3.2. A culpabilidade no finalismo pós-welzeniano

3.2.4. A culpabilidade no finalismo atual

Não se pode perder de vista que o finalismo – que fez soçobrar a doutrina causalista, sendo alçado à hegemonia na dogmática penal, sobretudo após o fim da II Grande Guerra – tem sido solapado pelas críticas cada vez mais mordazes, advindas, em especial, das concepções funcionalistas. No que se refere à culpabilidade, como se procurou mencionar, as principais críticas dirigem-se ao seu fundamento material, na medida em que se alega ser indemonstrável o “poder de agir de outro modo”.

A despeito deste quadro hostil à hegemonia finalista, a Europa tem assistido, de igual sorte, o crescimento da resistência dogmática por parte daqueles que se filiam à corrente de pensamento capitaneada por Hans Welzel. Dentre outros representantes deste movimento de resistência, pode-se destacar Cerezo Mir, na Espanha, e Hans-Joachim Hirsch, na Alemanha. Sem abdicar das premissas fundantes do pensamento de Welzel, os finalistas de hoje acrescem algumas reflexões, que respeitam diretamente à culpabilidade.

Cerezo Mir, reportando-se ao conceito de ação, sustenta uma postura de cunho mais axiológico do que ontológico. Sobre o tema, menciona que as correntes de pensamento refratárias ao finalismo apresentam um viés exagerado dos condicionamentos ontológicos da doutrina final da ação, rechaçando as opiniões divergentes, dentro do próprio finalismo238. A estrutura da ação humana e da culpabilidade, para a doutrina finalista,

236 DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito penal: parte geral, Tomo I: questões fundamentais: a doutrina geral do crime. São Paulo: RT; Portugal: Coimbra Editora, 2007, p.519.

237 ROXIN, Claus. Culpabilidad y prevención en derecho penal. Tradução: Francesco Muñoz Conde. Madrid: Reus, 1981, p.65.

238

vinculam apenas o legislador “no caso de querer-se vincular a ação ou a culpabilidade a uma consequência jurídica”239

. Apenas neste caso seria necessário respeitar a estrutura logico-objetiva.

Em resumo, Cerezo Mir, sem prescindir das premissas estruturais da doutrina finalista, acresce às concepções originais uma vertente axiológica, em que se busca a fundamentação material do poder punitivo nas bases do Estado Democrático de Direito, consagrado na Constituição. É neste diapasão que procura desenvolver a ideia do ser humano como pessoa, à luz de um critério axiológico240-241.

Cerezo Mir, escudado no pensamento de Henkel, afirma que o “poder de agir de outr modo” pode ser demonstrado empiricamente. Nesse sentido, a moderna antropologia seria capaz de compreender o homem como ser capaz de autodeterminação conforme sentido242. O professor espanhol rechaça outro fundamento material para a culpabilidade. Ao livre-arbítrio – materializado no “poder de agir de outro modo” – porém, acresce concepções normativas e axiológicas. Com efeito, vale reiterar que Cerezo Mir enxerga o homem à luz de concepções axiológicas, o que influi, sobremodo, na estrutura da culpabilidade, que é juízo de reprovação pessoal.

Por outras palavras, o conceito material de culpabilidade em Cerezo Mir é empírico- normativo, conformado à Constituição. A ideia de culpabilidade refere-se ao homem, e o homem é constitucionalmente delineado como ser responsável e com capacidade de autodeterminação, de acordo com critérios valorativos. Trata-se, portanto, de conceito normativo, e não metafísico, dirigido ao homem, que há de ser o fim da atividade estatal243.

239

MIR, Cerezo. Ontologismo e normativismo na teoria finalista. Ciências penais. 0, 2004, p.10 e ss.

240 Em sentido similar, Sebastian Mello reconhece a liberdade como conceito valorativo, que deve ser entendido à luz da perspectiva de homem prevista na Constituição. Para o autor, o fundamento material da culpabilidade deve estar inserido em um contexto de respeito máximo à dignidade humana. À ideia de liberdade, deveria ser acrescinda a noção de igualdade. Nas suas plavras: “O homem será culpável, não apenas porque livre, mas também porque igual” (MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. Ob. cit., p.413). 241

“Se as estruturas lógico-objetivas assinaladas por Welzel são perceptíveis e apresentam-se como essenciais a partir da concepção do ser humano como pessoa, como ser responsável, os conceitos correspondentes não serão, em rigor, puramente ontológicos, mas terão um componente normativo. Na realidade, já se está diante da busca de um equilíbrio entre elementos ontológicos e normativos. Isso se vê, claramente, no conceito finalista de ação e de omissão” (MIR, Cerezo. Ontologismo e normativismo na teoria finalista. Ciências penais. 0, 2004, p.10 e ss).

242 MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. Ob. cit., p.312.

243 PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro. 10.ed. São Paulo: RT, 2011, p.394. Luiz Régis Prado, seguidor brasileiro da concepção empírico-normativa, defendida por Cerezo Mir, salienta: “trata-se de alicerçar em termos substanciais, a culpabilidade no reconhecimento da dignidade da pessoa humana, considerando-a como ser livre e responsável, valores imanentes à sociedade democrática” (PRADO, Luiz

Hans Joachim Hirsch, sob outro prisma, não afirma a possibilidade de constatação empírica do livre-arbítrio. Contudo, assevera que o Direito deve servir ao homem e, por isso, não pode prescindir da visão que o homem tem de si; deve, ao revés, orientar-se por referida visão. A liberdade, deve, então, ser vista sob a perspectiva jurídica, ainda que não demonstrada empiricamente, portanto244.

Há, então, uma aproximação entre a concepção do finalista Hirsch e do funcionalista Roxin, no que se refere à natureza do livre-arbítrio. Os dois autores rechaçam a possibilidade de demonstração concreta do livre-arbítrio, mas afirmam sua necessidade jurídica, recorrendo, portanto, a uma concepção normativa de liberdade. A despeito da proximidade de ideia no que tange ao livre-arbítrio, as visões de culpabilidade entre os autores são muito distintas, na medida em que Hirsch não acolhe as perspectivas preventivas associadas à culpabilidade.