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O funcionalismo reducionista: co-culpabilidade e culpabilidade do vulnerável

CAPÍTULO III CONCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE CULPABILIDADE

3.3. O funcionalismo e a culpabilidade

3.3.5. O funcionalismo reducionista: co-culpabilidade e culpabilidade do vulnerável

Eugénio Raul Zaffaroni, magistrado da Suprema Corte Argentina e considerado um dos maiores expoentes do pensamento jurídico-penal latino-americano, já foi considerado um grande representante da doutrina final da ação. A partir de estudos publicados, inicialmente, no final da década de 80 do século passado, sua doutrina começa a se aproximar de uma vertente criminológica, que ele denomina de “realismo marginal jurídico-penal”.

305 O autor conclui afirmando que: “Un ordenamiento juridicopenal que procure evitar en lo posible molestias a las personas y fundamentar honestamente sus intervenciones, debe renunciar a ese reproche” (HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la imputación em derecho pena. Traducción: Francisco Muñoz Conde y Maria del Mar Díaz Pita. Santa Fé de Bogotá: Temis, 1999, p.62).

306 MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. O conceito material de culpabilidade: o fundamento da imposição da pena a um indivíduo concreto em face da dignidade da pessoa humana. Salvador: JusPodivm, 2010, p.228.

Este realismo a que se reporta Zaffaroni diria respeito à forma arbitrária como se desenvolvem as agência de controle punitivo nos países do capitalismo periférico307. O estudo das limitações ao poder punitivo nessa situação possui abruptas distinções, quando comparados aos países do capitalismo central, em que se aprecia as limitação ao arbítrio penal à luz de uma postura positivista de um Direito Penal legítimo.

Estas ideias de Zaffaroni começam a ser desenvolvidas a partir da publicação de “Criminologia: una aproximación desde un margen” e “En busca de las penas pertidas:

deslegitimación e dogmática jurídico-penal” (1989). Ao questionar a ausência de

legitimidade da intervenção punitiva308, seu pensamento aproxima-se de uma perspectiva abolicionista, razão pela qual é identificado como “minimalista radical”309

.

Neste panorama de deslegitimação do poder punitivo, a pena não é juridicamente fundamentada, possuindo, apenas, sentido político. É a teoria agnóstica da pena. Neste diapasão, Zaffaroni – cuja produção bibliográfica já era muito extensa – irá reorientar sua doutrina – que se pautava, até então, por uma perspectiva preventivo-especial da pena310 –, sustentando um “funcionalismo reducionista”, isto é, considerando como função do Direito Penal, tão-somente, a imposição de limites à arbitrariedade punitiva do Estado. Seria a imposição do Estado Democrático ao Estado de Polícia.

No que pertine à teoria do delito, a maior contribuição de Zaffaroni diz respeito à seara da tipicidade, com sua mui conhecida teoria da tipicidade conglobante. Quanto à

307 “Pasamos a ocupar una posición marginal en una estructura de poder mundial, de la cual aún no hemos salido”. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminologia: aproximación desde un márgen. v.1. Bogotá: Temis, 1988, p.62).

308 Para Zaffaroni, o sistema penal seria legítimo se o discurso jurídico-penal fosse racional e o sistema operasse conforme essa racionalidade. Esclarece, ainda, que o discurso seria racional se fosse coerente (coerência interna do sistema) e verdadeiro – valor de verdade, quanto à operacionalidade social (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas: deslegitimación y dogmática jurídico-penal. Buenos Aires: EDIAR, 1998, p.20).

309 QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.99. 310

Em obra datada do início dos anos 90 do século passado, Zaffaroni salienta que até os anos 70 adotou o paradigma preventivo-especial, mas dele se afastou, sobretudo por força do seu maior contato com a criminologia, e, em especial, com o trabalho dos interacionistas e fenômenólogos. Em suas palavras: “Mis anteriores trabajos dogmáticos (el Manual de Derecho-Penal y el Tratado) datan de un programa trazado a comienzos de los años setenta y se estructuran sobre una idea preventivo-especial de la pena. No incluyo en este volumen ningún artículo elaborado desde esse paradigma. Como tampoco los que produje a medida que me iba alejando del mismo; la literatura crítica de las instituciones totales, la criminología de la elección social, particularmente el contacto más íntimo con la obra de los interaccionistas y de los fenomenólogos, tuvieron parte en el abandono definitivo de aquella posición assumida en los años sesenta, en mi primer entrenamiento en la matéria” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Hacía un realismo jurídico penal marginal. Caracas: Monte Ávila Latinoamericana, 1992, p.10).

culpabilidade, porém, sua obra traz uma perspectiv distinta daquela trabalhada pelos demais setores da doutrina, porquanto Zaffaroni desenvolve a ideia de culpabilidade do vulnerável. Para desenvolver sua teoria, Zaffaroni recorre à obra de Jean Paul Marat, o médico que teve destacada atuação na Revolução de 1789. Dez anos após a Revolução, Marat participou de um concurso, na Suíça, em que apresentou o “Plano de legislação criminal”, contrapondo-se à pena de talião, defendida por Kant. Para Marat, a pena talional seria a mais justa, se a sociedade fosse justa311.

Marat parte de um viés contratualista, próprio do seu tempo, em que os homens teriam abdicado de uma parcela de sua liberdade em prol da sua segurança. Ocorre que a ganância humana conduziu à acumulação irrefreada de riqueza de alguns em detrimento da maioria. Questiona-se, então, se um indivíduo, a quem só cabiam desvantagens na vida em sociedade, estaria obrigado a respeitar as leis. Conclui que não. Com isto, o pensamento de Marat “denunciava a falácia das construções iluministas, quanto à pretensão de que a pena justa fosse a retributiva, em uma sociedade sem justiça distributiva”312

.

Os escritos de Marat estariam na raiz do que mais tarde será chamado de co- culpabilidade. De acordo com tal instituto, o agente atua com autodeterminação, mas sua esfera de autodeterminação é condicionada pela vida social, uma vez que a sociedade não consegue brindar a todos com as mesmas vantagens e desvantagens. O reconhecimento do papel da sociedade na delimitação da esfera de autodeterminação do criminoso equivaleria a uma repartição de reprovabilidade entre o agente e a sociedade313; daí a expressão co- culpabilidade314.

A co-culpabilidade, porém, seria insuficiente, pois: a) inicialmente, considera a pobreza a causa de todos os delitos – o que é facilmente desmentido, sobretudo pela eclosão dos crimes de colarinho branco; b) se se pretendesse corrigir o primeiro equívoco, seria conferido mais poder punitivo para as classes dominantes, e menos poder para as demais, o

311

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – parte geral. 5.ed. São Paulo: RT, 2004, p.257.

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – parte geral. 5.ed. São Paulo: RT, 2004, p.257.

313

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI. Ob. cit., p.580.

314 A co-culpabilidade ensejaria, assim, a atenuação da reprimenda penal. No Brasil, estaria consagrada no art. 66, CP, que permite a circunstância atenuante genérica, inominada. No sentido da co-culpabilidade como causa supralegal de exclusão da culpabilidade, MOTA, Indaiá Lima. A co-culpabilidade como hipótese supralegal de exclusão da culpabilidade por inexigilidade de conduta diversa. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia, 2013, p.141 e ss.

que consagraria um Direito Penal classista; c) rico ou pobre, o selecionado pelo sistema penal sempre o será com arbitrariedade315.

Como, então, estruturar uma culpabilidade que funcione como limite ao poder punitivo, que contenha o arbítrio da seletividade do sistema penal? Pretendendo responder a tal indagação, Zaffaroni desenvolve sua concepção de culpabilidade, rechaçando, por primeiro, a culpabilidade do autor. Naturalmente, na culpabilidade do fato também devem ser levados em consideração aspectos relativos à personalidade do agente; mas aí reprova- se o que ele fez, em função das possíveis condutas condicionadas por sua personalidade, ao passo que na culpabilidade do autor reprova-se a sua personalidade, e o ato praticado seria mero sintoma dela316.

Todavia, apenas afirmar a culpabilidade do fato é insuficiente para legitimar o exercício do poder punitivo, e nem sequer teria conteúdo ético, haja vista o caráter seletivo do sistema penal317. À luz de uma concepção agnóstica da pena, a culpabilidade avulta em importância, mas não como limite de legitimação da imposição da pena, e sim como limite à irracionalidade seletiva do sistema penal318.

A seletividade do sistema penal constitui a pedra de toque das valorações de Zaffaroni em torno da culpabilidade. Muito embora o professor argentino reconheça que a culpabilidade normativa fundada na autodeterminação possui uma pretensão de acentuado caráter ético, afirma que essa pretensão soçobra quando o agente constata que o poder punitivo não assinala a reprovação a outras pessoas que incorreram nos mesmos – ou até mais graves – injustos. Em suma, o Estado não atuaria de forma ética, muito embora se valha de elementos formais da ética para o juízo de reprovabilidade a pessoas selecionadas pelo poder punitivo319.

315 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Culpabilidad por la vulnerabilidad. Disponível em:

http://www.abogadosrosario.com/noticias/leer/306-culpabilidad-por-vulnerabilidad-por-eugenio- zaffaroni.html.

316

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Culpabilidade por la vulnerabilidad. Disponível em:

http://www.abogadosrosario.com/noticias/leer/306-culpabilidad-por-vulnerabilidad-por-eugenio- zaffaroni.html. Acesso em: 25/11/2013.

317 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Culpabilidade por la vulnerabilidade. Ob. cit.

318 MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Culpabilidade no direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p.187.

319

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; SLOKAR, Alejandro; ALAGIA, Alessandro. Derecho penal: parte general. 2.ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, p.653.

Os vulneráveis são as pessoas selecionadas pelo sistema punitivo, em regra pelo seu distanciamento do poder. A culpabilidade, então, deveria limitar o juízo de reprovabilidade, em referência à seletividade. E esta seria a razão pela qual a culpabilidade legitimaria a função redutora, e não o poder punitivo em si. Sem isso, o Direito Penal permitiria que o Estado se utilizasse de elementos formais da ética para reprovar pessoalmente alguém que já havia sido, previamente, selecionado pelo poder punitivo320.

Sob o aspecto dogmático, Zaffaroni aponta como elementos da culpabilidade o espaço de autodeterminação e culpabilidade do ato, a possibilidade exigível de compreensão da criminalidade e a possibilidade exigível de compreensão da antijuridicidade321. Forçoso reconhecer, todavia, que suas maiores contribuições sobre o tema residem, realmente, na construção da concepção de culpabilidade por vulnerabilidade, em alusão à seletividade do sistema penal, e não nos aspectos constitutivos da culpabilidade.