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A pessoa deliberativa e o déficit de lealdade ao Direito: a influência de Habermas na

CAPÍTULO III CONCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE CULPABILIDADE

3.5. A pessoa deliberativa e o déficit de lealdade ao Direito: a influência de Habermas na

3.5.1. Considerações iniciais

A teoria da pessoa deliberativa é desenvolvida por Klaus Günther, a partir da teoria da ação comunicativa do filósofo alemão Jürgen Habermas. Um dos grandes representantes da Escola de Frankfurt, Habermas exerce grande influência sobre o pensamento alemão, e essa influência se espraia sobre a seara jurídico-penal. Com a sua teoria da ação comunicativa, acabará influenciando, não apenas o pensamento de Günther, mas também o de Kindhäuser.

e nem pode ser outra coisa, e isto precisamente é a sua culpa... No fazer, na acção, vigora seguramente a determinação, aqui não se dá nenhuma liberdade, antes sim no Ser’. Ou ainda como característica dos atos excepcionais que decorrem do ‘eu’ e só nele encontram fundamento, em Bergson; retornando assim a tese de Aristóteles segundo a qual são livres e imputáveis as acções que têm a sua arché em nós próprios e em cuja base ensaiou Coing a sua construção do conceito de culpa jurídica” (DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito penal: Ob. cit., p.522-523).

Estudioso de questões relacionadas à legitimidade, racionalidade e democracia, Habermas desenvolve sua teoria da ação comunicativa. Adotando o paradigma comunicativo, Habermas que a comunicação livre, racional e crítica constituiria uma superação da razão iluminista clássica, do século XVIII. O princípio democrático não estaria ancorado na vontade da maioria, tão-somente, mas sim na comunicação racional330, isto é, em um “discurso racional entre indivíduos iguais que normatizam regras jurídicas a partir da ‘liberdade comunicativa’”331

.

Habermas, um dos mais destacados herdeiros da Escola de Frankfurt, seguiu a linha – própria da referida Escola – de estudo do ser humano como integrado ao grupo social, razão pela qual a normatização deve observar tal condição humana, vale dizer, limitar-se ao respeito à dignidade humana. Com a teoria da ação comunicativa, Habermas abre espaço para uma análise das formas de reprovação social que antecedem a reprovação penal, na linha do quanto preconizado pela intervenção punitiva mínima, que deve orientar o Direito Penal332.

Habermas não se dedicou especificamente à questão da culpabilidade. Mas com sua concepção em torno do agir comunicativo, acabou influenciando significativamente duas relevantes teorias da culpabilidade: a teoria da pessoa deliberativa, sustentada por Klaus Günther e o déficit de lealdade ao Direito, que encontra em Urs Kindhäuser seu mais proeminente defensor.

3.5.2. A pessoa deliberativa e a culpabilidade

A legitimidade democrática das normas jurídicas é o eixo central na análise da culpabilidade, sobretudo no que diz respeito ao seu conceito material. A referida legitimidade seria oriunda da participação do indivíduo no processo democrático de edição dos enunciados normativos. Esta é a base da ideia de “pessoa deliberativa”, que conseguiria

330 HABERMAS, Jurgen. ?Como és posible la legitimidade por vía de legalidade?. Tradução: Manuel Jimenez Redondo.

331 MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. O conceito material de culpabilidade: o fundamento da imposição da pena a um indivíduo concreto em face da dignidade da pessoa humana. Salvador: JusPodivm, 2010, p.259.

332

CAMARGO, Chaves, A. L. Culpabilidade e reprovação pessoal. São Paulo: Sugestões literárias, 1994, p.10-11.

“superar tanto os problemas dos posicionamentos que relacionam culpabilidade com prevenção quanto aqueles que relacionam culpabilidade com livre-arbítrio”333.

A pessoa deliberativa participa ativamente do processo democrático de elaboração das normas jurídicas. O destinatário da norma jurídica, então, deixa de ser mero espectador, sendo erigido a um dos elaboradores do seu conteúdo, participando desse processo de legitimação democrática, sob uma perspectiva de avaliação crítica, dotada de conhecimentos jurídicos. Essa característica permite à pessoa deliberativa, inclusive, suscitar conflito em torno da validade da norma334.

Neste diapasão, Günther se debruça sobre a culpabilidade, entendendo-a como uma atribuição de sentido que se efetua sobre o agente. A legitimidade da mencionada atribuição de sentido derivaria da formatação democrática de participação do agente (pessoa deliberativa) na elaboração da norma, bem como da posterior aferição em torno da sua validade335.

A doutrina de Günther, como sói, foi alvo de inúmeras contestações, sobretudo por força da forma como pretende legitimar a culpabilidade a partir da legitimidade do processo de elaboração das normas jurídicas. A maior ressalva oposta à doutrina de Günther diz respeito àquelas pessoas que, pelas mais variadas vicissitudes, não possuem condições de participar dos processos deliberativos. Levadas às últimas consequências as conclusões de Günther, não seriam pessoas deliberativas, e, para elas, não haveria a legitimidade da culpabilidade336.

Que dizer, ainda, dos Estados que não pautam pelas premissas democráticas? Nos regimes ditatoriais, em que as pessoas não possuem, nem sequer em tese, o direito de participação, não haveria culpabilidade? Ademais, a realidade sócio-econômica dos países que se encontram na periferia do capitalismo central não está, todo o tempo, condizente com a inserção dos cidadãos nos processos deliberativos.

3.5.3. A culpabilidade e o déficit de lealdade ao Direito

333 MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. O conceito material de culpabilidade: o fundamento da imposição da pena a um indivíduo concreto em face da dignidade da pessoa humana. Salvador: JusPodivm, 2010, p.260-261.

334 MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Culpabilidade no direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p.169.

Urs Kindhäuser é outro jurista alemão que se vale da influência do pensamento habermasiano e procura adaptá-lo à ideia de culpabilidade. Em sua teoria, acaba por se aproximar do funcionalismo sistêmico de Jakobs, muito embora se apresentem algumas distinções entre suas concepções. Kindhäuser reconhece na culpabilidade uma “realidade pretensamente comunicativa”337

.

Na doutrina de Kindhäuser, a culpabilidade possuiria uma dupla dimensão. Sob o aspecto formal, encontra-se a reprovabilidade, fruto da inaptidão do agente para formar uma motivação acerca da norma que houvesse sobrepujado a motivação que o impeliu à prática da conduta. No que concerne à sua dimensão material, o fundamento da culpabilidade deveria ser expresso por meio das razões pelas quais não se formou a devida motivação do agente para respeitar a norma338.

O autor trabalha à luz do conceito de “comunitarismo”, que, tal como o liberalismo, concebe e enaltece o homem livre. Distancia-se do liberalismo, todavia, sobretudo a partir das críticas formuladas por Rawls, cuja ideia central é a de que o indivíduo deve ser considerado como membro inserido em uma comunidade política pautada pela igualdade339. Assim, a liberdade está ligada à participação em processos políticos e na multiplicidade de opiniões e forças sociais, “de modo que o bem geral não depende da

qualidade formal das leis, mas sim do compromisso dos cidadãos na sua observância”340

. É este vínculo inquebrantável entre sociedade e indivíduo que formaria o comunitário.

No contexto do comunitarismo, o Direito desempenha uma função de integração, pressupondo que os cidadãos ajustem seus comportamentos aos mandamentos normativos. Este ajuste diz respeito à lealdade ao Direito, como forma de preservar seus próprios direitos. A culpabilidade se manifestaria como “violação a esta virtude cidadã

336 MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Culpabilidade no direito penal. Ob. cit., p.170.

337 A expressão de Paulo Busato, que esclarece: “O adjetivo ‘pretensamente’ se deve a que a perspectiva

comunicativa adotada por Kindhäuser, conquanto bastante mais abrangente que a pseudoimersão comunicativa de Jakobs, ainda resulta, ao final, tímida” (BUSATO, Paulo César. Apontamentos sobre o

dilema da culpabilidade penal. Disponível em:

http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=94#_ftn81. Acesso em: 30/11/2013).

338 BUSATO, Paulo César. Apontamentos sobre o dilema da culpabilidade penal. Ob. cit. 339

BUSATO, Paulo César. Apontamentos sobre o dilema da culpabilidade penal. Ob. cit. 340

(staatsbürgerliche Tugend) realizada através da infração da norma, que significa, como

consequência lógica, o abandono da comunidade”341.

Dentre as críticas apontadas à teoria de Kindhäuser, a mais expressiva diz respeito ao fato de que a legitimidade material da culpabilidade estaria, em seu pensamento, jungida ao dever de obediência ao Direito, considerado em si mesmo, isto é, desvinculado de qualquer conteúdo. Por força do processo de legitimação das normas, que o autor defende, a legitimidade do Direito já derivaria de sua formatação legislativa342.