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CAPÍTULO III CONCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE CULPABILIDADE

3.4. Culpabilidade referida à pessoa

3.4.1. Culpabilidade pelo caráter

As teorias referentes à personalidade – ou ao caráter – do agente, não sufragam a possibilidade de se suplantar o Direito Penal do fato, que orienta a dogmática moderna. Resta disseminado no pensamento jurídico-penal em voga que a intervenção punitiva não pode recair sobre meros estados existenciais, isto é, criminaliza-se e pune-se pelo que se fez, e não pelo que se é. A culpabilidade pelo caráter, em momento algum, objetiva legitimar a imposição de uma sanção penal destituída da prática de ação típica e antijurídica.

A rigor, as teses que se desenvolveram com fundamento na culpabilidade pelo caráter almejam compatibilizar a ideia de livre-arbítrio à suposta indemonstrabilidade do “poder agir de outro modo”. Por outras palavras, já não importaria se o “poder agir de outro modo” é impossível de demonstração no caso concreto, pois a culpabilidade já não se

320 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; SLOKAR, Alejandro; ALAGIA, Alessandro. Ob. cit., p.653.

321 MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Culpabilidade no direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p.188.

fundamentaria na vontade que presidiu a conduta, mas sim ao caráter – ou personalidade – que na conduta se exprime322.

Com a teoria da culpabilidade pelo caráter, altera-se o conceito material de culpabilidade – que, outrora centrado no fato, agora passa a ser centrado na personalidade do agente –, mas mantém-se inalterado o critério de identificação: o livre-arbítrio. Conforme Figueiredo Dias, a concepção em comento assegura à culpabilidade “a sua possibilidade teorética, a sua legitimidade ética e, sobretudo, a sua capacidade para dar resposta suficiente às exigências político-criminais”323.

Claus Roxin, crítico da teoria da culpabilidade pelo caráter, assevera que ela possui uma base determinista, fundada na ideia de que cada pessoa é responsável sim, mas pelas características ou propriedades que a induzem à prática do ato. Para o penalista alemão, o predecessor da teoria, na filosofia, é Schopenhauer, mas, no Direito Penal, teria muitos adeptos, tais como Heinitz, Engisch e Figueiredo Dias324.

A mais importante objeção endereçada por Roxin a essa teoria diz respeito ao paradoxo estabelecido na tentativa de se atribuir a culpabilidade a alguém por um dado inalterável, consistente na sua disposição caracteriológica, de que não é responsável. Para livrar-se desse imbróglio, os defensores da teoria – como Schopenhauer e Figueiredo Dias – recorreriam, conforme o autor, a critérios metafísicos, que seriam tão indemonstráveis como o “poder agir de outro modo”, e, por isso, “podem ser matéria da crença filosófica, mas não servir de base a uma concepção empírico-racional do Direito Penal”325.

3.4.2. A culpabilidade da pessoa (ou da personalidade)

322 DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito penal: parte geral, Tomo I: questões fundamentais: a doutrina geral do crime. São Paulo: RT; Portugal: Coimbra Editora, 2007, p.521.

323

DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito penal: Ob. cit., p.521. 324

ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo I. Tradução: Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz y García Conlledo y Javier de Vicente Remesal Madrid: Civitas, 1997, p.802-803. Forçoso reconhecer, todavia, que o próprio Figueiredo Dias diverge da teoria da culpabilidade pelo caráter, muito embora reconheça que seu pensamento dela se aproxima. Nestes termos: “Também autores como Heinitiz, Graf zu Dohna, Nowakowski e sobretudo Engisch, se revelam defensores de uma concepção de culpa pelo carácter que na conclusão se aproxima em muitos e essenciais pontos da que aqui se defende; o que de resto conduz Roxin a inserir a nossa doutrina no contexto do pensamento destes autores” (DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito penal: Ob. cit., p.525).

325

ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo I. Tradução: Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz y García Conlledo y Javier de Vicente Remesal Madrid: Civitas, 1997, p.803.

Jorge de Figueiredo Dias, pretendendo alcançar uma culpabilidade da personalidade, “dogmaticamente exequível e político-criminalmente correto”, pretende substituir a liberdade indeterminista (livre-arbítrio) por uma liberdade como “característica do ser-total-que-age”. Para tanto, seria necessário fazer uma análise do homem como ser socializado, que vive em um mundo “e de que é, assim, aquilo que através da acção objectiva no mundo e que o mundo subjectiva nele”326

.

O professor de Coimbra adere à tese de que o “poder agir de outro modo” é absolutamente indemonstrável e inapreensível, acrescentando a ideia de que por meio da liberdade a pessoa e a conduta por ela praticada constituem a mesma coisa327. É por esta razão que a liberdade que fundamenta a culpabilidade deve ser referida à personalidade do agente. A culpabilidade seria, então, a violação pelo homem do dever de conformar sua existência, de forma que sua atuação na vida em sociedade não lesione ou exponha a perigo de lesão os bens jurídico-penalmente protegidos.

Figueiredo Dias sustenta uma culpabilidade funcionalizada ao sistema, e deve almejar a limitação do poder punitivo do Estado, muito embora seja um crítico do funcionalismo exacerbado, que enxerga a culpabilidade apenas como instrumento para atendimento de finalidades preventivas. De igual sorte, a ideia de liberdade, como fundamento material da culpabilidade, não deveria estar funcionalizada, sendo, ao revés, depreendida de um “axioma antropológico”, parte integrante do Estado Democrático de Direito, e da dignidade da pessoa humana328.

A ideia de liberdade como fundamento da culpabilidade é enaltecida por Figueiredo Dias. Ao rechaçar o “poder agir de outro modo” finalista, como já salientado, Figueiredo Dias vai buscar seu conceito de culpabilidade na filosofia, remontando ao pensamento de Platão, Aristóteles, Kant, Schopenhauer e Bergson329. Em sua obra, a liberdade não assume

326 DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito penal: Ob. cit., p.522.

327 PACHECO, Vilmar. A crise da culpabilidade. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009, p.173.

328 MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. O conceito material de culpabilidade: Ob. cit., p.283. 329 Ao tratar dos antecedentes de seu conceito de liberdade, afirma o professor português: “A história do pensamento da liberdade permite, de resto, entrever desde muito cedo uma pluralidade de caminhos através dos quais ela se deixa pensar neste plano sem contradição. Desde logo como forma de ‘escolha da existência’ em Platão, no mito de Er, onde a virgem Lachesis, filha da necessidade, põe o princípio de uma nova via para o gênero humano: ‘não é um ‘daimon’ que vos possuirá, antes vós que ireis escolher um ‘daimon’... A culpa não atinge a Divindade, mas aquele que escolhe’. Ou como possibilidade ontológica transcendental ancorada no carácter inteligível, como em Kant. Ou como característica do esse metafísico donde decorre a necessidade do operari empírico, como em Schopenhauer; onde ustamente faz Engisch entroncar a sua construção de uma culpa do caráter e Thomas Mann a concepção que põe na boa de Naphta: ‘O criminoso... é como é e não quer

a feição negativa, que vai marcar o advento dos direitos fundamentais de primeira geração, mas sim um aspecto positivo, um fazer, um agir, porquanto a liberdade engendra o ato de constituição do próprio ser que atua.

Além das críticas apresentadas por Roxin – sobretudo a que diz respeito à indemonstrabilidade de tal liberdade, tal como ocorre com o “poder agir de outro modo” – acrescentam-se como objeção à doutrina de Figueiredo Dias os argumentos pertinentes às dificuldades concretas de observância dessa liberdade, em contraposição aos postulados de um Estado Democrático.

Com efeito, em que pese Figueiredo Dias estruturar sua doutrina de modo a deixar muito claro a forma como rechaça qualquer propensão a um “direito penal do autor”, a intervenção punitiva poderia resvalar para um juízo de reprovação que recaísse não mais sobre o fato em si, mas sobre toda a personalidade do agente, como manifestação de sua liberdade, na conformação do “ser em si que age”. Não há como negar que a grandiosidade da doutrina do professor de Coimbra não possui o condão de robustecer o liame, assaz tênue, que separa seu conceito de culpabilidade de um direito penal do autor.

3.5. A pessoa deliberativa e o déficit de lealdade ao Direito: a influência de