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CAPÍTULO II CONSTRUÇÃO E EVOLUÇÃO DOGMÁTICA DO CONCEITO

2.3. A culpabilidade, o livre-arbítrio e o positivismo criminológico

2.3.3. O positivismo criminológico

A influência do positivismo científico na seara penal acabou dando ensejo à Escola positiva italiana, que encontrou seus grandes representantes nas figuras de Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Rafaelle Garofalo.

A Escola Positiva se contrapunha ao que chamavam de Escola Clássica, que encontraria em Carrara um dos seus grandes representantes. A rigor, jamais existiu a

73 Como bem salienta Anitua, o apogeu da cientificidade entra em crise no começo do século XX, quando as descobertas de Einstein e Max Planck vêm a lume. A partir daí, conceitos tidos como verdade imutáveis como tempo e espaço passam a ser questionados e a certeza científica cai por terra (ANITUA, Gabriel Ignácio. Ob. cit., p.301).

chamada Escola Clássica, na medida em que os autores que supostamente a integrariam não alimentavam, em suas doutrinas, semelhanças de relevo sobre qualquer grande temática; demais disso, jamais se identificaram como membros de uma Escola ou de uma mesma linha de pensamento. Em verdade, “Escola Clássica” foi a expressão empregada pelos positivistas – com uma certa conotação pejorativa, vale frisar – a todos os grandes autores que os precederam.

A Escola positiva adotava o paradigma determinista, negava o livre-arbítrio, e propunha a doção do método indutivo, defendendo a observância controlada dos fatos. Os partidários da Escola positiva pretendem uma compreensão do delito que se assente em teses indemonstráveis, ancorados em uma causalidade que derive de um ato de vontade livre e consciente, mas que objetive encontrar todas as causas, na totalidade biológica e psicológica do agente, e na totalidade social em que se encontra inserido74.

A primeira obra de expressão que segue essa corrente de pensamento é “L'uomo delinquente”, do médico italiano Cesare Lombroso, publicada em 1876. A obra clássica de Enrivco Ferri é “Sociologia criminale”, publicada em 1900. Em 1905, é a vez de Garofalo publicar seu “Criminología”.

A concepção bioantropológica de Lombroso é fruto da eclosão das ideias frenológicas e psicofísicas de sua época, que são transplantadas para a seara penal, por força da crise que começava a se espraiar pelo Direito Penal75. Lombroso via o crime como um ente natural, razão pela qual inicia sua obra analisando o delito no mundo zoológico76. Este ente natural seria determinado por causas biológicas. Muito embora não abdicasse da observância de fatores psicológicos e sociais77, é o determinismo biológico que vai caracterizar a obra de Lombroso.

A tese lombrosiana do criminoso nato desfrutou de muito prestígio, no fim do século XIX, servindo, inclusive, como fundamento para muitas condenações criminais78. Ademais, influenciou uma série de autores, não apenas na Europa, mas também na

74 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica y crítica del derecho penal: introducción a la sociologia jurídico-penal. Traducción: Álvaro Búnster. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2004, p.32.

75 ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p.298. 76 LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Tradução: Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone, 2007, p.23.

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BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica y crítica del derecho penal: introducción a la sociologia jurídico-penal. Traducción: Álvaro Búnster. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2004, p.32.

América. Sobretudo em países latino-americanos, como o Brasil79, as teorias lombrosianas estiveram carregadas de fortes impressões racistas80.

No Brasil, não há dúvida de que o mais representativo propagador das teses lombrosianas foi o médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues, professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Grande nome da medicina legal, Nina Rodrigues foi também o precursor da antropologia criminal no Brasil, e sua vasta obra traz temas ligados, direta ou indiretamente, ao Direito Penal. Podem ser destacadas as obras “As raças humanas e a

responsabilidade penal no Brasil” (1894), “Manual de autópsia médico-legal” (1901), “Os africanos no Brasil” (1932) e “As coletividades anormais” (1939).

Muito embora rechaçasse a escravidão – que, ademais, ja se havia abolido –, Nina Rodrigues conferia ares de cientificidade aos preconceitos incrsutados no senso comum de então, afirmando a inferioridade intelectual e moral do negro81. Além de Nina Rodrigues, pode ser mencionado, como representantes da antropologia criminal racista latinoamericana, José Ingenieros, fundador da criminologia argentia e autor, nas palavras de Zaffaroni, das mais racistas páginas já escritas na América Latina82.

No que se refere, particularmente ao livre-arbítrio, Lombroso dedicou o último trecho de “O homem delinquente”a analisá-lo. A conclui asseverando que, nas pessoas sãs, a vontade é livre, mas “os atos são determinados por motivos que contrastam com o bem-

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GOLD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. Tradução: Valter Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p.48.

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Para uma análise desta influência no Brasil, FREITAS, Ricardo de Brito Albuquerque Pontes. As razões do positivismo penal no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

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Muito embora a conotação racista seja mais acentuada nos seus discípulos latino-americanos, a obra de Lombroso não fugiu a esta característica. Nas palavras de Anitua: “Mas Lombroso não era um racista convicto, apesar de haver escrito em 1871, uma obra que indubitavelmente o era – o homem branco e o homem de cor –, na qual afirmaria a inferioridade do negro e também dos habitantes do sul da Itália” (ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p.304). 81 “O critério científico da inferioridade da Raça Negra nada tem de comum com a revoltante exploração que dele fizeram os interesses escravistas dos Norte-americanos. Para a ciência não é esta inferioridade mais do que um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas divisões ou seções. “Os negros Africanos, ensina Hovelacque são o que são; nem melhores, nem piores do que os brancos; pertencem apenas a uma outra fase de desenvolvimento intelectual e moral.” (NINA RODRIGUES, Raimundo. Os africanos no Brasil. Disponível em: http://www.do.ufgd.edu.br/mariojunior/arquivos/RODRIGUES_Os_africanos_no_Brasil.pdf, p.12). 82

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminología: aproximación desde un márgen. v.1. Bogotá: Temis, 1988, p.150.

estar social”. Tal nao se daria naqueles que padecem de demência ou alguma outra patologia, ou, ainda, nos delinquentes natos83.

A obra de Lombroso está, como se percebe, carregada de forte influência do determinismo biológico. Já Enrico Ferri – aluno de Cesare Lombroso e, posteriormente, professor de Direito Penal – procura enaltecer questões relacionadas a fatores econômicos e sociais, e, por isso, é tido como precursor da sociológica criminal.

Para Ferri, a sociologia criminal seria uma “ciência geral sobre a criminalidade”84

, e teria dois ramos, o biossociologico e o jurídico. Em seu ramo biossociológico, a sociologia criminal estudaria – em conjunto com a antropologia criminal – as causas físicas e sociais do ambiente85. No ramo jurídico, a sociologia criminal se dedicaria ao estudo da “defesa social à organização jurídica de prevenção direta (polícia de segurança) e sobretudo a organização jurídica repressiva (crime, pena, juízo, execução) como conjunto de normas legislativas e das suas aplicações interpretativas”86

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No que se refere ao livre-arbítrio, Ferri não o nega de todo, mas ressalta que estaria muito limitado, pelas condições físicas ou psíquicas do indivíduo87. Sobressai em importância, neste ponto, o fato de que Ferri não rejeita a antropologia criminal lombrosiana; ao revés, Ferri agasalha a classificação dos delinquentes de Lombroso88. Anota distintiva do seu pensamento reside, porém, no fato de que, a par das características biológicas do indivíduo, as questões sociais do ambiente em que se insere podem influir sobremodo na pratica criminosa.

Por seu turno, Raffaele Garofalo, professor da Universidade de Nápoles e, posteriormente, senador da Itália, procurou, com seu “Criminología”, estudar o crime – e não o criminoso, como faziam Lombroso e seus seguidores. Garofalo objetivou encontrar

83 LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Tradução: Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone, 2007, p.223.

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FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. Tradução: Luiz de Lemos D´Oliveira. Campinas: Russell Editores, 2003, p.94.

85 FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. Tradução: Luiz de Lemos D´Oliveira. Campinas: Russell Editores, 2003, p.94.

86 FERRI, Enrico. Ob. cit., p.95. 87

“Ou se admite o livre arbítrio, Segundo o qual o ato individual não é senão um fiat de uma vontade incondicionada, e então é-se lógico em dizer que o delinqüente pode ser um normal, mas se se nega o livre arbítrio (determinismo) ou mesmo se somente se admite, como atualmente, por todos, que este seja limitado e restrito e influenciado pelas condições fisiopsíquicas do indivíduo e pelas circunstâncias do ambiente, não se pode desconhecer que o fato de reagir com um crime indica uma anormalidade psíquica no indivíduo” (FERRI, Enrico. Ob. cit., p.188).

um conceito material de crime, definindo-o como conduta que viola os mais comezinhos sentimentos de solidariedade social, tais como a probidade e a piedade.

Ao adotarem uma postura determinista, negativa do livre-arbítrio, o pensamento dos partidários da Escola Positiva não poderia se compatibilizar com a retribuição, na imposição da pena. Por isso, a Escola é marcada por uma forte perspectiva prevencionista. Muitos dos simpáticos ao positivismo criminológico, por força disso, sufragaram, de igual sorte, a indeterminabilidade no cumprimento da pena89.

A negativa do livre-arbítrio como grande bandeira de contraposição ao que chamavam de Escola Clássica foi a tônica dos discursos positivistas italianos, como se percebe.

2.4. Evolução dogmática da culpabilidade e sua relação