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4 CONCEPTIBILIDADE COMO CRITÉRIO DE POSSIBILIDADE?

4.1 Debate da conceptibilidade

4.1.2 É a concepção guia para a possibilidade?

4.1.2.1 Tese conceptibilidade-possibilidade

4.1.2.1.3 A conceptibilidade livre de contra-exemplos

O tipo de conceptibilidade que seja livre de contra-exemplos, conforme Chalmers (2002, pp. 171-3), é a conceptibilidade positiva ideal primária. A tese conceptibilidade- possibilidade é, portanto, a afirmação de que a conceptibilidade positiva ideal primária nos dá acesso ao conhecimento da possibilidade74. As razões para cada dimensão dessa conceptibilidade para este tipo são as que seguem.

(i) A dimensão ideal é um melhor guia que a dimensão prima facie. Há uma razão simples para isso, a de que as coisas que concebemos prima facie em geral podem esconder contradições as quais não percebemos, assim, uma concepção ideal é a melhor forma de termos acesso à possibilidade. Ora, dessa forma teríamos justificativa não anulável por uma melhor razão. Tome o exemplo de alguém que não sabe que Ricardo Reis é Fernando Pessoa. Esta pessoa lê poemas de Ricardo Reis e também poemas de Fernando Pessoa, essa pessoa gosta dos poemas a ponto de tê-los como preferidos, mas quando perguntada qual seu poeta preferido, essa pessoa responde que seus poetas preferidos são Ricardo Reis e Fernando Pessoa. Essa pessoa concebe prima facie que Fernando Pessoa não é Ricardo Reis. Com o tempo, essa pessoa descobre que Ricardo Reis é, na verdade, um heterônimo usado por Fernando Pessoa. Assim, essa pessoa passa a ter um anulador para sua crença antiga de que Fernando Pessoa não é Ricardo Reis. Nós diríamos, com isso, que esta pessoa concebia a possibilidade de Fernando Pessoa não ser Fernando Pessoa? Não. Fernando Pessoa não ser

74 Possibilidade no sentido que frisamos na primeira parte de nossa investigação, uma possibilidade metafísica

num sentido absoluto. Chalmers (2002, p. 171) afirma que essa conceptibilidade nos guia para uma possibilidade primária. É feita, dessa forma, uma distinção entre possibilidade primária e secundária. Não assumiremos essa distinção aqui, pois o que é dito como possibilidade secundária é o que vimos como possibilidade física em sentido contrafactual. Portanto, pelas razões que refletimos nos capítulos I e II, a possibilidade que buscamos não se distingue em primária e secundária.

138 Fernando Pessoa permanece intuitivamente impossível porque é uma contradição (e uma contradição não pode ser verdadeira). Essa pessoa inicialmente concebia prima facie que Fernando Pessoa não era Fernando Pessoa, mas idealmente não se concebe isso. Em conclusão, a conceptibilidade prima facie não é um bom guia para a possibilidade, contudo, a concepção ideal é um bom guia para a possibilidade.

(ii) A dimensão positiva é melhor guia que a dimensão negativa. O motivo da dimensão positiva ser um melhor guia é porque ela esclarece uma possibilidade enquanto a negativa nem sempre. Tome como exemplo uma conjectura matemática em que ela ou sua negação é verdadeira, mas não temos uma prova (como a conjectura de Goldebach). Uma vez que se a conjectura for verdadeira, os métodos a priori nos mostram que sua falsidade é necessariamente falsa (o conhecimento a priori mostra que sua verdade é uma contradição). Contudo, atualmente não temos como retirar (mostrar a falsidade) a priori nem a conjectura e nem a falsidade da conjectura, se não temos como fazer isso e a dimensão negativa diz que concebemos se não tivermos uma contradição, então isso significaria que a dimensão negativa da conceptibilidade nos levaria a conceber uma impossibilidade75 (não seria um bom guia) –

afinal a possibilidade nesse caso não parece realmente aberta76. Por outro lado, a dimensão

positiva não nos leva a esses equívocos, uma vez que ela exige uma imaginação modal e coerente de forma a ter em mente todos os detalhes cruciais para x para que x seja concebível nesse sentido. Assim, conceber a verdade ou a falsidade da conjectura exigiria conceber a demonstração. Portanto, a dimensão positiva da concepção sempre nos leva ao conhecimento de uma possibilidade.

(iii) A dimensão primária é melhor guia que a dimensão secundária. Alguns poderiam argumentar que esse não é o caso, que a dimensão secundária é um melhor guia porque ela não nos leva ao equívoco de conceber que água não seja H2O, ao passo que a dimensão primária nos leva a conceber que água não seja H2O. Uma vez que água seja H2O é verdadeiro, e relações de identidade são necessárias, que água seja H2O é necessário e, dessa forma, conceber que água não seja H2O nos leva a conceber uma impossibilidade, não uma

75 Veja que isso ocorre num caso de concepção prima facie negativa, um caso de concepção ideal negativa não

ocorre. Pois, nesse caso temos razões melhores para não assumir essa concepção, justamente a razão da indeterminação do valor de verdade.

76 Chalmers sugere que a dimensão negativa é um bom guia para situações determinadas, não indeterminadas

como esse exemplo. Proponho que esta sugestão pressupõe o que se quer provar – uma petição de princípio. Uma vez que é um método para nos levar ao conhecimento de uma possibilidade, mas pressupõe que já tenhamos conhecimento da possibilidade (conhecimento da determinação) para que possamos conhecer a possibilidade (ser um bom guia de conhecimento). É uma solução evidentemente ad hoc. Por isso, a dimensão negativa é falha e não é suficientemente boa como a dimensão positiva.

139 possibilidade. Portanto, a dimensão secundária é um melhor guia e não a dimensão primária. Há um problema nesse raciocínio, e ele pode ser compreendido quando percebemos que a dimensão secundária, por levar em consideração nossos conhecimentos a posteriori, é uma dimensão contrafactual. Isso significa que essa concepção nos leva a raciocínios do tipo: dado o nosso mundo atual, o que seria possível? O mundo atual é o fixo, e a possibilidade aí é vista como contrafactos de acordo com o mundo fixo atual. Dessa forma, água não poderia não ser H2O, pois é uma identidade verdadeira em nosso mundo atual fixo. Considere, então, o seguinte. Nós sabemos que se algo é o caso, então esse algo é possível (em momento algum tivemos razões para anular isso). Nós sabemos também que é o caso que água é H2O, logo, é possível que água seja H2O. Reconsidere agora que nosso mundo não seja o atual, mas o mundo atual seja o mundo XYZ, nesse mundo, o que fenomenologicamente entendemos como água (o que preenche os oceanos, mares, rios e lagos, por exemplo) nesse mundo sua fórmula química é XYZ. Com isso, no mundo XYZ é verdadeiro que água seja XYZ, se nós temos uma identidade verdadeira, então sabemos que ela é uma verdade necessária. Sendo assim, não é possível que água não seja XYZ. Consequentemente, tomando o mundo XYZ como mundo atual, alguém desse mundo chegaria à conclusão de que o mundo em que eu e você existimos e que você está a ler esse texto agora é um mundo impossível! Alguém pode sugerir que essa seja uma conclusão incorreta, que a pessoa deveria apenas concluir que no nosso mundo, que é um mundo possível, não existe água. Todavia, se perguntado se é possível que haja água em nosso mundo, essa pessoa responderá que é impossível, dado o livro de mundo de nosso mundo, pois é impossível que água seja H2O. Dessa forma, se o livro de mundo de nosso mundo contiver a afirmação de que água existe, este será um mundo impossível partindo desse mundo XYZ. Mas nós sabemos que água existe em nosso mundo, porque acreditamos ser verdadeira a identidade entre água e H2O, e, dessa forma, ora, sabemos que somos possíveis, portanto, isso deve estar errado. O que isso nos mostra? Que uma concepção contrafactual não nos leva à possibilidade. É um método que se seguirmos, chagamos a conclusão de que coisas realmente possíveis (pelo princípio ab esse ad posse) sejam impossíveis. Não é um critério coextensivo com o domínio da possibilidade. Afinal, sabemos que é possível que água seja H2O, mas por método de concepção contrafactual alguém pode concluir a impossibilidade disso. O método de concepção contrafactual nos faz confundir possibilidades com impossibilidades. Isso não ocorre com a dimensão primária, justamente porque ela não se compromete com o conhecimento a posteriori e, consequentemente, com uma concepção contrafactual. Levando em consideração tudo o que conhecemos de forma a priori, nada indica que não é possível que água seja XYZ, e isso está

140 de acordo com aquilo que conhecemos que preenche os oceanos e mares (em assim por diante) ser XYZ77. Essa dimensão primária está de acordo, por exemplo, com a possibilidade

de que nada exista, afinal não é a priori que algo exista78. Isso está de acordo com as

operações que podemos fazer mentalmente através da atividade cognitiva da concepção, por exemplo, conceber água sem ser H2O. Aliás, isso pode nos informar ainda mais sobre a natureza da possibilidade se estiver correto. Por outro lado, afirmar que essa dimensão é problemática apelando para as razões dos usos de linguagem e sua análise conforme Kripke (designadores rígidos), assumindo assim um essencialismo, não é suficiente porque a linguagem não é um dado a priori. Tratar a metafísica da modalidade pelo funcionamento de nossa linguagem é assumir que a metafísica se resume a nossa linguagem (isso não é nada óbvio79!). Devemos lembrar, conforme frisamos na primeira parte de nossa investigação, a

modalidade é algo do mundo além de nós também, não apenas algo nosso, ao menos é essa nossa intenção ao falar de modalidade – não temos como assumir a concepção contrafactual como guia para a possibilidade sem trivializar a relação concepção-possibilidade (pressupô- la!). Em conclusão, a dimensão primária da conceptibilidade é um melhor guia à possibilidade.

Essas são as razões que mostram que a conceptibilidade positiva ideal primária é um bom guia para a possibilidade. Além disso, um guia sem contra-exemplos, conforme analisamos os maiores adversários para a conceptibilidade, tais como determinados enunciados matemáticos e identidades empíricas. Segundo esse raciocínio, parece que a concepção nos dá a possibilidade, diferentemente do que havíamos concluído até agora. Será então que essa visão de concepção é suficiente para se contrapor e superar as conclusões anteriores que nos indicavam o contrário? É o que veremos na próxima subseção.