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3 A NATUREZA DA CONCEPÇÃO

3.2 Concepção e Cognição

3.2.1 A ideia de fechamento cognitivo

3.2.1.1 O mistério mente-corpo

3.2.1.1.1 Mente e corpo: uma relação problemática

A relação mente-corpo é problemática devido à consciência, uma especificidade da mente. Parafraseando Nagel (2002), a relação mente-corpo sem a consciência não parece tão relevante, mas com a consciência parece um problema insolúvel. A questão, no entanto, não é

82 uma dificuldade em categorizar tipos de consciência, mas a relação de tais consciências35 com

um mundo físico. Em outras palavras:

Para filósofos como Thomas Nagel [...] e Colin McGinn, o problema mais importante não é o de se classificar formas de consciência ou de se investigar os seus traços mais característicos. O grande problema metafísico é o de tornar compreensível como, em um mundo totalmente físico, se faz possível a existência de algo irredutivelmente subjetivo e fenomenal como a consciência. Esse é para muitos um inescrutável mistério. (COSTA, 2005, p. 14)

De um lado temos a nossa visão científica de mundo, uma visão objetiva e de terceira pessoa, onde temos experimentos replicáveis e justificativas acessíveis ao público e capazes de correção numa comunidade. De todo o discurso público e objetivo constituímos a nossa visão científica de mundo – uma descrição do mundo (livro de mundo). Do outro lado temos nossa visão subjetiva do mundo, algo que parece intransferível, um ponto de vista de primeira pessoa que versa sobre nossos desejos, intenções, percepções, experiências, consciência, crenças, nossas sensações em geral e etc. Da combinação das duas visões temos uma grande surpresa: o que é conhecido por “princípio surpresa” (CHALMERS, 1997). O princípio diz que se partimos de um ponto de vista de terceira pessoa, então não temos razões suficientes para postular a existência do fenômeno da experiência consciente; contudo nós evidenciamos o fenômeno, temos36 em primeira pessoa a experiência consciente. Dessa forma, para o ponto

de vista de terceira pessoa esse é um fenômeno que surge de forma surpreendente. Por conseguinte, os fatos físicos, descritos e previstos pela nossa atual visão científica de mundo, não nos levam ao surgimento ou existência da experiência consciente. Em outras palavras, embora explique as reações químico-físicas e biológicas envolvidas, a ciência não nos dá o gosto do beijo da pessoa amada.

Dessa surpresa temos o problema: como conciliamos teoricamente o objetivo e o subjetivo? Teorias materialistas insistem em algum tipo de redução do mental (subjetivo) ao físico (objetivo) – isso quando não eliminam o mental. Alguns filósofos, como Kripke (1980), argumentam pela impossibilidade de redução por serem (o mental e o físico) coisas distintas.

O argumento37 de Kripke (1980) para demonstrar que um estado mental não é um

estado físico do cérebro38 e, dessa forma, que são coisas distintas, delineia-se da seguinte

35 Especificamente, seus estados qualitativos ou qualia. Nos termos de Cordeiro, a “aparência da experiência”

(CORDEIRO, 2016, p. 19).

36 Em contramão às perspicazes argumentações eliministas de DENNETT (1988); embora já tenha contra-

argumentado tais posições em outro momento, para mais detalhes ver CAETANO (2015).

37 O argumento de Kripke contra o materialismo é um dos vários argumentos por conceptibilidade que citamos

83 maneira. Primeiro compreendamos que quando nos referimos a algo com um termo e depois com outro termo, estamos nos referindo a mesma coisa com dois termos distintos. Se estes dois termos distintos se referem à mesma coisa, isso significa que eles não poderiam se referir a coisas distintas. Afinal, se eles se referissem a coisas distintas, não se refeririam à mesma coisa como o fazem, mas a duas coisas. Portanto, se temos uma relação de identidade entre dois termos (se os dois termos se referem a mesma coisa), então temos uma relação necessária e não contingente, ou seja, não teríamos como conceber os termos se referindo a coisas diferentes mantendo eles a mesma referência inicial da identidade39.

Ora, quando uma redução materialista diz que estados mentais são reduzidos a estados cerebrais em forma identitária, está dizendo que os dois termos se referem a uma coisa só. Sendo assim, se os dois termos se referem a uma coisa só, então não temos como conceber a referência de um termo sem a referência do outro termo, afinal são as mesmas. Contudo, isto não é o que acontece para estados mentais e estados cerebrais porque nós podemos conceber um estado mental sem o correspondente estado cerebral que supostamente se referia à mesma coisa. Para usar o exemplo de Kripke (1980), suponha que o materialista diz que dor é estímulo das fibras-C, dessa forma, nós podemos conceber alguém que sinta dor sem que tenha estímulo das fibras-C e vice-versa. Se podemos conceber a distinção, isso significa que é uma relação contingente. Ora, mas se é uma relação contingente, então não é uma relação necessária. Se não é uma relação necessária, logo não é uma relação de identidade. Se não é uma relação de identidade, então dor e estímulo das fibras-C não são a mesma coisa. Se não é a mesma coisa, então um estado mental é uma coisa e um estado cerebral é outra. Se são duas coisas distintas, então não é como o materialismo dizia. Em conclusão, o materialismo é falso. Kripke chega a uma conclusão metafísica sobre a falsidade do materialismo, diferentemente de Levine (2002) que pretende mostrar que uma conclusão metafísica não se sustenta com as razões apresentadas, embora possamos sustentar uma conclusão epistemológica problemática ao materialismo. Essa conclusão epistemológica problemática investigação. Contudo, para o bem da compreensão do tema, concedamos o raciocínio – do mesmo modo que fizemos com a possibilidade sugerida por Chomsky no fechamento cognitivo.

38 Kripke, em seu famoso argumento contra o materialismo, não argumenta diretamente contra o funcionalismo,

corrente que entende que a mente é compreendida pelo que faz e entende estados mentais como estados funcionais, mas contra um materialismo de identidade entre estados mentais e estados cerebrais (BRANQUINHO, 2002). Todavia, mutatis mutandis, seu argumento pode ser organizado para ser um argumento contra a identidade entre um estado funcional da mente e um estado funcional do cérebro. Isso é o que demonstra Levine em Materialism and qualia: the explanatory gap (2002).

39 Essa é a intuição sustentáculo da ideia de designador rígido de Kripke (1980), a ideia de que um termo é um

84 sugerida por Levine é a de que embora o materialismo possa ser verdadeiro, há uma lacuna na sua explicação sobre a mente. Como se segue:

[...] Levine [...] queixou-se de uma “lacuna explanatória”: a de que nenhuma teoria funcionalista pode explicar por que determinada sensação é sentida pelo sujeito da maneira que é. A questão “Por que tais e tais eventos funcionais constituem ou produzem uma sensação como essa?” parece estar sempre aberta. (LYCAN, 2013, p. 196)

Conclusão parecida se expressa nas palavras de Nagel (2002) ao concordar que a visão materialista (objetiva) não expressa o subjetivo em seu corpo teórico: “[...] o caráter subjetivo da experiência [...] não é capturado por nenhuma das conhecidas análises reducionistas recentemente desenvolvidas, pois todas elas são logicamente compatíveis com sua ausência.” (p. 219)

Levine sustenta que uma das premissas de Kripke é tratada como óbvia enquanto não o é. Além disso, que ela é plausivelmente falsa. Dessa forma, o argumento nos permite chegar apenas a uma conclusão epistemológica e não metafísica. Essa é a premissa que nos diz que a concepção da distinção pode nos mostrar uma distinção metafísica, em outras palavras, que conceber como coisas separadas implica que sejam coisas separadas e não uma coisa apenas. Dessa forma, a ideia de conceptibilidade é determinante para a distinção das modalidades de necessidade (é inconcebível que não seja da forma que se concebe, daí necessário) e contingência (é concebível uma alternativa a forma que se concebe, daí contingente). Vemos a centralidade dessa ideia quando Cordeiro (2016) nos apresenta o raciocínio de Kripke no seguinte trecho:

[...] A sensação de dor, que é interna, é essencial para a nossa concepção de dor e poucos consideram plausível separar dor e sensação de dor. Para o teórico da identidade filiado ao materialismo (ou à vertente funcionalista), a sensação deveria ser igual a um (tipo de) fenômeno físico, mas agora voltamos ao nosso problema: “[...] a identidade entre dor e estimulação de fibras-C, se verdadeira, deve ser necessária.” (ibidem, p. 331); todavia, se admitimos que é possível conceber, ao menos logicamente, a sensação de dor ocorrendo sem a estimulação de fibras-C e vice versa, a identidade é falsa, pois é concebivelmente contingente. (p. 15, itálico nosso)

Dessa forma, a relação entre inconceptibilidade e impossibilidade deve ser justificada. Isso nos é esclarecido da seguinte maneira:

[...] Levine, recorrendo às necessidades nos âmbitos epistemológico e metafísico, diz que ele [o argumento de Kripke] não é persuasivo porque depende de uma premissa não justificada, a de que situações impossíveis são inconcebíveis. Como nós podemos conceber dor sem estimulação das fibras-C e vice-versa, então supõe- se que é possível uma situação em que temos uma coisa sem a outra. O filósofo levanta a hipótese de que isso pode não ser o caso, que podemos ser capazes de conceber situações que de fato não podem ocorrer. Assim, pode ser que haja uma conexão necessária entre ser dor e ser estimulação das fibras-C. Apesar disso, não

85 temos como explicar a nossa impressão de que podemos conceber a quebra dessa conexão. 'Lacuna explicativa' é o nome que se dá à falta dessa explicação. (CORDEIRO, 2016, p. 29-30)

Aqui podemos ver a distinção, como bem faz Levine, dos campos da epistemologia e da metafísica. Possibilidade, como vimos, é uma noção metafísica. Concepção é uma noção epistemológica, cognitiva. Assim, a premissa de concepção de dor sem estímulo das fibras-C nos indica uma conclusão no campo da concepção, isto é, o campo epistemológico. Em outras palavras, mostrar a concepção de algo não é o mesmo que mostrar a possibilidade de algo. Essa é uma intuição cara para a nossa reflexão central, voltaremos a ela na terceira parte de nossa investigação, quando discutiremos a conceptibilidade como um guia para a possibilidade.

Agora que tomamos nota da lacuna explicativa e, por conseguinte, do problema epistemológico levantado por Levine, estamos a apenas um passo de compreender o problema mente-corpo como mistério mente-corpo. Esse passo é a sugestão de McGinn de que a teoria que explicasse a relação problemática entre o subjetivo e o objetivo e, consequentemente, preenchesse essa lacuna explicativa, seja uma teoria cognitivamente fechada a nós. Para isso, avaliemos os pontos 2) e 3) como dissemos, respectivamente a saber, quais os dois meios epistêmicos que temos para investigar cada termo do problema e por que cada meio de conhecer um dos termos falha em conhecer o outro termo.