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3 A NATUREZA DA CONCEPÇÃO

3.1 Entendendo a Concepção

3.1.2 O que é conceber?

3.1.2.1 O sentido estrito de concepção

O sentido estrito de concepção nos diz, como vimos, que conceber é “pôr em um cenário” – o que quer que seja isso. Mas o que é “pôr em um cenário”? O que é um cenário? É justamente isso que buscaremos esclarecer nesta subseção. Em princípio, defenderemos que cenários são mundos possíveis epistêmicos. Além disso, defenderemos que conceitos são constituintes de cenários. A relação constitutiva entre cenários e conceitos nos dará a captação da centralidade da noção de concepção pelo sentido estrito de concepção. Isso nos dará condições de avaliar dois desdobramentos na próxima subseção e termos clareza sobre o que seja conceber.

A primeira ideia que desenvolveremos é a ideia de cenários como mundos possíveis epistêmicos. Em seguida, que conceitos são constituintes de cenários.

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3.1.2.1.1. Cenários como Mundos Possíveis Epistêmicos

A expressão “mundos possíveis” teve início com Leibniz (1646-1716) e atualmente é usada em sentido formal na lógica modal (BRANQUINHO, MURCHO, GOMES, 2006, p. 532). Mundos possíveis pretendem expressar as intuições que nós temos dos modos como as coisas podem ser. Usada de forma semântica, a ideia não determina nenhuma tese sobre os problemas modais, antes clarificam as teses em confronto (BRANQUINHO, MURCHO, GOMES, 2006, p. 532). É essa visão sem implicação ontológica que queremos refletir. Mundos possíveis como descrições alternativas do mundo atual21.

Pense em uma descrição linguística de nosso mundo. Para cada estado do mundo uma frase que verdadeiramente o descreva ou o expresse. O conjunto de todas as frases que verdadeiramente descrevam o mundo em sua totalidade seria o que podemos chamar de livro de mundo. Esse seria o livro do mundo atual. Se resolvêssemos modificar uma frase, por exemplo, maças são naturalmente azuis, então nós teríamos um livro de mundo diferente. Esse seria um mundo diferente, um mundo alternativo. Isso seria um mundo possível. As mais diversas formas de escrever um livro de mundo nos dariam os mais diversos mundos possíveis. O nosso mundo atual, portanto, é um desses mundos possíveis – uma vez que é uma forma específica de livro de mundo escrito. Na tradição, essa é uma abordagem combinatorial de mundos possíveis (MENZEL, 2016, seção 2.3).

É importante perceber que todos esses livros de mundo estão de acordo com a nossa compreensão linguística e, nesse sentido, é limitado qualitativamente22 pelas nossas

capacidades linguísticas. Isso significa que todos esses livros de mundo que pensamos são livros de mundo que expressamos de acordo com os limites combinatórios das nossas experiências do mundo atual, do nosso conhecimento dele. Com isso, expressamos o que queremos dizer com mundos possíveis epistêmicos. Portanto, mundos possíveis epistêmicos são descrições de combinações determinadas de experiências que temos do mundo atual.

21 Pode-se entender a expressão mundo atual como o conjunto universo das coisas que são o caso; ou, nas

palavras de Menzel (2016, parágrafo 1), situação maximamente inclusiva de situações como um todo. Resumidamente, o mundo das coisas como são, em contraste como as coisas poderiam ser e não são (uma vez que as coisas como são é uma forma de como as coisas poderiam ser).

60 Essa visão de mundos possíveis epistêmicos capta a noção de cenário que está em jogo, pois é o que fazemos quando propomos reflexão sobre algum cenário – descrevemos uma combinação determinada de experiências que temos do mundo atual. Quando digo que para formular cenários em nossa concepção precisamos partir de nossas experiências do mundo atual, falo no sentido de que não criamos novas experiências (em sentido qualitativo), mas utilizamos as experiências que temos e recombinamos para a construção de versões alternativas. Por exemplo, nunca vimos um porco com bico de corvo, mas já vimos porcos e já vimos corvos, ou seja, temos a experiência de porcos e experiência de corvos, dessas experiências do mundo atual criamos o cenário de um porco com bico de corvo. Não temos cenários que não dependem de nossas experiências – não temos sequer como falar de algo radicalmente alienígena a nossas experiências no sentido que não temos nenhuma familiaridade. É nesse sentido que precisamos partir invariavelmente das nossas experiências do mundo atual (peço que o leitor tente ter em mente um mundo possível que não utilize nada parecido do mundo atual; esse é um exercício que mostra ao leitor o que estou dizendo). Portanto, cenários são descrições de combinações determinadas de experiências que temos do mundo atual. Em outras palavras, quando concebemos, no sentido estrito, montamos modelos mentais conceituais, nós usamos conceitos para expressar proposições de determinado livro de mundo.

Entretanto, friso que a experiência é crucial para essa nossa concepção, assim como é a linguagem. Uma objeção seria: se a experiência é exigida nessa descrição combinatorial, então um cego de nascença, por exemplo, não conceberia o enunciado “o céu é azul”. Em resposta, mas um cego de nascença realmente não concebe “o céu é azul” da mesma forma que uma pessoa que não é cega concebe “o céu é azul”. As concepções são distintas, pois as experiências que estão em jogo são distintas. Para um cego de nascença, sua experiência relacionada a “o céu é azul” é a de uma prática linguística social, ou seja, é a de ouvir dos outros dizerem que o céu é azul. É a partir daí que ele chega a isso. Sua concepção é derivada, pois se seres humanos não possuíssem visão, não faria sentido um vocabulário de cores para afirmar “o céu é azul”. A capacidade conceptiva está diretamente ligada com as capacidades cognitivas de experiência de uma espécie. Por isso, uma pessoa que não é cega quando concebe “o céu é azul”, concebe de forma diferente de um cego de nascença. O mesmo se segue para outros sentidos e experiências ausentes. A capacidade de formular conceitos é dependente da capacidade de experienciar de um sistema cognitivo conceptivo. Quando temos diferenças nessas capacidades entre indivíduos, uns concebem umas coisas que outros não

61 concebem e assim por diante. Como explicar para um cego de nascença, em linguagem, como é a experiência da azulidão do céu? Voltaremos a essa intuição no capítulo IV – Concepção e Cognição. Por ora temos esclarecida a noção de cenários como mundos possíveis epistêmicos: descrições de combinações determinadas de experiências que temos do mundo atual.

Antes de prosseguir, devo esclarecer a seguinte questão: um cenário seria uma descrição completa de um mundo? Parece intuitivo responder que não. Ora, alguém pode apenas conceber um cenário bem delimitado onde Sócrates era um sapateiro e não um filósofo. Certamente alguém com esse cenário em mente não pensa numa descrição completa de mundo, consequentemente um cenário não seria uma descrição completa de um mundo. Todavia, sugiro que isto não é o caso. Pois quando temos em mente cenários delimitados assim, pensamos no ponto específico que é diferente do mundo atual, ao passo que pressupomos que todo o resto permanece o mesmo. Ou seja, por mais que não façamos uma descrição exaustiva de um mundo num cenário, isso é assim porque descrevemos apenas a alternativa significativa (a diferença), uma vez que o resto permanece sem mudança (pois não é o foco de interesse). Dessa forma, um cenário é uma descrição completa de mundo – de acordo com a noção de mundo dada pelas experiências do mundo atual pelo sujeito formulador do cenário.

À vista disso, reflitamos sobre a relação entre conceitos e cenários a seguir.

3.1.2.1.2. Conceitos como constituintes de Cenários

Ao compreendermos cenários como mundos possíveis epistêmicos, ou seja, cenários como descrições de combinações determinadas de experiências que temos do mundo atual, então podemos perceber a centralidade da noção de conceitos para cenários. Isso acontece devido a noção de descrição.

Conceitos são centrais para descrições, isto é, não há descrição sem conceitos. Descrever é uma reiterada aplicação de conceitos. Portanto, conceitos são centrais para cenários. Além disso, uma vez que descrever é uma reiterada aplicação de conceitos e que descrições constituem cenários, temos que é a aplicação de conceitos que constitui cenários. Logo, cenários são constituídos de conceitos. Conceitos são os elementos básicos de cenários.

62 Dessa forma, temos que o sentido estrito de concepção capta a centralidade da noção de concepção, conceitos, e não nos leva para as confusões do sentido amplo. Concluímos assim que o sentido estrito é o mais adequado para uma compreensão clara e não confusa de concepção.

Finalmente, voltemo-nos para a questão inicial da seção. O que é conceber? Se conceber é “pôr em um cenário”, então significa que conceber é pôr em uma descrição combinatória determinada de experiências que temos do mundo atual. E descrever é aplicar conceitos. Logo, conceber é aplicar conceitos, capturar algo aplicando conceitos. Portanto, conceber é “pôr em conceitos”. Mas o que são conceitos? Precisamos nos comprometer com alguma natureza de conceitos para termos clara a noção de concepção e entender sua natureza? É o que veremos na próxima subseção.