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4 CONCEPTIBILIDADE COMO CRITÉRIO DE POSSIBILIDADE?

4.2 Consequências filosóficas

4.2.2 Aplicação: o argumento dos zumbis

Começamos a nossa investigação sobre a possibilidade com uma motivação: essas concepções estranhas que alguns filósofos usam em seus argumentos nos dizem realmente alguma coisa sobre a natureza do mundo? Daí indagamos se a concepção de algo seria conhecer a possibilidade de algo e, com isso, saber alguma coisa sobre a natureza de alguma coisa. Após toda a nossa reflexão e as conclusões que chegamos, voltemo-nos para esses argumentos que nos motivaram. Aqui escolhemos avaliar um especificamente, o famoso argumento dos zumbis.

Em The Conscious Mind (1997), Chalmers sugere o que chamaríamos de uma possibilidade extraordinária através de uma concepção e, daí, conclui que um enunciado sobre a natureza metafísica de nosso mundo é falso. Essa possibilidade era a possibilidade de um mundo onde as pessoas não tivessem uma fenomenologia na consciência, em outras palavras, que não tivessem uma consciência fenomênica. Esses seriam os zumbis fenomênicos. Esse mundo seria um mundo em que teríamos nossos gêmeos zumbis. O mundo seria de todo modo igual ao nosso, todos os detalhes físicos seriam os mesmos, porém, sem o fato positivo da consciência fenomênica. Disso, concluiríamos que o materialismo, tese que diz que tudo no mundo é físico, seria falso. O argumento estrito é o que se segue em quatro passos:

“(...) 1) Em nosso mundo, há experiências conscientes.

2) Há um mundo logicamente possível e fisicamente idêntico ao nosso, no qual os fatos positivos sobre a consciência em nosso mundo não ocorrem.

3) Há fatos sobre a consciência que são fatos adicionais sobre o nosso mundo, fatos além e acima dos fatos físicos.

4) Portanto o materialismo é falso. (...)” (CHALMERS, 1997, p. 109, tradução de Cícero A. C. Barroso91)

Dado o argumento, então que apliquemos os resultados de nossa reflexão numa avaliação da correção do argumento.

O primeiro ponto é o de que o argumento original se trata de uma possibilidade lógica. Inicialmente vimos que para falarmos de possibilidade metafísica no sentido absoluto não seria especificamente uma possibilidade lógica, posto que esta é uma possibilidade relativa. De qualquer modo, o que se está a sugerir aqui é uma possibilidade que não tem nenhuma contradição em si. Isto é, o mundo zumbi é descrito de forma que no livro do mundo zumbi não há nenhuma contradição. Concedamos, então, que isto seja uma concepção como vimos

157 na seção 2.3.2 (contradição conceptual como critério de concepção) do capítulo III. Isso significa conceder que no livro do mundo zumbi não há nenhuma contradição estrita do tipo p^¬p, mas também não há nenhuma contradição conceptual do tipo SOLTEIRO-CASADO. Essa estranha sugestão dos zumbis passa no critério de concepção e assim é um conceber um mundo zumbi. Concedemos a garantia de que um mundo zumbi é um mundo concebível, pelo menos.

O problema do argumento é que há uma premissa implícita, a premissa que diz que um mundo concebível é um mundo possível e que, por isso, um mundo zumbi é um mundo possível. Ora, nós já vimos com nossa reflexão que essa é uma relação problemática. E, até o momento, sem uma afirmação da incognoscibilidade da modalidade, temos que apenas um caso de concepção nos leva a possibilidade, é o caso da concepção de coisas do mundo atual. Isso se deve pelo princípio ab esse ad posse. Nesses casos, teríamos uma possibilidade e, com isso, sustentaríamos a conclusão. O que ocorre é que para o caso do argumento dos zumbis, a possibilidade sugerida do mundo zumbi não é uma possibilidade via princípio ab esse ad posse. É uma possibilidade via concepção pura. Dessa forma, segue-se que não temos uma possibilidade de um mundo zumbi, afinal, a concepção não implica possibilidade. Com isso, um mundo zumbi como mundo concebível só sustenta conclusões sobre a nossa capacidade cognitiva de concepção, isto é, só sustenta teses epistemológicas (conforme a intuição de McGinn mencionada anteriormente).

Conseguintemente, o argumento dos zumbis não estabelece a falsidade do materialismo. O argumento só pode sustentar que não temos uma superveniência lógica entre as nossas teorias físicas e a consciência fenomênica. E isso é apenas uma questão epistemológica, não se pode sustentar nada além disso através de um mundo concebível. Só estamos autorizados a tirar conclusões do tipo, dada tal concepção: sabemos que uma característica de nossa capacidade de concepção de acordo com o que conhecemos fisicamente é X.

Finalmente, o argumento dos zumbis não concluir o que pretende, isso fala alguma coisa sobre a verdade do materialismo? Não! Não queremos dizer que por sugerimos que o argumento dos zumbis não é conclusivo, isso signifique estabelecer o materialismo. O materialismo, se verdadeiro, deve ser estabelecido por próprias razões, não pela falha de argumentos opostos. Afinal, não é o fato do argumento dos zumbis não conseguir estabelecer o dualismo que o dualismo não é verdadeiro, são necessárias outras razões também para esse caso.

158 Com isso, findamos a nossa investigação e vimos como podemos aplicar os resultados numa argumentação filosófica enquanto não estabelecemos nem a incognoscibilidade modal ou nem um critério coextensivo de possibilidade. Dessa forma, se de alguma maneira formos fechados cognitivamente a responder essa questão se a modalidade é incognoscível, então sabemos como proceder diante de argumentos modais.

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4.3 Conclusão

Nesse terceiro e último momento de nossa reflexão, munidos das conclusões dos primeiros dois momentos, colocamos em cena o debate sobre se a concepção é guia para a possibilidade. Isso foi feito ao contrapor os argumentos em favor da concepção como guia para o conhecimento da possibilidade frente ao contra-exemplo da informatividade da forma da informação, o qual nos sugere que a concepção não seja um bom guia. Em seguida, tivemos considerações filosóficas sobre as consequências desse debate, tendo como exemplo a aplicação em um argumento modal, nomeadamente, o argumento dos zumbis. À vista disso, obtivemos algumas conclusões como se segue.

Primeiramente, concluímos que apenas o exemplo da informatividade da forma da informação é suficiente para estabelecer a independência relacionada entre os domínios da concepção e da possibilidade. Além, se isto for o caso e não tivermos outro método de estabelecer o conhecimento modal além da concepção, então o que nos resta é uma visão expressa pelo surrealismo filosófico: o mundo em sua natureza última não coincide com as nossas categorizações de mundo.

Em seguida, vimos que a tese conceptibilidade-possibilidade, a qual sustentaria a visão de que a concepção é um bom guia para a possibilidade, não é suficiente para superar o contra-exemplo da informatividade da forma da informação. A razão maior para essa tese é a dimensão ideal da conceptibilidade, e as razões que nos mostram que essa tese não é suficiente são as seguintes: 1) incorre em petição de princípio ao pensar agentes livres de nossos limites concebendo o que precisa ser concebido, pressupõe que a concepção leva à possibilidade; 2) não estabelece em conceitos como é ser um morcego e, por isso, não estabelece como concebível algo que é possível, mas se permanece inconcebível; 3) supõe que uma concepção distinta da nossa, sem nossos limites, resolve a dificuldade, mas a tese continua não respondendo o problema de se nós conhecemos a modalidade alética, o que está em jogo é o nosso conhecimento, a nossa capacidade cognitiva de concepção, não o conhecimento ou a concepção do alienígena ou de Deus; 4) o argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideais nos mostra que a própria natureza de um sujeito limita o próprio sujeito a ter algo do mundo que lhe escapa, a saber, a informatividade da

160 forma da informação de uma subjetividade distinta, de outro ponto de vista, em conclusão, a ideia de sujeitos ideiais não nos retira de limites conceptuais em sentido objetivo.

Após tais conclusões, tivemos algumas considerações, são elas: 1) apenas uma resposta com domínio coextensional ao domínio da possibilidade nos leva ao conhecimento da modalidade; 2) a presente argumentação não é suficiente para sustentar a incognosciblidade da modalidade sem observar outras respostas, embora nos sugira esse caminho; 3) se o argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideiais estiver correto, então o mundo não é expresso em linguagem qualquer que seja ela; 4) o surrealismo filosófico não impede uma metafísica, uma proposta é distinguir uma ontologia fenomenológica e uma metafísica surrealista que por sua vez trate de sobreposição de estados e não-identidades; 5) argumentos modais que não se sustentam pelo princípio ab esse ad posse e sim por concepção, perdem sua força e não justificam teses metafísicas; 6) a semântica dos mundos possíveis não é suficiente para sustentar posições metafísicas ou versar sobre metafísica, apenas versar sobre epistemologia tornando-se uma semântica dos mundos concebíveis; 7) se o argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideias estiver correto, o Deus conforme a metafísica cristã deve enfrentar o paradoxo-dilema da pessoalidade, em que é inconsistente ser pessoa e ser onisciente; 8) uma proposta de programa de pesquisa numa metafísica surrealista é trabalhar tendo como base a reflexão sobre lógicas não-reflexivas, de modo a lidar com objetos contrários e objetos contraditórios, ou seja, objetos não-identitários.

Finalmente, uma aplicação das conclusões finais é feita sobre o argumento modal dos zumbis. Em conclusão, não garantimos a possibilidade de um mundo zumbi através da concepção de um mundo zumbi, se é que concebemos, e, consequentemente, a tese da falsidade do materialismo não é sustentada ou justificada pelas premissas. Uma vez que é falso que a concepção seja um guia para a possibilidade, então o argumento dos zumbis é um argumento incorreto.

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