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2 A NATUREZA DA POSSIBILIDADE

2.2 A Noção de Possibilidade e as Respostas ao Problema do Critério

2.2.1 Tipos de Possibilidade: Lógica, Metafísica e Física

Em sistemas de lógica modal, a possibilidade é compreendida como um operador lógico aplicável a proposições. O operador é chamado de “diamante” e é representado pelo seguinte símbolo “◊”. Tal operador, quando aplicado, pretende significar a expressão “é possível que...”, de forma que quando temos “◊p”, queremos expressar que “é possível que p”, onde p é uma proposição qualquer.

A possibilidade como operador lógico, contudo, é apenas um aspecto da possibilidade (BEAZIAU, 2015, pg. 16). No entanto, esse aspecto é uma inspiração para percebermos uma intuição similar, outro principal aspecto sobre a natureza da possibilidade, ela pode ser aplicável a praticamente qualquer coisa do mundo. Ou seja, podemos aplicar possibilidade a ações, eventos, ideias, teorias, seres, fatos. Por isso uma forma de “operador ontológico universal”. Se o operador lógico pode ser aplicável a qualquer letra sentencial, e uma letra sentencial se pressupõe ter/carregar algum conteúdo, e este conteúdo se mostra como um enunciado que representa um estado de coisas do mundo, então, intuitivamente, temos a noção de que a possibilidade tem a pretensão de se aplicar a um estado de coisas do mundo.

A característica da aplicabilidade a coisas no mundo poderia dar a impressão de que a possibilidade não seria algo do mundo, mas algo das nossas teorias sobre o mundo. Contudo, ela também é aplicável a si mesma, isto é, podemos falar da possibilidade de possibilidades, como podemos ver nos sistemas modais S4 e S5. Há, por exemplo, o seguinte teorema de S4 e S5: ◊p↔◊◊p. Tal teorema nos diz que é possível que p se, e somente se, é possível que é

30 possível que p (BARROSO; IMAGUIRE, 2006, pg. 298). Dele nós podemos tirar o seguinte condicional: ◊p→◊◊p. Isso nos indica que a possibilidade de p implica a possibilidade da possibilidade de p. Ou seja, a possibilidade é aplicável inclusive a si mesma, o que em sistemas modais é chamado de 'modalidade iterada' – quando uma modalidade é aplicada a outra modalidade. Isso nos leva a pensar, portanto, na natureza da possibilidade como algo da realidade do mundo. Queremos mostrar que, com isso, há pelo menos uma forma de compreender a possibilidade como algo do mundo e não apenas como um construto teórico6.

Em vista dessas características da possibilidade, tradicionalmente ela é dividida em três tipos: i) possibilidade lógica; ii) possibilidade metafísica; iii) possibilidade física.

É entendido que a possibilidade física é a mais restritiva de todas e está contida na possibilidade metafísica e na possibilidade lógica. Por sua vez, a possibilidade metafísica é mais restritiva que a lógica, estando contida nesta, e menos restritiva que a física, contendo esta última. Por fim, a possibilidade lógica é a menos restritiva, contendo as possibilidades metafísicas e físicas e abrangendo mais que elas (VAIDYA, 2015; MURCHO, 2002). A relação de restrição das possibilidades pode ser vista no seguinte diagrama, o qual chamaremos de Diagrama de restrição de Possibilidades:

O diagrama de restrição das possibilidades é compreendido desta maneira devido às seguintes restrições de cada possibilidade (VAIDYA, 2015; MURCHO 2002).

A possibilidade lógica é a mais abrangente das três. Algo é logicamente possível se for consistente num sistema lógico. Em termos simples, se não houver uma contradição de

6 Uma vez que normalmente vemos a possibilidade não efetivada como um traço característico de mundos

possíveis, e mundos possíveis como não existentes realmente, pelo menos não de acordo com a concepção de Kripke (1980). Mas é possível compreender a possibilidade de forma realista e não necessariamente aceitar que apenas o mundo atual existe.

Possibilidades lógicas

Possibilidades metafísicas

31 termos, uma contradição lógica, então algo é logicamente possível. Sendo assim, a consistência lógica de algo lhe garante sua possibilidade lógica. Dessa forma, possibilidades metafísicas e possibilidades físicas estão contidas na possibilidade lógica porque ambas exigem consistência lógica de algo para que caiba sob essas noções, mas exigem mais do que isso.

Já a possibilidade metafísica é mais restritiva que a possibilidade lógica e mais abrangente que a possibilidade física. Ela é mais restritiva que a possibilidade lógica porque não exige apenas a consistência lógica de algo para se dizer se algo é possível metafisicamente, exige também a consistência da natureza da própria coisa. A própria coisa tem que ser consistente com sua própria natureza, em sua própria estrutura ontológica, para ser metafisicamente possível. Em outras palavras, algo não pode ser diferente de sua própria essência. Contudo, ainda é mais abrangente que a possibilidade física porque não faz a exigência de consistência física que a possibilidade física faz. Ou seja, algo pode manter sua essência mesmo contradizendo as leis contingentes da física de nosso mundo. Por exemplo, a possibilidade de uma nave espacial viajar acima da velocidade da luz. Não há contradição lógica nisso, não deduzimos uma contradição de termos. Portanto, passa nos critérios de possibilidade lógica. Todavia, contradiz as nossas leis mais aceitas da física onde nenhum objeto pode se mover acima da velocidade da luz, sendo assim, não é uma possibilidade física. Contudo, não é impossível que o mundo fosse de forma que objetos pudessem se mover muito além da velocidade da luz. É contingente que haja uma lei física em nosso mundo que limite a especificamente essa velocidade, ela poderia ser C+1 (onde C é a velocidade da luz conforme nossa física atual). Isso é, pelo menos de acordo com uma análise padrão, facilmente concebível.

A possibilidade física, por sua vez, é mais restritiva que as outras duas, pois exige não só a consistência lógica e a consistência metafísica das outras duas como também o que chamaremos de consistência física para se dizer que algo é fisicamente possível. Essa consistência é a exigência que a coisa esteja em acordo e não contradiga as leis da física – que por sua vez pretende espelhar as leis da natureza. Nesse sentido, uma coisa não é fisicamente possível se ela não estiver de acordo com as leis da física, mesmo que ela esteja de acordo com as leis da lógica e seja consistente ontologicamente, sendo, por sua vez, lógica e metafisicamente possível. O exemplo é o que demos no parágrafo anterior. Por outro lado, se algo não for metafisicamente possível, mas for logicamente possível, isso já implica que esse

32 algo não é fisicamente possível, pois a possibilidade física exige a consistência das outras duas possibilidades.

Essa é a tipificação standard da possibilidade. É uma tipificação que à primeira vista parece elegante e esclarecedora em suas definições, mas tem pressupostos de restrição problemáticos. Por exemplo, quando dizemos que a possibilidade metafísica é mais restritiva que a possibilidade lógica, nós estamos afirmando que não há nada metafisicamente possível que não seja logicamente possível. Nesse sentido, as regras da lógica não estão sendo apenas regras da lógica, mas também regras/leis ontológicas. Há um forte comprometimento ontológico na lógica. Todavia, como lidaríamos com o pluralismo lógico e as visões metafísicas sobre ele? A lógica paraconsistente, por exemplo, derroga o princípio da não- contradição, dessa forma, uma sentença e sua negação podem ser ambas verdadeiras. Visões ontológicas sobre a lógica paraconsistente, por exemplo, podem afirmar justamente a existência real de contradições no mundo. Precisaríamos usar uma lógica diferente para cada visão metafísica diferente e vice-versa na análise do que seria uma possibilidade lógica ou possibilidade metafísica para aplicarmos a restrição? Uma visão ontológica que aceite contradições no mundo real, teria, portanto, possibilidades mais abrangentes que uma visão clássica da lógica e, por isso, a possibilidade metafísica seria mais abrangente e não mais restritiva que a possibilidade lógica. Teríamos, portanto, um diagrama da forma do diagrama 1 ou do diagrama 2: Diagrama 1 Coisas logicamente consistentes Possibilidade Lógica Contradições Possibilidade Metafísica

33 Diagrama 2

Mas se aceitamos o diagrama das restrições entre as possibilidades, nós já rejeitamos de antemão determinadas visões metafísicas. Nesse sentido, já excluiríamos o antiessencialismo ou a sugestão de modalidade de Descartes apenas ao expressar a noção de possibilidade. Excluiríamos o antiessencialismo (posição em que os particulares não possuem propriedades essenciais7) porque ele afirma que o que é possível é o que é logicamente

possível, tornando o conjunto da possibilidade lógica coextensivo ao da possibilidade metafísica. Tal posição é expressa por David Hume e estabelece uma relação importante sobre concepção e possibilidade a qual é de interesse ser investigada:

O contrário de toda questão de fato permanece sendo possível, porque não pode jamais implicar contradição, e a mente o concebe com a mesma facilidade e clareza, como algo perfeitamente ajustável à realidade. Que o Sol não nascerá amanhã não é uma proposição menos inteligível nem implica mais contradição que a afirmação de que ele nascerá; e seria vão, portanto, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma contradição e jamais poderia ser distintamente concebida pela mente. (HUME, 2004, p. 54, seção 4, par. 2)

Outra posição sobre metafísica da modalidade que excluiríamos do debate apenas por assumir o diagrama acima seria o da sugestão de Descartes de que o mundo poderia ter diferentes leis da lógica e da matemática, onde se seguiria que o conjunto das possibilidades metafísicas é mais abrangente que o da possibilidade lógica – algo parecido com o Diagrama 2 acima. O que percebemos no seguinte trecho:

7 Veja que a noção de consistência ontológica como critério da possibilidade metafísica pressupõe que

particulares tenham propriedades essenciais as quais não podem ser contraditas se quisermos saber o que é possível ou não é possível metafisicamente.

Contradições Possibilidade Metafísica Coisas logicamente consistentes: possibilidade lógica.

34 [...] Ora, quem pode assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha o sentimento de todas essas coisas... E, mesmo, [...] que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado [...] (DESCARTES, p. 87)

Portanto, se buscamos uma teoria da modalidade numa resposta ao problema do critério de possibilidade, deveríamos já nos nossos pressupostos eliminar tais visões metafísicas? Parece que não, deveríamos analisar a questão e ter os pressupostos que propiciem pelo menos o debate.

Em vista disso, podemos ver a tipificação da possibilidade de uma forma alternativa e que nos permita o debate. É o que faremos na seção seguinte.