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Ainda que não tenham sido inventadas no capitalismo, foi a partir do seu

desenvolvimento que as hierarquias no mundo do trabalho foram complexificadas, uma vez que desponta a figura do empresário como acumulador de bens na divisão capitalista do trabalho, atualizando as disputas em relação à autoridade.

De acordo com Stephen Marglin (1978) três características essenciais definem a condição hierárquica pré-capitalista em contraponto à capitalista. Primeiro, encontrava- se um produtor tanto na base como no topo da hierarquia. Segundo, a função de aprendiz presumia tornar-se mestre um dia. E terceiro, o artesão vendia seu produto, não seu trabalho. O pressuposto básico na adoção da divisão do trabalho capitalista, e a grande

inovação que então surge, é garantir ao empresário uma posição essencial nesse processo. Uma relação social construída e legitimada por discursos moralizantes que correlacionavam a alta produtividade à autoridade hierárquica. Surge a figura do intermediário, inexistente na economia pré-capitalista, com o intuito de coordenar esforços separados dos operários na obtenção de um produto a ser oferecido no mercado.

Centraliza-se a autoridade na figura do patrão que distribui poderes de maneira difusa entre fiscais e supervisores da produção, sendo a ascensão social limitada à promoção a essas categorias. Um “bom” trabalhador (leia-se dócil, produtivo e disciplinado), pode almejar o crescimento até o ponto em que sua força de trabalho consistirá no disciplinamento dos outros, bem como na delação de comportamentos desviantes ou indesejáveis. Por meio de faixas salariais diferenciadas que gratificam funções disciplinares, sedimenta-se posições estratégias na sociedade.

Como sublinha Robert Castel, o salário não é apenas uma maneira de ser pago pelo trabalho, mas “o sistema pelo qual os indivíduos são distribuídos no espaço social. Como Margaret Maruani e Emmanuelle Reynaud observaram: ‘Atrás de cada situação de emprego há um julgamento social" (1998, p. 335–342).

Para ele haveriam três formas dominantes das relações de trabalho na sociedade industrial e três modalidades de relacionamentos que ligam o universo do trabalho com a sociedade: condições proletária, trabalhadora e salarial. As relações seriam respectivamente de semi-exclusão do corpo social (proletários), participação no sistema de dominação na complexa estratificação em oposições entre dominantes e dominados (classe trabalhadora) e, por fim, a sociedade salarial, cuja maior participação na vida social se dá através do consumo, seja em moradia, educação, lazer etc.

A tese da sociedade salarial defendida por Castel pretende dar novos contornos à leitura até então recorrente no discurso sociológico, embasado nas classes sociais como fundamento da definição identitária entre os atores. Seu argumento sustenta que a as faixas salariais passam a definir a identidade social em um mundo assalariado, elevando o consumo como novo nível de existência social. A cisão anterior entre burgueses e proletários deixaria de organizar a nova sociedade, que passaria para a competição entre diferentes atividades correspondendo a grupos salariais. As disputas e críticas dos trabalhadores parecem cada vez mais difusas e “alienadas” nesse contexto, na medida em que passam a defender interesses coletivos reduzidos às suas categorias.

O salário possui um papel fundamental na construção de um estilo de vida que alinha a subjetividade aos princípios da autenticidade80. Seguindo Castel, concordamos

que na sociedade salarial o principal significado social do trabalho assalariado seria como “o meio preeminente de identificação social" (Ibid. p.335). Somamos a isso o caráter objetivo que ele proporciona, uma relação íntima com o consumo que, por seu turno, consolida as noções de bem-estar social nas questões práticas do dia-a-dia.

Expressão singular e inovadora do acesso ao consumo através do salário se dá a partir de Henry Ford, que sistematiza essa relação na proposição de uma situação de ganho mútuo: o empresário por aumentar suas vendas e os operários por serem beneficiários da produção em massa. Castel sugere que dessa união resultaria a homogeneização das condições de trabalho acompanhada da homogeneização do ambiente e dos estilos de vida, tese que apresenta problemas se olharmos para exemplos para além do caso francês. A homogeneidade em países periféricos do capitalismo como o Brasil se dá na precariedade e não na universalização da sociedade salarial, o que Jessé Souza definiu como um processo de modernização seletiva (2000), admitindo e incorporando em seu modelo modernizante a existência de subcidadãos (2012a).

Concordamos com Castel na sua concepção de que há em curso um novo sistema de administração política, unindo propriedade privada e propriedade social, desenvolvimento econômico e aquisição de direitos sociais, o mercado e o Estado, figurando os salários como centrais na contenda. Entretanto, o resultado da articulação dos dois parâmetros fundamentais para o autor, crescimento econômico e desenvolvimento do estado social, se consuma de maneira diferenciada entre países e regiões, o que nos leva a colocar em suspeição a compreensão de contextos periféricos a partir do conceito de sociedade salarial.

A análise do papel do Estado francês fundamenta a tese de Castel, na qual a intervenção possui três funções: 1) estabelecimento da seguridade social; 2) atuação do poder público como ator econômico no período posterior à segunda guerra mundial; 3) envolvimento nas relações contratuais.

80 A autenticidade, segundo Charles Taylor, significa “ser fiel a mim mesmo e significa ser fiel à

minha própria originalidade, e isso é algo que só eu posso articular e descobrir. Ao articular isso, também estou me definindo. Estou percebendo uma potencialidade que é propriamente minha. Esta é a compreensão de fundo para o ideal moderno de autenticidade e para os objetivos de auto-satisfação ou auto-realização em que geralmente é expressado. Este é o pano de fundo que dá força moral à cultura da autenticidade, incluindo suas formas mais degradadas, absurdas ou banalizadas. É o que dá sentido à ideia de "fazer suas coisas pessoais" ou "encontrar a sua própria satisfação" (1992, p. 29).

A primeira função é decisiva na proteção dos salariados contra os riscos de qualquer natureza, sejam acidentes pessoais, catástrofes naturais, envelhecimento ou desemprego. Embora fosse um sistema falho (seus desejos redistributivos diferiam da prática, na qual categoriais sociais defendiam seus próprios interesses), se alcançaria nessa transformação a apoteose do sistema de trabalho assalariado. O elemento crucial desta concepção são as alterações nas relações diretas entre empregadores e trabalhadores que passam agora a ser trianguladas por instituições sociais.

A disseminação do princípio Keynesiano cristaliza a segunda função social, ao passo em que a economia não era mais concebida como uma esfera separada, mas suscetível às intervenções. Esse princípio se concretiza na forma de investimentos do poder público na indústria que chegam a superar os investimentos privados. Essa relação entre mercado e Estado é rastreada por Castel na obra de Clauss Offe (1984), que observa a “infusão” da autoridade estatal na economia pela direção da demanda global, enquanto as restrições do mercado são "introduzidas" no Estado.

Se o modelo de Castel não pode ser completamente transposto ao caso brasileiro, sua análise dos movimentos sociais de certa forma dialoga com nossas questões nacionais. As reformas de 1936 na França (que trouxeram conquistas para a classe trabalhadora em relação a jornada de trabalho, férias e outros direitos) são para o autor uma vitória Pírrica (uma vitória ambígua com perdas irreparáveis). Na medida em que são tomadas como vitórias, elas entrincheiram as lutas dos trabalhadores num horizonte reformista, no qual a dissolução das hierarquias e da autoridade, bem como a própria contestação da propriedade são relegadas a segundo plano81. As lutas passam a ser drenadas por ideais

de reformas, aumentos salariais, e melhores condições de trabalho.

A tese de Castel nos interessa na medida em que ela explora novas concepções que percebem as lutas dos trabalhadores e sua condição para além das classes sociais. Para o

81 Na teoria social contemporânea a expressão melhor acabada dessa proposta reformista vem

através do autor francês Thomas Piketty, em seu grandioso e eloquente “O Capital no Século XXI” (2014). Segundo o autor, uma das melhores opções para conter a acumulação desenfreada de capital e a desigualdade na distribuição de riquezas seria através da progressividade dos impostos: “A melhor solução é o imposto progressivo anual sobre o capital. Com ele, é possível evitar a espiral desigualadora sem fim e ao mesmo tempo preservar as forças da concorrência e os incentivos para que novas acumulações primitivas se produzam sem cessar” (Ibid. p.725). Concordamos que esta proposta seja necessária para a busca de soluções de curto e médio prazo, já que a estrutura de desigualdade existente, como afirma Piketty, inviaibiliza até mesmo a reprodutibilidade do sistema. Todavia, percebemos que, com isso, emerge aquilo que percebemos como o “reformismo pikettyiano”. Ao invés de agrupamentos políticos lutarem, ou ao menos imaginarem, soluções para além do capitalismo, as pautas ditas “progressistas” são sugadas por um reformismo que confere sentido à ideia de que seria “mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, como apontaram Frederic Jameson e Slavoj Žižek.

sociólogo os trabalhadores periféricos (imigrantes, mulheres, jovens, desqualificados e idosos), ocupantes das posições precárias e com os mais baixos salários, viveriam mais nas fronteiras da sociedade salarial do que propriamente no interior dela (em contraste aos “integrantes completos”). Aqui percebemos que na concepção do autor a “unidade” é o salário promotor de segurança social e, em certo nível, do trabalho como fonte de segurança ontológica. Como perceber essa unidade no contexto nacional, quando o nosso amálgama é justamente a precariedade, condição de “normalidade” que vigora ao longo da constituição da sociedade do trabalho82?