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Para que possamos abordar a realidade social a partir de um recorte, em primeiro lugar é necessário que tracemos a delimitação da amostra dentro da população geral, levando em consideração a concepção da amostra e da população como sendo uma

relação de universos variáveis (PIRES, 2008, p. 165). Entendemos essa amostra como um corpus, “uma coleção finita de materiais, determinada de antemão pelo analista, com

(inevitável) arbitrariedade, e com a qual ele irá trabalhar” (BARTHES, 1967, p.96 apud (BAUER; AARTS, 2002, p. 44), diferentemente da “amostragem” aleatória. A seleção arbitrária se dará pela delimitação dos atores a quem dirigiremos nossos questionamentos, bem como das perguntas e temáticas abordadas nas entrevistas e na coleta de dados em documentos e vídeos pertinentes.

Nossa amostra é composta por dados que nos encaminharam tanto à análise quantitativa como qualitativa, sendo esta uma pesquisa multimétodos. Essa foi uma escolha direcionada à compreensão de um universo ainda pouco estudado e que ainda carece de dados sistematizados, especialmente no escopo do pensamento sociológico. Como nossa tese pretende ser um convite à abertura de uma nova agenda de pesquisa, optamos por trazer dados de naturezas distintas que podem ser complementares e que

10 Algumas propostas metodológicas, como a de “seguir os atores”, são importantes em alguns

contextos de pesquisa. Como elaborar uma teoria sofisticada tal qual o perspectivismo ameríndio sem levar a sério o que as pessoas relatam? Aqui é importante destacar que “levar a sério” deve ser uma ferramenta que o pesquisador utiliza para se questionar: sob quais premissas o mundo se edifica para que o pensamento trazido pelo interlocutor seja tomado como verdade? Isso não implica que a verdade do interlocutor seja a verdade mais plausível para explicar algo. Talvez um compromisso com a abertura à alteridade radical, como empreendida por alguns antropólogos na atualidade, tenha deixado brechas que tem escapado às reflexões dos livros de metodologia. Ao aplicar, por exemplo, o perspectivsmo no contexto do estudo de um grupo neonazista, isso levaria o pesquisador a trilhar caminhos politicamente perigosos ao afirmar que esta não é uma visão de mundo, senão um outro mundo. Teríamos que ficar reféns de uma perspectiva normativa como a de Axel Honneth, para quem o reconhecimento de alguns grupos é legítimo e de outros não? Quem estabeleceria os limites desta legitimidade? Consideramos que nesse ponto não é possível recorrer à filosofia normativa como sugere o grande filósofo de Frankfurt. Devemos recorrer à política, escolher lados na luta entre grupos que entram com vantagens e desvantagens a partir de sua história no espaço social. A escolha do objeto é um dos primeiros passos nessa tomada de posição no espectro político e acreditamos que seja fundamental que este processo seja melhor explorado pelas pesquisas em sociologia, especialmente a partir dos cursos de metodologia.

exemplificam as amplas dimensões com as quais podemos abordar tanto a temática em termos gerais como o campo específico da pesquisa com e no YT.

Fazemos uma ressalva que essa abordagem não pretende advogar para si maior validade por maior quantidade de informações. Incorreríamos no erro muito comum na justificativa trazida por investigadores que utilizam estas abordagens. Não há qualquer indício no pensamento científico que nos leve a crer que dados de origens diversas combinadas expliquem melhor a complexidade da vida social. Como argumentam Pedro Robertt e Pedro Lisdero,

a priori, nada indica que uma estratégia multimétodos é melhor que uma de um único método, isto é, que isso geraria maior validade. A ideia amplamente aceita, dentro do senso comum acadêmico sociológico, de que mais métodos, instrumentos e procedimentos resultam em uma melhor aproximação a uma certa realidade empírica não é outra coisa senão uma suposição metafísica de que a "verdade" científica é alcançada com um aumento de informações com origens diversas (2016, p. 64).

Utilizar diversos métodos sem fetichizá-los, menos como argumento de validade e mais como ampliação das possibilidades de abordagem de um objeto pouco explorado até então, essa é nossa orientação. O que vem sendo chamado de “triangulação” não é sinônimo de maior validade das investigações e sim a exposição de uma ampla gama de possibilidades com as quais podemos indagar nosso objeto. Por ser um objeto bastante diversificado, trabalharemos com diferentes bases de dados construídas e selecionadas para a investigação:

1) Base de dados quantitativa construída a partir de informações numéricas e textuais extraídas de 91911 canais no YT Brasil por técnicas de web

scrapping;

2) Dados quantitativos secundários fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) desde o ano de 2005 até 2016;

11 É permitida a inscrição em 1000 canais por conta do YouTube. Atingimos este limite e utilizamos

o software elaborado para a coleta de dados. Alguns dados da coleta apresentaram inconsistências e a extração foi realizada em 919 canais. As incosistências dos dados de 81 canais, que não foram coletados pelo software, podem estar relacionadas às políticas de controle da plataforma. A não leitura destes dados também pode estar relacionada a questões como exclusão do canal pelos proprietários ou falhas na transmissão dos dados no momento da varredura.

3) Dados qualitativos documentados através entrevistas conduzidas com auxílio de um roteiro semiestruturado com dez criadores de conteúdo para o YT;

4) Dados qualitativos gerados pela observação online de vídeos disponibilizados na plataforma por criadores de conteúdo entrevistados, bem como de outros criadores de conteúdo que não foram informantes diretos;

5) Documentos de livre acesso disponibilizados pelo YouTube em seus Termos de Serviço (TS), Política de Privacidade (PP) e Diretrizes da Comunidade (DC).

O primeiro passo para seleção dos canais, que comporiam a amostra do item 1), foi a criação de uma conta no Gmail.com. A criação de uma conta permitiu que nos inscrevêssemos nos canais selecionados. Assim, os canais ficam salvos em uma lista que pode ser extraída com o formato “.xml” para posterior análise. Criamos a conta

trabalhostreaming@gmail.com. Depois de criada a conta, acessamos a mesma através do navegador em “modo privativo”12. Clicamos no primeiro vídeo no canto superior

esquerdo da tela inicial do YT e se o canal tivesse mais que 50.000 inscritos e fosse um conteúdo produzido por brasileiros nos inscrevíamos no mesmo.

Utilizamos do próprio algoritmo do YT para edificar nossa proposta metodológica. O procedimento de seleção da amostra foi inspirado no procedimento metodológico da bola de neve (ATKINSON; FLINT, 2001). Através deste, a rede de informantes é criada a

12 Segundo a Firefox a “navegação Privativa apaga automaticamente suas informações de

navegação, como senhas, cookies e histórico, não deixando rastros quando você fecha. As novas versões do Firefox também possuem o Bloqueio de Conteúdo (Proteção de Rastreamento), que impede que rastreadores ocultos coletem suas informações em vários sites e deixem a sua navegação lenta”. Disponível em: https://support.mozilla.org/pt-BR/kb/navegacao-privativa-use-firefox-sem-historico. Acesso em 04/06/2016. Utilizamos essa opção pois é incerto se existem rastreadores ocultos que incidiriam nos canais que seriam ofertados no momento de acesso à plataforma. É importante destacar que este foi um ponto muito delicado na pesquisa e que deve ser fonte de maiores discussões em pesquisas futuras. Criar um login foi a maneira que percebemos interferir menos na composição da amostra. Se fosse utilizada uma conta pessoal do autor, por exemplo, seriam indicados canais direcionados aos interesses buscados previamente na Internet pelo mesmo. A criação desta conta não exclui, certamente, alguns fatores de direcionamento da amostra significativos, como por exemplo o fato da localização geográfica incidir sobre as sugestões que o algorítmo da plataforma oferecerá. Em pesquisas futuras sugerimos aos pesquisadores, caso tenham recurso para tal, que criem grupos de controle utilizando VPNs ou proxys de outros países com intuito de comparar o papel da localização geográfica nas sugestões de vídeos ofertados pelo YouTube.

partir de um sistema de sugestões, em que o entrevistado anterior indica o(s) seguinte(s). Utilizamos o sistema de sugestões do YT, que oferece canais com conteúdos relacionados, como gerador dessa bola de neve e também nos valemos das sugestões dos próprios criadores de conteúdo ao indicarem “canais de amigos” e que constam na página inicial de seus canais.

Durante os meses de novembro de 2017 e junho de 2018, realizamos uma incursão sistemática na plataforma buscando os canais acima de 50.000 inscritos, assistindo vídeos e fazendo anotações em um caderno de campo. Do período de oito meses (que totalizam 213 dias), entramos na plataforma em 132 dias, assistindo em média 2 horas e 30 minutos de vídeos diários13.

Vale ressaltar que, com esse método, não estamos advogando a realização de uma etnografia. O conceito de netnografia vem sendo utilizado por uma série de pesquisadores que partem da premissa, com a qual concordamos, que não podemos compreender muitas das mais importantes facetas da vida social e cultural sem incorporar aos nossos estudos a Internet e as comunicações mediadas pelo computador (KOZINETS, 2010). Entretanto, não consideramos adequada esta elasticidade atribuída ao conceito da etnografia e não acreditamos que ele seja útil para descrever aquilo que fazemos quando pesquisamos interações em meios digitais. Há uma tendência nas pesquisas atuais, até mesmo em pesquisas documentais, em utilizar o termo como um signo de distinção, para que se percebem as incursões dos pesquisadores online como análogas às viagens de Malinowski às ilhas Trobriand. São formas de abordar a realidade completamente distintas, especialmente pelo tipo de interação que se tem com os informantes da pesquisa. Ainda que obtivemos dados, como veremos adiante, através de entrevistas com nossos interlocutores de pesquisa, esta técnica na qual há uma imersão do pesquisador em um universo online exótico, em que fazemos um tipo de observação, por vezes participante, não consiste em uma etnografia. Sugerimos, então, o termo observação online.

Este procedimento metodológico se diferencia da etnografia por não ter a ambição de “perscrutar a cultura nativa na totalidade de seus aspectos” (COTANDA et al., 2008, p. 73). Acreditamos que uma “netnografia” só seria possível se escolhêssemos um número reduzido de informantes e estudássemos diversos aspectos da sua vida para além da criação de vídeos para o YT. Como nosso objetivo é estudar apenas o aspecto relacionado

13 Depois deste período continuamos assistindo vídeos e alguns conteúdos selecionados foram

à produção de vídeos e as formas com que estes se relacionam às atividades laborais dos interlocutores de pesquisa, optamos por não utilizar este conceito.

A marca de 50.000 inscritos foi um ponto de corte que decidimos adotar a partir da comparação entre diversos canais e a partir verificação dos seus ganhos estimados no site Social Blade14. Ainda que este site seja controverso entre os criadores de conteúdo,

pois gera estimativas imprecisas dos rendimentos de um canal, ele se mostrou como um ponto de partida para que estabelecêssemos um ponto de corte. Este é um site criado em 2008 que, a partir de 2010, calcula os ganhos de canais do YouTube com base nos RPM (receita por mil impressões, ou CPM, custo por mil). A medida é bastante utilizada no ramo da publicidade e diz respeito ao valor que os canais recebem dos anunciantes a cada 1.000 visualizações de vídeo. O site ainda mantém um ranking que avalia o “fator de impacto dos canais”15 (os melhores recebem a nota A++). A nota diz respeito à influência dos

canais, composta por uma variedade de métricas utilizadas pelo YT cujos mecanismos exatos de funcionamento são segredos da plataforma. Ao longo do tempo as métricas vêm variando e essas transformações sempre geram discussões entre a comunidade de criadores de conteúdo.

Esse ponto de corte de 50.000 inscritos foi escolhido pois a partir desta marca percebemos que os canais começavam a ter possibilidades de ganhos próximos ao salário mínimo nacional brasileiro (R$954,0016 – em torno de U$300,00). Verificando o valor

estimado de ganhos no Social Blade por uma amostra inicial de 500 canais, percebemos que essa categoria de viabilidade econômica começa a emergir no momento em que os canais estabelecem em torno de 50.000 inscritos. Esses valores certamente variam. Dependendo do tipo de conteúdo um canal com 100.000 inscritos pode receber menos do que um com 50.000. Isso porque o CPM (Custo por mil impressões), de um canal, está diretamente relacionado à aderência dos usuários aos vídeos. Os vídeos não só precisam ser assistidos por muitas pessoas, como os espectadores devem assisti-los na íntegra, sem pulá-los, comentando, compartilhando e, na melhor das hipóteses, não “pulando” os anúncios e clicando nos mesmos e adquirindo produtos.

14 Disponível em: https://socialblade.com/. Mútiplos acessos de 2016 a 2019.

15 Robert Hovden (2013) sugere uma interessante adaptação do h-index e do g-index, indicadores

de produtividade científica, aos principais criadores de conteúdo de vídeo no YouTube, ressaltando as diferenças que devem ser consideradas, especialmente em relação às citações.

Entretanto, percebemos que canais com 50.000 inscritos passam a possuir alguns elementos fundamentais que os distinguem dos outros canais, o que nos leva a considerar a emergência de uma categoria de trabalhadores. Entre outras questões, como relacionadas à técnica (equipamentos mais sofistificados etc.), percebemos que há, tendencialmente a partir desta marca, um engajamento periódico na produção de vídeos. Foi em canais a partir de 50.000 inscritos que notamos maior recorrência de envios semanais, o que constitui um dos elementos fundamentais para que compreensão desta ocupação como uma atividade laboral. Isso não implica que pessoas com poucos inscritos não encarem a criação de vídeos para a plataforma como um trabalho. Este ponto de corte, necessário na delimitação da amostra, também diz respeito a uma marca em que começam a surgir retornos financeiros que podem viabilizar economicamente a atividade.

A seguir, elencamos o passo a passo desta parte da coleta de dados pesquisa:

1. Criação de uma conta Google, que permite inscrever-se em canais do YT; trabalhostreaming@gmail.com ;

2. Entrar no site youtube.com; 3. Clicar início (aba esquerda);

4. Clicar no primeiro canal do primeiro vídeo que o YT sugere;

5. Clicar nas sugestões de canais que aparecem relacionado a este primeiro vídeo; “Inscreva-se também!” e “Canais relacionados”;

6. Inscrever-se em toda rede de sugestões de canais do YT Brasil que tenham acima de 50.000 inscritos (excluir canais estrangeiros, pois os propósitos da pesquisa se referem ao mercado de trabalho de produção de conteúdo no Brasil);

7. Esgotar todas as possibilidades através do sistema de sugestões, procurando sempre canais brasileiros acima de 50.000 inscritos;

8. No caso de enviesar a amostra (como, por exemplo, aparecerem apenas canais relacionados especificamente ao assunto do vídeo), utilizar as seguintes palavras-chave para encontrar canais diversos (categorias extraídas dos line-

ups do YT17):

17 Ver “O conteúdo favorito das pessoas”, disponível em: https://www.youtube.com/yt/lineups/pt-BR/brazil.html. Acesso em 02/04/2016.

▪ Moda e beleza; ▪ Comédia; ▪ Quadrinhos e animação; ▪ Culinária; ▪ Entretenimento; ▪ Família; ▪ Games; ▪ Música; ▪ Ciência e Educação; ▪ Futebol; ▪ Esportes; ▪ Cultura Tech;

9. Extrair e tabular os dados dos canais a partir dos sites do YT e do Social Blade:

youtube.com:

▪ Número de inscritos;

▪ Vídeo mais visto (visualizações);

▪ Vídeo mais antigo (data de publicação, visualizações); ▪ Vídeo mais novo (data de publicação, visualizações); ▪ Número de Uploads (quantidade de vídeos);

▪ Visualizações totais;

▪ Tempo (em semanas) entre [Data do vídeo mais novo] – [Data do vídeo mais antigo];

▪ Contato (e-mail, telefone).

socialblade.com

▪ Estimativas de ganhos mensais e anuais (em dólares norte-americanos); ▪ Tipo do canal (categoria informada pelos criadores no envio de vídeos); ▪ Data de criação do usuário/canal;

Depois de criada a conta e selecionados os canais, foi necessário que utilizássemos técnicas computacionais para coletada de dados, uma vez que a grande quantidade de informação contida nos 919 canais seria de difícil acesso sem este recurso. Utilizamos uma combinação instrumentos que foram construídos para a extração (data mining, ou mineração de dados) de informações contidas nos sites do YouTube e do Social Blade.