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Esse intricado relacionamento simbiótico pode ser explicado pelo poder transformador operado pelas novas tecnologias de comunicação e informação pautadas na simultaneidade. Nossas satisfações estão cada vez mais balizadas pela combinação dos

53 Ver os números do caso brasileiro no capítulo 3 (“A formação dos públicos: a expansão do acesso

relacionamentos orgânicos diretos (face a face) com os mediados pelos meios digitais (orgânicos indiretos) ou digitais orgânicos (pessoa com o computador ou software) e que permitem a repercussão em espaços diversificados onde colocamos em curso as distintas narrativas que produzimos acerca da nossa existência. Além desse efeito subjetivo os meios de comunicação contemporâneos travam uma antiga batalha contra o tempo, na otimização de sistemas sociais complexos e interdependentes. Como mencionamos na seção anterior, essa produção parte não apenas da confiança que os avanços tecnológicos seriam duráveis, como ainda desenvolvemos uma imbricada relação que interpenetra a agência de humanos e não humanos na vida cotidiana.

A incessante corrida tecnológica desde o telégrafo gera uma enormidade de artefatos tecnológicos até o lançamento dos primeiros satélites que entrariam em órbita em meados da década de 1970. Ainda que uma série de inovações pudesse isolar eventos separados por quase dois séculos, o que os liga é a produção do desejo em intensificar os processos comunicativos sem a necessidade do contato face a face54. A informação nos

dias atuais segue um fluxo, é desincorporada, comprimida espacial e temporalmente e estabelece uma relação em tempo real, qualidades que levam Scott Lash (2002), entre diversos outros autores, a concluir que nesse sentido vivemos em uma “era da informação”.

Uma série de análises precursoras que buscaram compreender os significados da eclosão dos meios de comunicação e informação digitais partem dessa ideia de que viveríamos em uma era da informação, cuja separação mais nítida se daria pela presença ou ausência de contato físico. Nos momentos de encontro corporal estaríamos experimentando a vida real, em oposição à nossa circulação no espaço virtual (vida potencial). A tendência era a compreensão da rede como um ambiente em separado, instalando uma oposição equivocada entre real e virtual “ao invés de focar em seu caráter relacional e auto influenciador” (MISKOLCI, 2016, p. 284). Os meios digitais quando imaginados e discutidos nos debates sobre o ciberespaço em meados dos anos 1990, compunham um tipo de universo paralelo, imaterial, desincorporado e não conectado ao mundo real. Uma das análises importantes nesse período traz a ideia da conformação de um “ciberespaço” a partir da “cibercultura” que “expressa o surgimento de um novo universal, diferente das formas culturais que vieram antes” (LEVY, 2010, p. 15).

54 Para maior detalhamento da história do desenvolvimento das tecnologias de informação ver

Ao contrário desta perspectiva, percebemos que ao longo das últimas duas décadas as diferentes plataformas de mídia começam a ficar emaranhadas na experiência humana, fazendo cada vez menos sentido a distinção entre realidade e virtualidade. Partindo desta perspectiva, compreendemos o alastramento das relações digitais mediadas mais em um contínuo on-offline como sugere Richard Miskolci (2016), o que não implica descartarmos as reconfigurações dos parâmetros espaciais e temporais de percepção e experiência emergentes com o desenvolvimento das mídias e das tecnologias de comunicação (MCQUIRE, 2008, p. 4).

Esses parâmetros dizem respeito aos desenvolvimentos recentes dos meios digitais e como eles foram penetrando cada vez mais no espaço público. É importante destacarmos que importa nesse processo não é verificar o “impacto tecnológico”, pois esta metáfora já se mostrou inadequada (LEVY, 2010). Importa verificar os elementos que compõem a penetração das novas tecnologias e como elas remodulam as esferas dos relacionamentos interpessoais e redimensionam as aproximações e distanciamentos espaciais. Falar em impacto tecnológico não faz sentido algum, pois as tecnologias em si não mudam as pessoas. O que as muda, de fato, é algo que elas fazem a si mesmas, com a ajuda de artefatos que agregam em sua materialidade a acumulação de desenvolvimentos científico tecnológicos de longa data.

Ocorre nesse processo uma alteração dos locais de acesso aos meios de comunicação. Duas ou três décadas atrás precisávamos ir a um lugar particular para nos conectarmos e para vermos uma tela que então nos conectaria com pessoas e conteúdos distantes da nossa localização. A transição do uso do telefone conectado em um fio para o

smartphone, que se comunica por frequências invisíveis, sinaliza o fomento crescente na

modernidade da relação com outros “ausentes, localmente distantes de qualquer situação dada ou interação face a face” (GIDDENS, 1991, p. 27).

As novas socialidades são repaginadas através dos métodos contemporâneos de poder que emergem das organizações e reorganizações estruturais do tempo-espaço. Esse processo constitui a base das maiores transformações na história humana e serve de orientação para que possamos compreender os diversos elementos que combinados permitiram a relativização da percepção da passagem do tempo e da amplitude das distâncias, cuja transposição através do uso de aeronaves, trens e navios, torna-se acessível a um número antes inimaginável de pessoas. Uma série de acontecimentos e inovações são importantes no desenrolar dessa história e gostaríamos de realçá-los.

O tempo e sua percepção na modernidade, seja essa denominação reforçada ou criticada na distinção de um antes e um depois na história, estão intimamente relacionados ao desenvolvimento da escrita que possibilita a disseminação da noção de história linear. Diferentemente das sociedades equipadas com as tradições orais de disseminação de informação, a sociedade ocidental atual se construiu e elaborou sua história a partir de um encadeamento de textos que tornam possíveis o acesso ao passado. A partir da escrita cria-se a condição do surgimento de transcrições de acontecimentos e, com isso, inscreve na subjetividade dos “modernos” a ideia de que o tempo vem de algum lugar e vai para outro, como uma flecha que atravessa uma trajetória sem retorno até chegar ao alvo.

Essa noção particular e historicamente construída se contrapõe a outras formas de relacionamento e percepção da passagem do tempo em sociedades não ocidentais do passado e do presente, tendo resultados significativos em relação à prospecção sobre os acontecimentos por vir, bem como geram tensões nas relações de poder. Em uma sociedade agrária, por exemplo, a escrita como forma de armazenamento de conhecimento permite o estoque e controle da produção por longos períodos, elemento crucial para o aumento do suprimento de alimentos que induzem e resultam em expressivos crescimentos populacionais.

Esse processo de dilatação e monitoramento do tempo é acompanhado pelo rompimento das barreiras geográficas permitida pelos desenvolvimentos tecnológicos na área dos transportes e, quanto maior se torna essa possibilidade de transcendência do tempo e do espaço, maior é a geração de poder, não apenas em abstrato, mas também de poder militar. Além de serem fruto de empreitadas humanas centradas na glória e na honra, o choque civilizacional e os “banhos de sangue” deles provenientes podem ser percebidos como resultados da tensão entre operadores de temporalidades distintas em suas pretensões territoriais heterogêneas55.

Poderíamos elencar uma série de acontecimentos que sedimentam as condições para uma leitura das percepções de tempo e espaço compartilhadas nos dias de hoje, como o processo de alfabetização em massa, advento da impressão e a criação de parâmetros arbitrários e socialmente construídos dos fusos horários. Entretanto, é a partir da invenção do telégrafo elétrico que esse relacionamento se posiciona em outro

patamar. A partir da mensagem enviada por Samuel Morse no dia 24 de maio de 1844, que levava os dizeres “o que Deus fez”, inaugura-se o envio de uma mensagem de uma pessoa a outra sem a necessidade de deslocamento físico. Pela primeira vez na história da humanidade ocorre a separação entre comunicação e distância, cuja transmissão passara a ser ritmada pela velocidade dos pulsos elétricos. Através da coordenação de mensagens que ignoravam as barreiras espaciais e comprimiam o tempo necessário ao processo comunicativo, o invento de Morse fomenta relações entre outros “ausentes” (GIDDENS, 1991, p. 27) ao mesmo tempo em que viria a transformar a natureza da guerra e da violência.

Giddens sugere que o local se tornaria cada vez mais “fantasmagórico” ao ser penetrado e moldado em “termos de influências bem distantes dele” e o que o estrutura “não é simplesmente o que está presente na cena; a ‘forma visível’ do local oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza” (Ibid.). Evidente que isso não implica uma completa desterritorialização como se a o espaço físico não importasse. Ele importa e agora soma-se o acontecimento e os encontros físicos aos eventos passados em um processo de coabitação de temporalidades. Como provocativamente coloca Bruno Latour, aparentemente nada mais aceita residir apenas no passado: tudo é contemporâneo (LATOUR, 2005, p. 30).

À luz do pensamento de Paul Virilio, acompanhamos a inovação da digitalização dos sinais de áudio, vídeo e tácteis, inaugurando o que denomina como telepresença graças aos teledectores, em detrimento de uma representação da realidade sensível anteriormente vinculada a estética do aparecimento. Complementando o lugar fantasmagórico aventado por Giddens, a perspectiva de Virilio nos sugere que assistiremos à produção industrial de um desdobramento de personalidade a partir da criação técnica do mito do homem duplo, “de um duplo eletro-ergonômico de presença espectral, outra denominação do fantasma ou do morto-vivo” (VIRILIO, 1993, p. 105). Essa presença seria ocasionada pelo desenvolvimento das tecnologias do tempo real e provocariam uma “poluição das dimensões naturais” que afetam “o tempo vivido das nossas sociedades”. Trata-se aqui

[...] da poluição da extensão geográfica pelo transporte supersônico e pelos novos meios de comunicação... com os danos que isto supõe para o sentimento de realidade de cada um de nós... A perda de sentido de um mundo que, a partir de agora, foi tornado menos INTEIRO do que REDUZIDO por tecnologias que, ao longo do século XX, para além da ‘velocidade de escape’ da atração terrestre

(28.000km/hora), atingiram a velocidade absoluta das ondas eletromagnéticas (Ibid. p.118).

A compreensão dos efeitos dessa poluição das distâncias e dos períodos de tempo, poluições que degradam o espaço do nosso habitat, se daria na sugestão de Virilio a partir de uma Ecologia Urbana que dê conta do aparecimento intempestivo das “cidade-mundo”, um “arquipélago de cidades inteligentes e interconectadas” (Ibid.) que em breve reorganizarão o mundo inteiro. Uma Ecologia Cinza que se colocaria ao lado de uma Ecologia Verde. Cinza por se tratar da velocidade e do movimento, na medida em que a velocidade “mataria” a cor (uma analogia que o autor toma emprestada de Paul Morand sobre a percepção visual de um giroscópio que produziria a cor cinza ao ser girado rapidamente). Essa ecologia daria conta de compreender esse movimento de transição para um “novo mundo”, “onde as tecnologias do ‘tempo real’ irão em breve sobrepor-se àquelas que no passado organizavam o ‘espaço real’ do planeta” (Ibid. p.118). Em outra obra, Virilio sugere que as cidades reais cederiam lugar às cidades virtuais, uma “metacidade desterritorializada”; a metrópole, a cidade local, não seria mais que um “bairro, de um distrito, entre outros, da invisível METACIDADE MUNDIAL cujo ‘centro está em toda parte e a circunferência em lugar nenhum’ (Pascal)” (VIRILIO, 1999, p. 18).

Para além de exercer uma fascinação na imaginação, a habilidade de abranger o espaço e comprimir o tempo conformam as relações sociais e econômicas modernas, processo que se deu ao longo das diferentes gerações de mídias desde o telégrafo até a Internet. Esse movimento torna "crítico aceitar plenamente que a mídia não pode mais ser separada do social; nem, aliás, do político, do econômico e do cultural" (Ibid. p.7).

A “metacidade” de Virilio e suas reconfigurações no perímetro urbano são expressas a partir do conceito de “cidades-mídia” de Scott McQuire (2008). Para o autor nós não estamos experienciando uma aniquilação do espaço e do tempo, como sugerem alguns, e sim a emergência de novos conjuntos espaciais, que trazem uma nova conjunção entre mídia e arquitetura que tem sido descrita em termos de "realidade aumentada", "realidade mista" e "espaço aumentado". Esses conceitos buscam enfatizar regimes espaciais heterogêneos a partir de um novo senso de simultaneidade que informa um espaço relacional, ao invés de opor espaço ao tempo, e que exprimem as formas de coabitação aventadas por Latour anteriormente.

Como sugere McQuire, depois de dois séculos do amplamente anunciado desaparecimento do tempo e do espaço “as maneiras pelas quais o tempo e o espaço são

experimentados individual e coletivamente certamente sofreram mudanças dramáticas e de longo alcance” (MCQUIRE, 2008, p. 14), tradução nossa). Além da alteração nas experiências individuais e coletivas, McQuire sustenta, retomando uma ideia trazida por Félix Guattari, que não há nessa tendência de desterritorialização da modernidade uma "perda de centro" absoluta e final, já que novos "centros" podem - e são - formados:

Quanto mais o capitalismo segue sua tendência de 'decodificar' e ‘desterritorializar’, mais ele busca despertar ou re-despertar as territorialidades artificiais e as codificações residuais, movendo-se assim contrariamente à sua própria tendência (GUATTARI, 1984, p. 36 apud (MCQUIRE, 2008, p. 24), tradução nossa).

A formação de novos centros é condicionada por uma série de fatores que estão relacionados às subjetividades que são reorientadas a partir dos deslocamentos provocados pela emergência das territorialidades artificiais sugeridas por Guattari. Um exemplo elucidativo desse processo, em que há uma disputa entre os deslocamentos para a formação dos novos centros, é trazido por Frederic Martel, a partir da dinâmica das empresas de tecnologia do Vale do Silício, como Google, Facebook, Yahoo, Flickr etc. Estas empresas tem uma prática da compra de startups e contratação dos talentos, que passam então a ser funcionários das gigantes da Internet em um processo denominado acqui-

hiring (um termo que significa a fusão entre aquisição e contratação). As startups passam

a figurar como satélites no ecossistema geral das grandes empresas e seus criadores passam de patrões a empregados. As jovens mentes criativas se veem então obrigadas a mudar-se da cidade de São Francisco para o Vale do Silício, uma área suburbana e que não condiz com os anseios de pessoas que desejam estar próximas de outros desenvolvedores que expressam uma cultura de criatividade e inovação, elementos que se desdobram como constitutivos das metrópoles e grandes centros urbanos56.

O futuro das tecnologias está sendo escrito na interação face a face e depende de redes de pessoas familiares e de territórios que realmente existem, como sustenta um

56 No clássico ensaio "A metrópole e a vida mental" Georg Simmel (1973, p. 12) já apontava que "a

personalidade se acomoda nos ajustamentos às forças externas", tendo a metrópole um papel fundamental sobre o comportamentos das pessoas que nela transitam e residem. Uma série de novidades psíquicas emergiam como resultado da acomodação de várias novidades, como a racionalidade econômica, impessoalidade das relações, anonimato etc. É instigante pensar que passado mais de um século do ensaio publicado em 1902, a metrópole ainda apresenta uma série de características que a diferenciam de outros contextos, como no caso do contexto rural e das pequenas cidades utilizados como contraponto à análise de Simmel. No contexto de uma suposta desterritorialização, percebemos que ela é relativa já que é nas metrópoles que há um grande agrupamento de empresas de tecnologia formadas por pessoas simpáticas à vida cosmopolita, como no exemplo dos programadores e desenvolvedores entrevistados por Martel (2018).

desenvolvedor entrevistado por Martel. O Vale do Silício prova paradoxalmente que o digital não pode ser um fenômeno completamente global, pois há resistências no processo de formação de novos centros que dizem respeito às particularidades de cada localidade e dos atores que neles circulam. Se a localidade não importasse, veríamos o deslocamento de empresas como Google e Facebook para locais com valor imobiliário mais baixo, o que não vem ocorrendo na prática.

Isso não exclui a lógica alterada das relações espaço-tempo implicadas pela natureza em tempo real das redes digitais. A capacidade de simultaneidade foi um componente marcante dessa alteração estimulada pelo desenvolvimento das novas TICs. Entretanto, para além deste elemento tão comentado e explorado, percebemos uma nova dinâmica em relação à temporalidade dos conteúdos audiovisuais, especialmente quando temos em mente o conteúdo criado para o YT. Como vimos anteriormente, o YT foi criado a partir da ideia da composição de um repositório digital, ficando o conteúdo disponível para quem quisesse e pudesse acessá-lo posteriormente a sua publicação. Desde 2008 a empresa vinha testando formas de transmitir conteúdo ao vivo, o que se consolida com a parceria firmada com a National Broadcasting Company (NBC) para a transmissão dos jogos olímpicos de Londres em 2012.

Atualmente boa parte dos criadores de conteúdo para YT faz transmissões ao vivo e esse conteúdo, além de poder ser acessado simultaneamente à transmissão, fica guardado na perspectiva da composição de um repositório de conteúdo audiovisual. A plataforma é um exemplo significativo para refletirmos sobre a relação espaço-tempo, na medida em que seus conteúdos são um híbrido em que transmissões simultâneas se transformam em conteúdo permanente. A permanência do conteúdo é uma das formas que sustenta a plataforma como um espaço de estabelecimento de relações de trabalho, a partir do momento em que os criadores confiam nela e também na duração de suas criações para que novos usuários possam encontrá-las e assim viabilizar esse processo como um sistema de geração de valor, remunerando tanto os acionistas da plataforma como seus trabalhadores – ou “parceiros”, como prefere a nova semântica do capitalismo digital das plataformas.

Se o tempo no YT é composto pelo híbrido entre simultaneidade e permanência, as questões relativas ao espaço dizem respeito aos locais de desenvolvimento e manutenção da plataforma, territórios de produção e acesso. O acesso ao conteúdo está intimamente relacionado a uma rede de infraestrutura necessária, como rede elétrica adequada,

estrutura de banda larga nos municípios, além da posse de artefatos tecnológicos como computadores e smartphones, que pudemos delimitar mais detalhadamente no capítulo 3 para o caso brasileiro.

O que importa destacar nesse momento é que as relações espaço-tempo na era da informação não sugerem apenas ponderações abstratas que remontam à relatividade do tempo e do espaço ilustrada nas modernas teorias da Física. Elas implicam novos saberes internalizados e culturalmente mediados pelos novos espaços, inexoravelmente presentes na constituição dos sujeitos ocidentais contemporâneos. Outros espaços e tempos não tão “ausentes” que coabitam os referenciais técnicos, políticos, históricos que cotidianamente evocamos, certamente muito mais epidérmicos que simplesmente “fantasmagóricos”.