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As pessoas acham que é super fácil [gravar vídeos para o YT]. Assim, todo trabalho tem trabalho e o YT não é diferente. Costumo dizer que é um trabalho que dá trabalho. O que acontece? As pessoas se iludem - "nossa, vou virar uma YouTuber e começar a ganhar dinheiro" - e aí elas acham que é só ligar a câmera, gravar e pronto, no dia seguinte a conta já tá recheada. Não é assim gente. Tem muita coisa por trás, é um trabalho de formiguinha. Eu demorei onze meses pra receber R$300. Em um ano, de 31 de janeiro de 2014 ao dia 31 de janeiro de 2015 eu recebi U$258. Ou seja, demorei um ano pra ganhar R$794. [...] não pense em entrar no YT pra fazer dinheiro, você vai se frustrar. (YouTuber de Cuiabá, 34 anos, transcrição de trecho de vídeo publicado em 27/09/2017).

As circulações do poder, estritamente no sentido das grandes plataformas de disponibilização de conteúdo na Internet, colocam o YT no centro de disputas que vão muito além do próprio conteúdo veiculado. Os otimistas da potência tecnológica na formação de novos mercados e novas sociabilidades, circulação de saberes e no exercício dessa nova cidadania, não podem negar o paradoxo que se edifica nesse processo. Uma gigantesca corporação que luta na justiça para se defender das acusações de formação de

monopólio38 é ao mesmo tempo a precursora de uma ferramenta capaz de dar voz e

ressonância às disputas de atores locais no engajamento de causas específicas. Cumpre- se a “fagocitose” da crítica já aventada por Luc Boltanski e Ève Chiapello (2009), em que o capitalismo através de suas empresas incorpora as críticas e cria produtos que atendem, precisamente, as necessidades suscitadas pelas demandas populares oriundas de mobilizações e movimentos sociais.

Por meio de uma gigantesca corporação e de seus fluxos desencadeados em todas as esferas da produção, ainda calcados na produção de mais valia que concentra riqueza e reproduz desigualdades, é aberto um espaço inovador em que atores podem envolver- se em processos anteriormente vedados à sua participação (no contexto das mídias tradicionais). Contudo, o paradoxo emerge e denota que o ato de “dar voz” digital a grupos que não estabeleçam coesão em relação a auto-organização social podem se perder em labirintos digitais, sem uma repercussão mais radical no espaço político social orgânico.

Em relação a produção de valor nesse novo espaço, certamente não há alterações significativas, do ponto de vista da estrutura e potência como são materializados, em relação aos meios de comunicação que o precedem. Ainda se paga por tempo e espaço nos anúncios publicitários. O que muda sim, drasticamente, é a gama de espaços em que anunciantes podem se fazer presentes. Uma empresa no ramo de cosméticos pode selecionar canais de criadores de conteúdo que se dedicam a esse universo cultural. Fabricantes de ferramentas elétricas podem direcionar suas campanhas em canais inseridos na cultura do DIY (Do it yourself ou “faça você mesmo”). Entre tantos exemplos possíveis, percebemos que a plataforma de streaming emerge para embaralhar conceitos canônicos no ramo da comunicação. As relações de poder e saber, no entanto, tendem a ser mantidas numa mesma estrutura de relação, consolidando interesses em ganhos e lucros, com o mínimo de risco para os grandes investidores.

Nesse contexto, vale salientar que a publicidade no YT não emerge desde sua criação. Ainda que seus criadores nunca tenham escondido seu potencial econômico, é a partir do processo de monetização dos canais em 2012 que há um salto, significativamente simbólico e com repercussões materiais, conformando o gérmen da mudança no mercado de trabalho que se procura analisar neste trabalho. A monetização

38 Ver “Google faces record-breaking fine for web search monopoly abuse”, disponível em: https://www.telegraph.co.uk/business/2016/05/14/google-faces-record-breaking-fine-for-web-search- monopoly-abuse/. Acesso em 16/02/2019.

de um canal produtor de conteúdo é, basicamente, um processo pelo qual há uma percepção do YT de que o conteúdo produzido possui potencial econômico de um lado, e, de outro, que os próprios produtores de conteúdo se veem motivados a perceber a atividade como fonte de retornos financeiros. A megacorporação intermedia uma relação entre anunciantes e canais, ficando com uma fatia de ao menos 45% dessa negociação através de sua subsidiária AdSense. Nas palavras de um YouTuber brasileiro radicado nos Estados Unidos, que produz conteúdo para gamers, o YT tem que lidar com uma situação “complicadíssima”

... porque tem que cumprir as leis de direitos autorais, tem que lutar contra o lobby que rola nos EUA e tem que servir também os criadores de conteúdo que surgiram na plataforma e também o público. Ele é quase como um mediador disto tudo. Por exemplo, o sistema do content ID39 não existe por vontade própria

do YouTube, ele é obrigado a ter o content ID nos moldes como funciona. O YouTube não gostaria de ficar aplicando strike de copyright nos canais, mas ele é obrigado a fazer isso e eu não acho que outras empresas teriam capacidade de administrar uma plataforma como o YouTube faz. Porque é muito complexo o sistema. Eu no passado já reclamei muito do content ID e depois eu me toquei: "cara, eu não tenho que reclamar do content ID, eu tenho que reclamar dos caras que obrigam o YouTube a ter esse sistema e das empresas que abusam do sistema" (Transcrição de um trecho de vídeo publicado em 05/10/2018). Ainda que críticas sejam dirigidas ao gerenciamento da plataforma por criadores de conteúdo, a defesa dos YouTubers das maneiras com que o YT a administra legitimam as relações de poder na sua administração. A ideia de que o YouTube seja um empregador é totalmente absurda na visão de seus “colaboradores” ou “parceiros” como são chamados os trabalhadores que diariamente dedicam horas na criação de vídeos para o site. A ideia da autogestão do trabalho se alinha à concepção de dissolução de quaisquer laços com a fonte pagadora do trabalho e percebemos a noção de plataforma como um dos mecanismos mais bem-acabados de dominação das empresas capitalistas contemporâneas sobre os trabalhadores. Dessa forma, existe uma distorção radical do sentido político da ideia de autogestão que pressuporia uma capacidade decisória muito maior para o produtor de conteúdo, contudo, este não gerencia as regras da plataforma,

39 Proprietários de direitos autorais podem utilizar um sistema chamado Content ID para identificar

e gerenciar o conteúdo deles no YouTube com facilidade. Os vídeos enviados ao YouTube são verificados em relação a um banco de dados de arquivos enviados a nós pelos proprietários do conteúdo. Os proprietários de direitos autorais decidem o que acontece quando o conteúdo em um vídeo no YT corresponde a uma obra pertencente a eles. Quando isso ocorre, o vídeo recebe uma reivindicação do Content ID. Ver “Como funciona o Content ID”, disponível em:

não define caminhos nem repercussões de suas ações caracterizando um tipo muito mais próximo do que poder-se-ia denominar auto exploração.

A publicidade possui, como mencionamos, diferenças com aquela destinada à mídia tradicional. Ela é mais direcionada, dinâmica e deve ser alinhada aos desejos dos possíveis consumidores específicos. Os “canais parceiros” são aqueles que aceitam o processo de valoração de seu espaço no virtual, no interior dos seus vídeos, e passam a se comprometer ativamente com as políticas e diretrizes estabelecidas pelo YT40. Não pode

haver incitação à violência, crime ou ódio; não deve ser veiculado conteúdo sexualmente explícito; o conteúdo veiculado deve respeitar as leis de direitos autorais, entre diversas outras regras que devem ser seguidas.

Importa nesse momento destacar que a possibilidade de monetização de conteúdo cria um novo mercado de trabalho, de pessoas que passam a estar envolvidas na produção de vídeos como uma atividade laboral, seja direta ou indireta. As estruturas dos canais são extremamente diversificadas, desde aqueles que transmitem conteúdo de maneira individual e independente àqueles que o fazem através de produtoras profissionais de vídeos. Soma-se a isso diversas outras configurações que aproximam os canais de empresas tradicionais, tendo estruturas jurídicas, funcionários, divisão do trabalho e das tarefas, hierarquia e estrutura temporal de delimitação de jornada de trabalho. Para que conheçamos um pouco mais desse cenário, trazemos a seguir dados quantitativos sobre o trabalho na plataforma, coletados através da técnica de web scrapping descrita na seção metodológica.

4.2 DESCRIÇÃO AMOSTRAL41

Em 2012 o YouTube lança o seu “programa de parceiros”, disponível em 20 países (incluindo o Brasil) (Fig. 4). Atualmente, em 2019, a possibilidade de obter retornos financeiros com a criação de vídeos está disponível em 97 países (Fig. 4). Essa possibilidade de ganhar dinheiro com a criação de vídeos atraiu uma série de criadores

40 Ver capítulo 5.

41 Dados coletados em 01/12/2018, resultante da terceira tentativa. Coletas anteriores foram

realizadas em 23/07/2018 e 03/09/2018. Diversos ajustes no código, neste período, foram necessários para diminuição de bugs e incosistências.

de conteúdo para a plataforma. No Brasil a atividade ainda é pouco conhecida em relação às suas dimensões e ao apresentar os dados coletados na plataforma pretendemos auxiliar no preenchimento desta lacuna.

Percebemos que dentro de um período de 7 anos a plataforma apresentou uma estratégia arrojada de expansão do programa de parceiros para diversos países. Isso implica que em cada vez mais lugares é possível obter retornos financeiros através da criação de vídeos para a plataforma. Isso nos leva a constatar que a estratégia de expansão do YT, passando de 20 a 97 países (aumento de 385% em 7 anos), constitui-se como um dos maiores processos de ampliação de uma empresa no contexto do capitalismo digital, em termos de captação de mão de obra sem quaisquer vínculos trabalhistas.

Figura 4 – Países onde há programa de parceiros do YouTube - 2012 e 2019

FONTE: Elaboração do autor. Dados sobre o programa de parceiros do YouTube disponíveis em: https://youtube-creators.googleblog.com/2012/04/being-youtube-creator-just-got-even.html e

https://support.google.com/youtube/answer/7101720?hl=en. Mapa mundi vetorial disponível em:

https://www.freepik.com/free-vector/world-map-blue-template_718596.htm. Acesso em 10/01/2019. LEGENDA: Hachurado em vermelho países onde há programa de parceiros do YT.

No Brasil, um dos lugares em que o programa de parceiros inicia desde 2012, a criação de conteúdo para a plataforma como uma forma de trabalho se amplia e um número cada vez maior de pessoas passa a se dedicar à atividade. Cumpre destacar que não é apenas a quantidade de pessoas realizando uma determinada atividade laboral que garantirá sua importância como um fenômeno social e sociológico. Entretanto, é importante que conheçamos estes números para verificarmos a quantidade de pessoas envolvidas na atividade. Agrupamos os 919 canais selecionados (com o ponto de corte em 50.000 inscritos) em 15 categorias:

GRÁFICO 15 - NÚMERO DE CANAIS POR CATEGORIA - DEZEMBRO DE 2018

Fonte: Elaboração do autor a partir de dados coletados no YT e Social Blade.

As três categorias com mais canais (“Pessoas e blogs”, “Entretenimento” e “Educação”), somadas, representam 59% da amostra. Cumpre destacar que os próprios criadores de conteúdo informam, no momento de upload de cada vídeo, a qual categoria pertence. O pertencimento de um canal a uma categoria diz respeito à maior quantidade

de vídeos em determinada categoria. Isso implica que alguns canais podem ser classificados como de “Jogos”, ainda que possuam diversos vídeos classificados como “Entretenimento” ou “Educação”. Há também uma sub-representação de canais classificados como “Notícias e política”. Isso não implica a inexistência de canais de “Pessoas e blogs” que tratem exclusivamente destas temáticas.

Uma importante característica da criação de vídeos para o YT, que nos leva a considerá-la como uma atividade laboral, diz respeito à quantidade de tempo que os trabalhadores se dedicam. Para captar o tempo que os YouTubers estão na plataforma, estabelecemos a variável “Duração”, resultante da diferença (em meses) do último upload e o primeiro upload. Depois de calcular a duração de cada canal da amostra, realizamos as médias no interior de cada categoria:

GRÁFICO 16 - DURAÇÃO MÉDIA DOS CANAIS POR CATEGORIA

A linha em preto nas barras significa o erro padrão para cada categoria. Em categorias com um número amostral baixo (como “Notícias e política”) há um erro padrão maior do que em categorias com “n” alto (como “Pessoas e blogs” e “Entretenimento”). A partir destes dados, percebemos que, na amostra de 919 canais, os canais com número acima de 50.000 inscritos estão na plataforma há 60 meses (média das médias das categorias), ou seja, 5 anos.

Um dado importante que se relaciona à duração do canal é a quantidade de vídeos produzidos pelos criadores de conteúdo. A periodicidade é um dos elementos mais importantes que nos leva a considerar a atividade como um trabalho e podemos captá-la através do número de envios (uploads) e pela média mensal, por categoria:

GRÁFICO 17 - MÉDIA DO NÚMERO DE UPLOADS E MÉDIA MENSAL POR CATEGORIA

Somamos o número de uploads de cada canal e realizamos a média de envios por categoria (em cinza). O eixo x (de cima) representa o número de uploads em quantidade de vídeos. O eixo x (de baixo) representa o número de uploads médios mensal. A linha em preto representa o erro padrão (erro maior em “n” amostral menor – Ver “Gráfico 15 - Número de canais por categoria - Dezembro de 2018”). Dividimos esta média de uploads total, por categoria (barras cinza), pela quantidade de tempo (duração média, por categoria). Isso resultou na “média mensal de uploads” (barra amarela).

O número de uploads não necessariamente se relaciona com número de visualizações. Separamos “Música” e “Filmes e desenhos” das demais categorias, pois estas se destacam por médias muito elevadas de visualizações dos vídeos mais populares (dos canais dentro destas categorias), bem como na média de visualizações gerais (“Gráfico 18 - Média das visualizações do mais popular e média de visualizações”).

Na maior parte dos casos (11 categorias) o número de visualizações dos vídeos mais populares (calculado através da média dos vídeos mais populares dos canais de uma determinada categoria) supera os valores das médias. Isso indica que os vídeos mais populares, conhecidos como "virais", superam o número de visualizações médias que os canais possuem.

Esta característica se inverte nas categorias "Não definido", "Comédia", "Filmes e desenhos" e "Músicas". Isso pode ser percebido pela média de visualizações dos vídeos ser mais alta que a média de visualizações apenas em vídeos virais. Ou seja, nestas quatro categorias, existe uma grande quantidade de vídeos com muitas visualizações. Ressalta- se ainda as indicações do erro padrão através da linha preta em cima das barras, com erros maiores para "n" amostral menor.

Em relação aos vídeos “Não definidos”, estudos mais detalhados são necessários para que compreendamos os porquês da diferença. Em relação às "Filmes e desenhos" e "Músicas", supomos, através da observação online, que nestas três categorias há maior influência de outras mídias tradicionais, além de apresentarem uma utilização diferenciada da plataforma, como streaming para assistir filmes e desenhos, (se assemelhando a outras plataformas como o Netflix) e também como streaming de música (se assemelhando a plataformas como Spotify e iTunes). Como as músicas são incluídas em playlists e tocadas repetidas vezes (característica menor de vídeos “normais”), isso eleva tanto o número de visualizações como as médias gerais.

GRÁFICO 18 - MÉDIA DAS VISUALIZAÇÕES DO MAIS POPULAR E MÉDIA DE VISUALIZAÇÕES

Em relação aos rendimentos médios, obtivemos dados a partir da plataforma Social Blade. Este é um site de estimativa dos ganhos de cada canal baseado em uma série de métricas, compostas por elementos como o CPM (custo por mil) que é o valor pago pelos anunciantes por mil visualizações em cada vídeo. Quanto maior o número de visualizações, maior será o rendimento do canal com publicidade. Esse valor, do CPM, varia entre U$0,25 e U$4,00 (R$0,965 e R$15,4442). A variação do CPM depende do

impacto do canal, medido tanto pelo engajamento dos usuários nos vídeos como pelo impacto de cada vídeo enviada à plataforma (para que o CPM seja maior, é necessário que os vídeos do criador do conteúdo possuam impacto e não apenas que alguns poucos vídeos sejam muito acessados).

O CPM também varia de país para país, tendo os criadores de conteúdo dos países mais ricos em vantagem em relação aos países mais pobres. Isso indica que a visualização de um usuário no Canadá “vale mais”, por exemplo, que a visualização de um Sul Africano. Isso implica que, a cada 1.000.000 de visualizações o criador de conteúdo receberia entre R$965,00 e R$15.440,0. A grande variação faz com que os YouTubers ressaltem, em diversos vídeos, que as estimativas não são confiáveis. A partir da observação online, em diversos vídeos que os YouTubers comentam tanto as estimativas do Social Blade quanto seus ganhos na plataforma, percebemos que o CPM, na maioria dos casos no Brasil, está mais próximo do mínimo. Alguns YouTubers relatam que, grosso modo, 1.000.000 de visualizações renderiam em torno de U$600,00 (R$2.316,00), ou seja, um valor quase 7 vezes menor que o valor máximo e 2 vezes e meia maior que o valor mínimo.

Para uma aproximação dos rendimentos médios dos canais (por categoria), utilizamos o valor médio (máximo subtraído do mínimo dividido por 2). Conforme o “Gráfico 19” percebemos que não há correlação aparente entre o tempo de duração dos canais (em meses) e o rendimento médio. Novamente as categorias “Não definido”, “Filmes e desenhos” e “Música”, se destacam frente às outras, agora em relação não apenas às visualizações, mas também em relação aos rendimentos médios. Deduzimos que, no caso de “Filmes e desenhos” e “Música”, existem possíveis correlações entre os possíveis ganhos com o YT e notoriedade em outras mídias (rádio, televisão, filmes).

42 Cotação do dólar comercial em 01/12/2018, data da coleta dos dados. Disponível em:

GRÁFICO 19 - GANHOS MENSAIS MÉDIOS POR CATEGORIA