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A difusão de práticas e habilidades de uso das novas TICs está relacionada a contextos sociais desiguais, o que leva alguns autores a sugerir que viveríamos em um

tecno-apartheid. A cartografia da Terra seria concebida, a partir daí, como um

“arquipélago de cidades ou regiões muito ricas, com forte desenvolvimento tecnológico e financeiro, no meio do oceano de uma população mundial cada vez mais pobre” (SIBILIA, 2013, p. 29). Outros tomam essa diferenciação a partir do conceito digital divide (divisão digital) (VAN DIJK; HACKER, 2003, p. 315–316), para tratar do mesmo fenômeno. A divisão digital se daria a partir de diferenças:

1) Mentais: falta de experiências digitais causadas por falta de interesse, ansiedade no uso de computadores e falta de atrativos para tal;

2) Materiais: falta de computadores e de conexão com a Internet;

3) Em relação às habilidades: falta de habilidades digitais causadas pela dificuldade de operar os sistemas e carências em relação aos processos educacionais e o suporte social necessário;

4) De uso: falta de oportunidades significativas para utilizar a Internet.

Os conceitos de tecno-apartheid e divisão digital são importantes para percebermos que a suposta universalização das TICs possui limites, variando conforme configurações diversas em cenários global e local. Entretanto, cumpre destacar que as pesquisas quantitativas e censitárias nos encaminham à sua problematização e readequação, dado que a expansão do uso da Internet se dá de forma crescente (ao menos no Brasil). Como expusemos na seção anterior, ainda que tenhamos uma série de elementos que distingam estratos populacionais (que também podem ser em termos de qualidade do uso32), não há, ainda, indicativos de um arrefecimento nas taxas de

crescimento do acesso à Internet no contexto brasileiro.

32 A ideia de qualidade do uso se refere ao uso das potencialidades abertas pelas novas TICs. Nesse

contexto, percebemos a qualidade do uso como relacionada à capacidade de explorar as ferramentas disponíveis, uma condição intimamente relacionada com aspectos educacionais e condições sociais. Acreditamos que através de pesquisas mais apuradas sobre o uso da Internet podemos compreender que há relações distintas entre os diferentes estratos da população, como mostra Juliano Spyer (2017) em seu estudo sobre o uso das mídias sociais pela população de baixa renda como uma forma de manter-se conectada à família e aos amigos. Cumpre salientar que estudos de “como” a população utiliza a Internet

Um dos conceitos que vem sendo discutido nesse cenário de aumento expressivo do uso da Internet é a “cidadania digital”. Sinteticamente ela pode ser definida como a “capacidade de participar na sociedade online” e os cidadãos digitais são aqueles que “usam a Internet de maneira regular e eficiente, ou seja, diariamente” (MOSSBERGER; TOLBERT; MCNEAL, 2008, p. 1).

A questão, entretanto, vai além do mero uso da Internet: a cidadania digital diz respeito às possibilidades que o uso frequente da Internet pode abrir em termos de participação política e de ganhos econômicos no mercado de trabalho (JOHNS, 2008). Nessa concepção a cidadania digital plena poderia ser alcançada a partir do momento em que as pessoas fizessem usos sistemáticos das tecnologias digitais em benefício próprio (na capacidade de converter suas habilidades digitais em ganhos materiais e simbólicos) e como meio de engajamento cívico.

A criação de conteúdo para o YT é um tipo de uso das tecnologias digitais que as pessoas fazem em benefício próprio. Não é nosso objetivo investigar se estas formas de uso das novas tecnologias digitais em benefício próprio são acompanhadas de maior engajamento cívico. Entretanto, cumpre salientar a importância do aumento do fluxo comunicacional como um mecanismo de ampliação dos terrenos de possibilidades para que as pessoas possam transformar o mero acesso em algo mais profundo em suas vidas (seja a partir do engajamento com novas atividades laborais ou na circulação em novos espaços de disputa política).

Se tomarmos as carências e dificuldades, levantadas pelo conceito de divisão digital, podemos inferir as pré-condições para o uso engajado que os criadores de conteúdo para o YouTube demonstram ao utilizar a plataforma:

1) Mentais: experiências digitais motivadas e interessadas, familiaridade, tranquilidade e fortes atrativos para o uso (financeiros e reconhecimento); 2) Materiais: disponibilidade de computadores e conexão com a internet;

disponibilidade e familiaridade com outros equipamentos como câmeras digitais, microfones e softwares de edição de vídeo;

3) Habilidades: facilidade em operar sistemas e equipamentos; 4) Uso: muitas oportunidades significativas para utilizar a Internet.

precisam ser adensados para que compreendamos as formas diferenciadas com as quais as pessoas se apropriam das novas tecnologias.

Estes elementos, combinados, auxiliam os criadores de vídeos a desfrutarem das possibilidades oferecidas pela plataforma em termos de ganhos pessoais. Vale destacar, como sugere Byung Chul-Han (2016), que o simples aumento do fluxo comunicacional e interativo não esclarece por si só o mundo. Se faz necessário investigar as implicações do crescimento desses fluxos na disseminação de grupos de opinião cada vez mais participativos e influentes, seja na reformulação de processos políticos como nos rearranjos das formas de ser e se relacionar com outras pessoas nos espaços digitais.

Se apenas o aumento comunicativo não é por si só um fator de maior resolução das questões da vida em sociedade, ele é antes de tudo um importante indicador para compreendermos as modalidades de agências emergentes através desses fluxos, dado que as capacidades necessárias à participação na sociedade têm sido dramaticamente alteradas pela era da informação. Uma das plataformas influentes na emergência destes novos sujeitos é o YT, cuja consolidação no cenário digital será analisada no próximo capítulo.

4 A EMERGÊNCIA DO YOUTUBE COMO PLATAFORMA DIGITAL

O YT ganhava popularidade durante o ano de 2005 desde o seu lançamento em fevereiro e encontra seu ponto de inflexão com o investimento de US$11.5 milhões, que começa a ser injetado a partir de novembro deste mesmo ano pelo grupo Sequoia Capital33. Surgia uma plataforma híbrida em meio a tantas novidades que brotavam no

Vale do Silício: site de relacionamentos, repositório de vídeos, plataforma de streaming e, o que viria a tornar-se no futuro, uma complexa rede social e plataforma digital.

As notícias veiculadas sobre o site vinham acompanhados de números grandiosos, que supostamente deveriam traduzir algum grau de relevância para o leitor que com eles se deparava. Milhares de vídeos por minuto, milhões de acessos, trilhões de horas em conteúdo. A história do YouTube é indissociável dessa narrativa grandiloquente e de difícil comparação com qualquer outro site ou plataforma. Talvez a única comparação se dê com a Alphabet (conglomerado que gerencia a Google e suas subsidiárias), a segunda maior empresa do capitalismo global em disputa com a Apple e Amazon para se tornar a primeira companhia com valor de um trilhão de dólares34. Não por acaso que dezoito

meses depois de criação do YT, a Google viria a anunciar a aquisição bilionária da nova plataforma de vídeos que não pararia de se expandir35.

Passados treze anos de sua criação, talvez seja difícil encontrar alguém entre a maior parte da população brasileira que possui acesso à Internet que nunca tenha ouvido falar do YT. Até mesmo a população a quem é negada a inclusão digital, ou aquela parte que nega ativamente incluir-se nesse mundo de avanços tecnológicos digitais, deve, ao menos, ter ouvido alguma menção sobre o site.

Durante esses treze anos se encaminha um processo de transição, no qual estes números passam a ser de menor valor na atribuição de importância sobre o que representa a plataforma, pois boa parte dos habitantes do planeta já ouviram falar, acessam como espectadores, postam vídeos, participam por comentários, ou

33 Ver “Venture Firm Shares a YouTube Jackpot“, disponível em: http://www.nytimes.com/2006/10/10/technology/10payday.html. Acesso em 26/01/2019.

34 Ver “Amazon and the Race to Be the First $1 Trillion Company”, disponível em: http://fortune.com/2017/03/31/amazon-stock-trillion-dollar-company-apple-tesla-google/. Acesso em 26/01/2019.

35Ver "Google closes $A2b YouTube deal", disponível em https://www.theage.com.au/news/Business/Google-closes-A2b-YouTube-

simplesmente clicam no botão de “gostei” e “não gostei” para mostrar aprovação e desaprovação em relação a algum conteúdo.

Acompanhamos essa transição na mídia que passa a reportar a grandiosidade do YT em relação ao tráfego total da Internet dedicado ao seu uso. Não são mais bilhões de comentários nos vídeos e esvanece o número das trilhões de horas de conteúdo audiovisual retidas na plataforma, dando lugar a medidas de porcentagem total de tudo aquilo que circula na rede. Para o ano de 2019 é esperado que 80% de todo o tráfego na Internet seja dedicado aos vídeos através das plataformas de streaming, sejam elas pagas como Netflix ou semi-gratuitas como o YT36.

O site só perde para o Google em número de visitas, tanto no Brasil como na maioria dos outros países em que o acesso ao YouTube é permitido. Basta qualquer usuário apertar a tecla “Y” de seu teclado que a ferramenta de “auto completar” ou a sugestão das ferramentas de busca indicará a plataforma de streaming. Nos países em que seu acesso é bloqueado37, isso abriu mercado a outras plataformas como é o caso da

“iQiyi” e “youku” na China, e do “aparat” no Irã, sinalizando que, independente do nome da empresa que provêm esse serviço há um desejo das pessoas em acessarem conteúdos audiovisuais na Internet.

Ao longo destes treze anos a inserção do YT no cenário digital altera drasticamente as lógicas da produção audiovisual na maioria do globo. O início da plataforma foi marcado por ferrenhas disputas judiciais com as grandes produtoras de conteúdo, em especial os estúdios cinematográficos de Hollywood (BURGESS; GREEN, 2009). Este cenário de mercado “belicoso” foi paulatinamente se transformando através de acordos e parcerias, apontando para um certo conformismo estratégico de uma indústria cinematográfica que luta em diversas frentes para não perder espaço, seja para produtores independentes de conteúdo, seja pelas lógicas de compartilhamento não autorizado de material com direitos autorais. De diversas maneiras os setores se

36 Ver “Cisco Visual Networking Index: Forecast and Trends, 2017–2022“, disponível em: https://www.cisco.com/c/en/us/solutions/collateral/service-provider/visual-networking-index-

vni/complete-white-paper-c11-481360.html. Acesso em 26/02/2019.

37 Na Coréia do Norte, ainda que o acesso à Internet seja limitado para nacionais, estrangeiros

podem acessar via 3G pela operadora Koryolink. O acesso ao YT era permitido para estes até abril de 2016, quando o site fora bloqueado junto com Twitter e Facebook para não difusão de conteúdo “impróprio” e “antirrepublicano”. Fonte: https://www.theguardian.com/world/2016/apr/01/north-korea-announces- blocks-on-facebook-twitter-and-youtube. Acesso em 03/02/2019.

“acomodaram” às novas lógicas e as implicações da disseminação da plataforma extrapola a dimensão dos negócios, reverberando nas relações de controle do trabalho.

Considerando as questões expostas anteriormente, onde se procura explicitar a potência destes dispositivos tecnológicos, do tipo plataformas de redes sociais e suas implicações, de maior ou menor significância, nas dimensões sociais, culturais e tecnológicas e inevitavelmente nas questões de trabalho, se evidencia a força destas “máquinas digitais”, principalmente no que se refere ao estabelecimento de um tipo de controle. Se anteriormente externo, percebido no escopo da biopolítica, agora as novas tecnologias mediam exercícios de controle interno das pessoas sobre si mesmas. “As sociedades de controle estariam substituindo as sociedades disciplinares”, sugeria Gilles Deleuze (1992, p. 219).

Essa substituição aventada por Deleuze é percebida por Byun-Chul Han (2015) através das novas formas de poder do neoliberalismo trazidas ao cenário do trabalho. Cumpre resgatar o pensamento do filósofo sul-coreano, para refletirmos sobre o YT, porque seus textos trazem alguns dos argumentos teóricos que melhor iluminam o fenômeno da influência da Internet na vida contemporânea. De acordo com Han, as pessoas, nesse contexto, estariam submetidas a coações internas, na busca constante por rendimento e baseando suas vidas em ideais de otimização. A existência humana sob a sombra dessa concepção neoliberal de mundo estaria desembocando em uma crise de liberdade, originada no paradoxo entre pretensões de liberdade e sujeição à autoescravização. Só se considera livre quem tem um projeto a seguir, ou seja, há uma liberdade de poder, mais coercitiva que a velha liberdade do dever. A exploração sob o neoliberalismo seria mais eficiente, pois se daria voluntariamente.

Han critica a noção da liberdade na contemporaneidade como uma virtude pessoal, proposta típica do neoliberalismo dominante. Dos escritos de Marx, retoma a ideia da impossibilidade de existência de liberdade para além da comunidade, pois seria uma realização mútua. O próprio entendimento da liberdade como um ato individual seria uma astúcia do capitalismo.

Nesse modelo o capitalismo converte o trabalhador em empresário de si mesmo, instaurando uma luta de classes interna que se dá dentro de cada um. É difícil distinguir grupos sociais, como anteriormente, em proletários e burgueses. A vigilância, no interior de um pan-óptico pessoal, converte pessoas em vigias de si mesmos, instaurando uma ditadura do capital fundamentada na autoexploração sem classes. Isso levaria a um

sentimento de esvaziamento das possibilidades de revolução social, pois esta dependeria do enfrentamento entre exploradores e explorados. Ao assumirem para si responsabilidades próprias do sistema, os trabalhadores estariam fadados ao fracasso no escopo de uma sociedade do rendimento. O neoliberalismo transformaria o sujeito revolucionário em um sujeito depressivo, cansado de ser si mesmo (EHRENBERG, 2000). Desse modo, o conceito de trabalho passa a abranger outras conceituações, se insere e se apropria de outras formações discursivas, vinculando seu significado e prática a novas regras, profundamente vinculadas e determinadas no tempo e espaço (FOUCAULT, 1987, p. 136) transferindo outras concepções que tendem a romper com discursos mais tradicionais, como em relação a ideia de trabalho.

Considerando este espaço emergente digital que se imbrica cada vez mais profundamente no espaço social orgânico, outras relações de saber e poder se materializam e passam a se consolidar inexoravelmente. Sem dúvida estas hibridizações entre os espaços orgânicos e virtuais afetam a sociedade e, dessa forma, os trabalhos e suas repercussões.