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O trabalho no espaço digital e a produção de conteúdo audiovisual para o YT, emergem como uma nova atividade a partir de 201277, ano que a plataforma de streaming

amplia a possibilidade de monetização dos canais. Através de um sistema por vezes criticado por seus “parceiros”, o YT repassa aos criadores de conteúdo uma parcela dos ganhos com contratos publicitários, calculados por um algoritmo que estabelece a aderência e potencial de consumo de cada vídeo.

Para que possamos discutir as implicações daquilo que percebemos como novas relações de trabalho no espaço digital, inexistentes em períodos anteriores precisamente por eclodirem a partir da relação entre o modo de produção com e a cibernética, é

77 O “Programa de parceiros”, lançado em 2007, era restrito a alguns canais selecionados até o ano

de 2012, quando o YouTube anuncia que abre o até então seleto programa para todos os criadores de conteúdo.

necessário que reflitamos sobre as mudanças que o capitalismo emergente operou nas atividades humanas nos últimos séculos. Isso nos leva a considerar suas permanências, já que essas novas relações entre trabalhadores e novos meios de produção não alteraram lógicas imanentes do sistema de produção capitalista, tampouco transformam a lógica da geração de mais-valia e do trabalho como fonte de agregação de valor aos produtos físicos e imateriais criados.

O motivo que nos leva a buscar tais elementos nas origens do capitalismo se dá pela hipótese de que, apesar das grandes novidades emergentes nesse universo, algumas características são caudatárias de transformações que não são novidades para a sociologia do trabalho e para a historiografia. Nesse ponto, por mais que as novas tecnologias desempenhem um papel na promoção de novas atividades econômicas que passam a envolver um grande número de pessoas, transformações datadas dos últimos séculos ainda repercutem as relações estabelecidas no mundo do trabalho nos dias de hoje78.

Se pode haver na história um antes e um depois, um marco que delimita o início de um período histórico e que orienta na composição de um panorama sobre as transformações do trabalho no capitalismo, esse momento é, para Marx (2013), o primórdio da manufatura a partir da metade do século XVI, período em que o modelo doméstico de produção é reconfigurado no sentido de atender demandas de novos mercados em expansão. Para ele esse seria um ponto de partida da produção capitalista dando início a aumentos exponenciais na produção, em especial no Reino Unido, e que depois se alastram em países como a Bélgica, França e Estados Unidos. Tomamos a divisão temporal em Marx como um ponto de partida para iniciar nossa análise justamente por suas reflexões realçarem a importância do relacionamento entre capital e trabalho. Este relacionamento diz respeito às relações de trabalho contemporâneas porque, apesar das transformações pelas quais tenham passado, elas não suprimiram a posse dos meios de produção, o valor do trabalho como ato de criação insubstituível e a existência da mais- valia como motor do sistema produtivo.

A primeira fase de transição do trabalho doméstico à manufatura se estende deste período histórico apontado por Marx, da emergência manufatureira, até a Revolução

78 Não é nosso intuito retomar as diferenças e continuidades entre modelos e formas de organização

do trabalho. Para um maior detalhamento neste sentido, como características do taylorismo, fordismo e neofordismo (modelo japonês) ver capítulo 3 da tese de Pedro Robertt (2006, p. 61–104).

Industrial no século XVIII, momento que se constroem diferentes arranjos na esfera de produção alinhados a novas concepções de mundo e um arsenal renovado de instrumentos tecnológicos a serviço das mesmas. Essa fase originária possui três características básicas que sinalizam as marcas do início da industrialização: 1) remuneração da força de trabalho, 2) ausência de garantias legais e 3) acordos informais entre patrão e empregado (CASTEL, 2003, p. 305). Se em Marx tais elementos compõem o gérmen da luta entre burgueses e proletários, que o leva a perceber tais dinâmicas inseridas no contexto de uma sociedade dividida em classes sociais, Robert Castel (1998) defende que esta concepção se altera no decorrer do século XX, na transição paradigmática de uma sociedade de classes para uma sociedade salarial, argumento que discutiremos mais adiante.

Para além da remuneração e das relações contratuais que instituem relações de poder, elementos objetivos passando a situar os indivíduos em polos antagônicos em disputa, surgem concepções variadas que alteram a subjetividade dos trabalhadores na alteração da relação tempo-espaço. Ganha espaço o lugar da oficina como o lócus de produção e de disciplina que regula o ritmo de produção, numa alteração clara no que se refere à temporalidade e espacialidade do trabalho:

A atividade de um número maior de trabalhadores, ao mesmo tempo e no mesmo lugar (ou, se se preferir, no mesmo campo de trabalho), para a produção do mesmo tipo de mercadoria, sob o comando do mesmo capitalista, tal é histórica e conceitualmente o ponto de partida da produção capitalista. Com relação ao próprio modo de produção, a manufatura, por exemplo, em seus primórdios, mal se diferencia da indústria artesanal da corporação, a não ser pelo número maior de trabalhadores simultaneamente ocupados pelo mesmo capital. A oficina do mestre-artesão é apenas ampliada (MARX, 2013, p. 493).

Ainda que utilizadas as mesmas máquinas manuais (como o exemplo clássico do tear) dos circuitos domésticos, entra em jogo o elemento da cooperação, vital para Marx no estímulo à produção. Se a manufatura mal se diferencia da indústria artesanal, como sugere o autor, o elemento cooperativo e a temporalidade ritmada da produção coletiva dão novos contornos ao universo de possibilidades na esfera produtiva, seja em termos de escala quantitativa daquilo que se produz, seja em subjetividades renovadas pela emergência destes elementos. Retomando o conceito aristotélico do homem enquanto animal social, Marx defende que o contato social provocado por tais agrupamentos na manufatura provocaria “emulação e excitação particular dos espíritos vitais” (2013, p.

498), aumentando o rendimento do trabalhador individual. Ao cooperar o trabalhador superaria suas limitações individuais e desenvolveria sua “capacidade genérica”.

Essa linha de pensamento pode ser tomada tanto no aspecto durkheimiano, da excitação moral dos indivíduos quando colocados em contato, naquilo que o sociólogo francês denomina como um momento de efervescência (DURKHEIM, 1996)79, como em

termos foucaultianos sobre as relações de poder que se desenrolam a partir do agrupamento de humanos em espaços disciplinares como a fábrica. Cumpre destacar a ambiguidade do elemento cooperativo na ação, operando tanto como promotor do desenvolvimento de capacidades que superam a mera soma dos indivíduos, como abre espaço para o surgimento de figuras centralizadoras do poder para o aumento do rendimento em prol do capital – o gerente de fábrica, o cronometrista a partir do taylorismo e diversas outras profissões originárias na necessidade de controle da esfera produtiva. Nesses termos a cooperação, quando implicada em relações de produção sob sistemas econômicos baseados em forte hierarquia e controle, pode suscitar relações de dominação quando, a partir dela, altos padrões produtivos são esperados do trabalhador. Ao cooperar, a excitação coletiva permite a superação das quantidades produzidas pelo trabalho solitário, potencialmente elevando a exploração nas relações de trabalho, uma vez que nem sempre o trabalhador é recompensado pelo excedente produzido pelo espírito cooperativo.

Tais alterações estimularam novas relações territoriais e simbólicas, seja pelo deslocamento nos espaços de produção ou pelas relações que neles se desenrolam. Institui-se locais de produzir (oficinas, manufaturas e posteriormente a fábrica) separados dos locais de viver (moradia, espaços de lazer e convivência, a taberna, a igreja); emergem, nesse contexto, hierarquias valorativas distintivas dos sujeitos e que tem como fator de separação não apenas a capacidade financeira para consumir como especialmente seu papel no sistema produtivo; edificam-se modos de existir e pensar o mundo alicerçando a ontologia do tempo presente.

79 Como sugere Weiss “os momentos de efervescência configuram-se como a instância originária

do sagrado que, por sua vez, está na base de todo fenômeno religioso e também moral” (2013, p. 175). O conceito de efervescência, como elemento constituinte da excitação em interações no âmbito da produção, pode ser utilizado na medida em que compreendemos o capitalismo como religião, seguindo Walter Benjamin: “o capitalismo está essencialmente a serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e inquietações a que outrora as assim chamadas religiões quiseram oferecer resposta” (2015). Feitas estas ressalvas, a efervescência durkheimiana é um conceito que pode auxiliar na compreensão das interações dos trabalhadores entre si, com patrões e com máquinas no âmbito da produção capitalista.

A transformação territorial envolve tanto a separação entre a cidade e campo, tomada por Marx como “a base da divisão do trabalho”, como o surgimento de novos arranjos (no caso francês). A explosão demográfica nas cidades do Reino Unido são exemplares dos novos fluxos migratórios do campo para a cidade. Salta aos olhos do observador sua potência na construção de um renovado modelo urbano consonante com o sistema produtivo. Já no modelo francês, as primeiras manufaturas e fábricas buscam estar mais perto das fontes de mão-de-obra, se instalando no campo. Modelo original "que se insinua nos ritmos de uma agricultura que continua a dominar o jogo, lenta mutação que se opera por 'deslizamento sem desenraizamento violento'” (PERROT, 1988, p. 60), A industrialização caminha de mãos dadas com a política das grandes fábricas via ordenamento do espaço, que Perrot avalia como uma “eugenética das populações industriais, já que tais cidades têm por objetivo fixar a mão-de-obra no território para que ela se reproduza e mantenha um baixo custo” (Ibid.). O processo industrial, nesse contexto, reforça a família e busca fixá-la no território com intuitos funcionais, figurando o industrial, o proprietário dos meios de produção, como regulador chave nos fluxos de captação da força de trabalho, incidindo na distribuição populacional pelo território. Como sugere a autora francesa, a industrialização não tenta destruir a família, pelo contrário: ela a reforça para usá-la em benefício próprio, “não sem aumentar as contradições e tensões internas”:

[...] a célula familiar é o núcleo do sistema. Os fabricantes procuram empregar toda a família, para garantir o recrutamento e a fidelidade da mão-de-obra. Cada membro da família é utilizado conforme suas forças e seu estatuto. Como no sistema doméstico, o pai garante a aprendizagem, a disciplina e, sendo o caso, a remuneração dos filhos [...]. Os pais, portanto, são responsáveis pelo trabalho e pela subordinação dos seus filhos [...]. A eventual revolta dos jovens contra a fábrica se transforma em revolta contra o pai (PERROT, 1988, p. 60–61). A socialização das crianças para o trabalho ganha centralidade como elemento de reprodução da força produtiva. O conteúdo dos textos dos moralistas analisados por Edward Thompson (2005, p. 291–293) são explícitos sobre a influência socializadora das escolas e dos asilos de pobres, bem como ilustram uma nova ética para o trabalho na qual “passar” o tempo é uma ofensa: o tempo deve ser consumido, negociado, utilizado.

Os elogios às escolas de caridade eram fartos e generosos, na medida em que eram espaços de disciplina e cumprimento de regras. A relação entre socialização nestes espaços e o ganho de intimidade com o ritmo do trabalho é muito próxima, dado que o trabalho nas manufaturas era exultado como via de aquisição do "hábito do trabalho":

[...] quando a criança atingia os seis ou sete anos, devia estar habituada, para não dizer familiarizada com o trabalho e a fadiga"; espera-se que a nova geração "fique tão acostumada com o trabalho constante que ele acabe por se revelar uma ocupação agradável e divertida para eles [...]" (Ibid.).

Além da preparação constante das crianças e emprego de suas mãos-de-obra à exaustão, emerge a inovação abstrata, seja para adultos ou crianças, que cinde o tempo remunerado do não-remunerado. Parcelas de tempo resultantes dessa cisão, passam a compor a subjetividade dos trabalhadores na construção de suas identidades em intensas disputas que marcam a história da relação capital-trabalho (todo ato de resistência, institucionalizada ou mesmo performada no ato da luta cotidiana do trabalho através de micro resistências). Luta-se no e pelo tempo e podemos tomar a imagem reflexa do trabalhador nas reclamações dos patrões contra a vadiagem e perda de tempo. Em defesa de um tempo que poderia energizar as forças vitais do espírito humano, Marx critica que as máquinas jogaram por terra barreiras morais e naturais da jornada de trabalho. Ganhar tempo para viver além do trabalho seria a fonte de defesa contra o ritmo repetitivo e extenuante imposto pelas engrenagens e seus envoltórios maquínicos em constante movimento.

A máquina ao mesmo tempo induz e desafia tal partilha pela captura exponencial do tempo de vida dos trabalhadores, uma vez que é fonte incessante de transformação de valor em capital ao incorporar “força viva de trabalho à sua objetividade morta” (MARX, 2013, p. 349). O capital como elemento de desejo último é um valor que se “autovaloriza, um ‘‘monstro vivo’’ que se põe a ‘trabalhar’ como se seu corpo estivesse possuído de amor” (Ibid.), atuando em processos intricados de conversão, troca e substituição.

A conversão mais significativa nesse ponto é aquela que monetariza o tempo de trabalho, criando a relação do trabalhador como vendedor de um produto, isto é, sua força de trabalho. Na transformação do tempo de trabalho em moeda de troca, o trabalhador cessa a venda de produtos e transfere esta etapa ao intermediário, o homem prático “que nem sempre sabe o que diz quando se encontra fora de seu negócio, mas sabe muito bem o que faz dentro dele” (Ibid. p. 346).

O crescimento da subdivisão complexa dos processos vai substituindo paulatinamente o putting-out-system (o sistema de trabalho em domicílio), este, com baixa exigência do grau de sincronização do trabalho e cuja orientação se dava pelas tarefas. O mesmo trabalhador ou o mesmo grupo de família realizava uma multiplicidade de tarefas subsidiárias:

Daí temos a irregularidade característica dos padrões de trabalho antes da introdução da indústria em grande escala movida a máquinas. Segundo as exigências gerais das tarefas semanais ou quinzenais - a peça do tecido, tantos pregos ou pares de sapato -, o dia de trabalho podia ser prolongado ou reduzido. Além disso, nos primeiros desenvolvimentos da manufatura e da mineração, ainda existiam muitas ocupações mistas: os mineiros de estanho da Cornualha também participavam da pesca da sardinha; os mineiros de chumbo do Norte eram igualmente pequenos proprietários de terra; os artesãos da vila se dedicavam a várias tarefas na construção, transporte de carroça, carpintaria; os trabalhadores domésticos deixavam o seu trabalho para ajudar na colheita; o pequeno fazendeiro/tecelão dos Peninos (THOMPSON, 2005, p. 280–281). O processo de mecanização, então, antes de responder a necessidades técnicas (o desenvolvimento tecnológico de máquinas e maneiras de produzir), responde a necessidades disciplinares (PERROT, 1988). Por seu turno, o trabalhador, acostumado ao revezamento das tarefas que compunham seu cotidiano, como ilustrado na citação acima, passa por transformações na notação interna do tempo: ele passa a ser percebido sob novos ritmos dada a “irreversibilidade” das tecnologias, para usarmos termo recorrente na leitura contemporânea de Pierre Levy (2010). Do outro lado, os empregadores capitalistas empreendedores também sofrem alterações nas suas notações internas do tempo, aguçando sua percepção quanto ao uso parcimonioso do mesmo, em um processo histórico em que a medição temporal através dos relógios (inovações tecnológicas da época cuja posse simbolizava status) torna-se meio de exploração da mão-de-obra (THOMPSON, 2005, p. 289).

Essa alteração na subjetividade dos atores envolvidos só é possível na medida em que lugares estratégicos são ocupados nas posições de poder, e que tais posições condicionam uma mudança drástica que subverteu aquilo que seria o ritmo “natural” do trabalho humano. Thompson, seguindo Marx, questiona se não haveria um ritmo “natural” do trabalho humano, padrão que persiste entre artistas, escritores, pequenos agricultores e, talvez, até estudantes. Se as respostas para essas perguntas são, talvez, impossíveis de responder, podemos através de um argumento sociológico explorar quais são seus efeitos em termos políticos e subjetivos, e quais foram as formas que os trabalhadores adotaram para resistir ao “monstro vivo” aparentemente insaciável do ímpeto produtivo.