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Ao explorarmos na seção anterior a passagem para a grande indústria e o processo de mecanização, que puseram em circulação uma nova gama de necessidades disciplinares, fica evidente a eclosão de uma nova política do corpo. Transformações quanto a autonomia do trabalhador, seja no controle do tempo ou das etapas do processo produtivo, nos levam a traçar elos com os novos sujeitos políticos que entram em cena, suas redes de articulação de poderes e saberes.

Esse processo, para além de uma alteração tecnológica nos meios de produção, traz alterações nas relações de força que estão colocadas na sociedade, sendo os polos opostos identificados genericamente como dominantes e dominados. Para além de um mero processo de sujeição em que haveria um jogo de perdas e ganhos em tais polos distintos, é significativo que analisemos os efeitos das correlações de força em jogo e, destas, em relação aos corpos e suas conformações ou deformações possibilitadoras de resultados no campo da produção.

Nada mais coerente que iniciar tal reflexão a partir dos corpos subalternos. Quem eram os trabalhadores cuja mão-de-obra se tornara produto, o tempo fora monetarizado e cujas tarefas foram condicionadas aos desejos do capitalista e sob a força incessante de suas máquinas? O historiador Paul Mantoux dá indícios de quais seriam as composições da força de trabalho nesses estágios iniciais do desenvolvimento capitalista:

No início, o pessoal das fábricas compunha-se dos elementos mais díspares: camponeses expulsos das suas aldeias pelo alargamento das grandes propriedades, soldados desmobilizados, indigentes a cargo das paróquias, o rebotalho de todas as classes e de todos os ofícios (MANTOUX, 1962, p. 375; MARGLIN, 1978, p. 18).

O baixo grau de complexidade exigido na operação das máquinas tornava virtualmente toda e qualquer pessoa potencial mão-de-obra a ser colocada sob os mandos do capital. Essa característica da baixa complexidade aliada ao alto grau de repetição não poderia ser melhor ilustrada do que a partir do cinema de Charles Chaplin em “Os tempos

modernos” (1936) e “A Classe Operária Vai para o Paraíso” (1971) de Elio Petri. Se no

primeiro o ritmo de produtividade e nível de repetição da indústria são retratados com humor por Chaplin, no filme de Petri somos levados a perceber o encadeamento de fatos que levam o protagonista Lulù Massa à loucura, desde o acidente que o faz perder o dedo até as inconsistências dos movimentos políticos e revolucionários com agendas difusas

de luta. Embora retratem diferentes períodos históricos, o elemento que une tais filmes é uma crítica pertinente sobre o grau de internalização do ritmo de trabalho necessário à sobrevivência na grande indústria capitalista, além de uma disciplina internalizada que se faz “segunda pele” para que tal ritmo componha um saber e um controle constituintes do que Foucault denomina uma "tecnologia política do corpo":

Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar a força contra a força, agir sobre elementos materiais sem, no entanto, ser violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continuar a ser de ordem física. Quer dizer que pode haver um "saber" do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las (FOUCAULT, 2004, p. 25).

Como mencionamos na seção anterior, o grau de internalização máximo era atingido quando os trabalhadores eram recrutados na tenra infância. O desejo dos moralistas e dos capitalistas era a formação de uma mão-de-obra inconsciente – melhor ainda quando impotente-, em relação ao caráter artificial e socialmente construído do ritmo produtivo e de sua posição subalterna na divisão social do trabalho. Ainda, o desejo maior era a formação de uma força de trabalho altamente dócil, e que lugar melhor para encontrar tal combinação do que na assistência pública visando o recrutamento das crianças sob sua tutela?

Para Stephen Marglin (1978) essa relação de venda de crianças para as fábricas para trabalharem como aprendizes, transformava o aprendizado em um sistema de servidão a longo prazo – não havia horizonte de alteração da realidade mesmo num futuro distante. A continuidade da alta taxa de mortalidade infantil nas fábricas (sublinhadas desde Marx), emergia como resultado de uma íntima articulação entre poderes que forneciam os corpos desde cedo para operação das máquinas.

O Estado tem influência direta e indireta nesse contexto. Direta porque durante o século XVIII, recorrer aos poderes legislativo, policial e judicial do Estado passa a ser prática frequente dos capitalistas (Ibid. p.17). O Estado passa a prestar um serviço de controle e regulação fundamental nas disputas entre capitalistas e empregados, atuando na criminalização e punição de condutas dos corpos insubmissos e institucionalizando o processo de judicialização das punições. Indireta quando regula a instituição de patentes em favor do jogo dos capitalistas, os quais dispunham quantias suficientes para comprar

licenças dos inventores e com isso galgar a condição monopolista desde o controle da informação privilegiada até o produto final.

Não bastasse o papel moralizante dos discursos proclamados desde os sacrossantos territórios das instituições religiosas, a Igreja, segundo Michelle Perrot, possui uma tripla contribuição à industrialização:

1) pôr no trabalho populações pobres ou delinquentes, crianças e mulheres, procedimento mais do que secular, no quadro das oficinas de caridades, com muitos milhares em todo o país [França]; 2) fornecer um pessoal de supervisão nessa fase de disciplina "pan-óptica", que requer olhos vigilantes; 3) prestar-se à fase de experimentação técnica... Longe de ser rebelde às maquinas, a Igreja lionesa, por exemplo, solicitava empréstimos aos industriais para se equipar... Abençoando as máquinas, como outrora os sinos, a Igreja simbolizava a nova aliança entre a Máquina e o Altar (1988, p. 44–45).

As contradições e influências das instituições religiosas são ilustradas pelo filme “Daens - Um Grito de Justiça” (1992), no qual o protagonista, o padre Afold Daens, representa uma voz dissonante na Igreja católica frente às injustiças e da exploração dos trabalhadores na Bélgica do final do século XIX. Cumpre destacar nesse contexto o papel dissonante entre a Igreja enquanto instituição e a potência das críticas que emanava de alguns de seus membros. Se institucionalmente a Igreja teve papel fundamental no processo de legitimação da exploração da mão-de-obra, é na articulação entre alguns de seus membros com trabalhadores e movimentos sociais emergentes que eclodem críticas cada vez mais potentes às condições desumanas de trabalho na indústria capitalista.

Essas críticas e seus proponentes se viam frente a uma série de normas e regulamentos que revelam ao mesmo tempo uma finalidade econômica e política, já que visam disciplinar o corpo do trabalhador, “seus gestos e comportamento” (PERROT, 1988, p. 68). Como sugere a autora francesa, a partir dos regulamentos podemos perceber a sugestão de uma imagem reflexa do trabalhador e a turbulência gerada por suas críticas, gestos e ações. As sanções são diversas como as multas por

[...] falta, atrasos, falhas na fabricação, deterioração das máquinas, brigas dentro ou na frente da fábrica, cachimbos mal apagados, “bagunças”, disputas, grosserias, conversas obscenas, maneiras indecentes, embriaguez, falatórios, deslocamentos fora do serviço, insolência em relação aos chefes, escritos nas paredes etc. (Ibid.).

A normatização e controle disciplinar sitiam o corpo do trabalhador revelados por sua conduta e a exigência é de uma corporalidade disciplinada na mutação do trabalhador em operador, emulando aquilo que Marx denomina uma “disciplina de quartel” (2013, p. 608). Embora operando com forças das quais não possuíam controle e partindo de uma

posição estratégica desfavorável, a atitude operária não era passiva (como percebemos na imagem reflexa do trabalhador nas constrições regulatórias que lhes era imposta) e as formas de resistência passam a compor a política de disputas dentro e fora do local de trabalho. Como sugere Perrot os operários não eram absolutamente hostis ao progresso técnico, desde que eles o governassem. A oposição às máquinas verifica-se no sentido de defesa de um estilo de vida mais folgado e autônomo. Até mesmo na imprensa operária da época não se encontra uma hostilidade fundamental e sistemática contra a maquinaria.

O movimento ludista é central neste contexto (cuja denominação se faz em homenagem a figura mítica de Ned Ludd, supostamente um tecelão que destruiu duas máquinas na Inglaterra do século XVIII), por ser mais do que um movimento de destruição de máquinas e surgir como uma das formas de resistência em defesa do direito de emprego. As petições, cartazes e interdições eram as mais correntes formas de manifestação e crítica, sendo a destruição das máquinas o último recurso (PERROT, 1988, p. 35). É importante ressaltar que nesse processo de resistência os movimentos mais fortalecidos eram oriundos dos grupos de operários de ofício, mais qualificados. A força política de tais grupos, como resultado de seu poder de barganha por controlarem um “saber fazer” que não era meramente descartável e, tão importante quanto, a auto percepção de tais trabalhadores enquanto um grupo de poder, passam a compor a luta por espaços e direitos separados por categoriais, talvez o gérmen do corporativismo que dissolve a luta anticapitalista até os dias de hoje em grupos de interesse – ou grupos salariais, como exploraremos mais adiante.

As liberdades e autonomia do trabalhador tornam-se cada vez mais cerceadas e, como salienta Marglin "a liberdade de o operário recusar a fábrica era a liberdade de morrer de fome." (1978, p. 18). Esse processo de perdas dialoga fortemente com o sistema punitivo que envolve o trabalhador por completo, uma vez que o "corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso" (FOUCAULT, 2004, p. 24). A submissão do corpo, que se torna assim útil para o desenvolvimento do sistema produtivo, caminha de mãos dadas com um “complexo cientifico judiciário onde o poder de punir se apoia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade" (Ibid. p.22).

Este novo poder de julgar completamente inovador, singular e socialmente construído, passa, como demonstra Foucault, pela supressão dos suplícios corporais em castigos atuantes “profundamente sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições"

(Ibid. p.17). Resgatando Rusche e Kirchheimeir que estabeleceram a relação entre vários regimes punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam, o filósofo francês aponta a constituição de uma “escravidão civil” na qual os mecanismos punitivos passam a compor uma das formas de fornecimento de mão-de-obra suplementar. A inovação estava em colocar o sistema punitivo a serviço de correções comportamentais e atitudinais e, de quebra, fornecer força de trabalho de baixo custo.

A questão punitiva passa do sofrimento do corpo para a expiação da alma. O poder legal de punir é cada vez mais fracionado e passam a operar nesse complexo uma série de profissionais orientados para a tarefa de enquadramento legal do réu, cujas sentenças remetem a uma apreciação de normalidade e uma “prescrição técnica para uma normalização possível” (Ibid. p.20). Peritos psiquiátricos ou psicólogos, magistrados da aplicação das penas, educadores e funcionários da administração penitenciária. Suas premissas e bases epistêmicas são assentadas no longo processo de sedimentação do substrato moral que fora sendo construído paulatinamente a partir do altar e dos espaços de circulação de discursos políticos, combinando religião e enaltecimento dos empreendedores industriais, que levam a Marx ironizar tamanha glorificação do capitalista como figura indispensável:

Poderia o trabalhador, apenas com seus próprios meios corporais, criar no éter configurações do trabalho, mercadorias? Não é verdade que ele, nosso capitalista, forneceu ao trabalhador os materiais com os quais – e nos quais – ele pode dar corpo a seu trabalho? E considerando-se que a maior parte da sociedade consiste de tais pés-rapados [Habenichtsen], não prestou ele um inestimável serviço à sociedade por meio de seus meios de produção, seu algodão e seus fusos, para não falar do serviço prestado ao próprio trabalhador, a quem ele, além de tudo, ainda guarneceu dos meios de subsistência? E não deve ele cobrar por esse serviço prestado? (2013, p. 345–346).

A autoridade incondicional do coordenador é pressuposto fundamental desde as relações de poder encontradas na divisão manufatureira, legitimada no discurso de celebração da importância do capitalista como controlador necessário dos homens que constituiriam “meras engrenagens de um mecanismo total que a ele pertence” (Ibid. p. 534). Essa correlação de forças estabelece o panorama social que segrega a população entre ocupados e desocupados. Operacionaliza-se o conceito de “população ativa” (e seu par antitético “inativo”) e suas hierarquias impactam indistintamente ativos e os supostamente inativos.

Nesse contexto o impacto da coerção coletiva é profuso na subjetividade dos trabalhadores, sendo motivos de doenças físicas e psíquicas. O acesso à propriedade e aos

serviços como saúde, higiene, moradia, educação e lazer, passa a ser o leitmotiv das lutas da classe trabalhadora que, com o avanço da industrialização e das conquistas sociais, assentam as bases da constituição da identidade moderna, elaborada na dialética entre a construção de uma personalidade sensível e a noção de trabalhador produtivo e útil (BOURDIEU, 2007; SOUZA, 2012a; TAYLOR, 1997). Esses elementos combinados tornam possíveis conquistas importantes que, se não dirimem, ao menos atenuam as enfermidades causadas por um ritmo de trabalho que se distanciaria daquele compatível com a natureza humana.

Questões subjetivas importantes como a dimensão do reconhecimento social, o

status relacionado ao trabalho e os vínculos estabelecidos na participação de uma

coletividade, entram em cena quando os corpos políticos dos trabalhadores eclodem como nexus de redirecionamento de poderes que não mais podem ser desprezados e percebidos como desprezíveis pelos capitalistas. Mesmo que sob o comando do capitalista e à mercê de controles atitudinais e comportamentais cultivados coletivamente desde o início da industrialização, a segmentação da sociedade em classes e em grupos salariais cria nichos importantes de resistência. O trabalhador, transformado em consumidor, elevaria sua potência, e seu poder de compra passaria a compor uma posição estratégica na sociedade de classes. Partindo dessa ambiguidade entre sujeição e resistência que passamos à discussão das hierarquias sociais e da centralidade do salário nesse processo.