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3. O Partido dos Trabalhadores e sua concepção do Estado

3.10 A Constituinte de 1988

Antes disso, cumpre dar um breve parâmetro da Constituinte de 88, que tanto peso teve nas reflexões do PT, e que significou o pacto de transição entre o regime militar e a democracia burguesa.

Florestan Fernandes, sociólogo de grande estatura que foi deputado constituinte pelo PT em 1988, deixa claro90que não apenas a convocação da Constituinte foi feita por dentro do plano de evitar uma ruptura integral com a tutela da ditadura, mas também como foi articulada com a manutenção do Poder Executivo na figura de José Sarney, que como dissemos era ícone da ditadura e eleito indiretamente como vice na chapa de Tancredo Neves. Além disso, a Constituinte contou com a participação dos chamados senadores “biônicos”, indicados pela ditadura e sequer eleitos pela população. Diz Florestan:

90FERNANDES, Florestan. “A Constituição inacabada: vias históricas e significado político”. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

Os empresários e suas entidades corporativas agiram coletivamente: 1) para impedir uma passagem abrupta da ditadura militar para um governo democrático; 2) para que se convocasse não uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva, livre e soberana. Preferiram o penoso “acordo conservador”; a “transição lenta, gradual e segura” se viu elevada à categoria de princípio intocável, protegido pelo poder do fuzil; e se instituiu um Congresso Constituinte organicamente preso à referida forma de “transição democrática” e ao seu Estado de segurança nacional disfarçado. (FLORESTAN, 1989, 308)

Florestan Fernandes mostrava que não faltara engenho à burguesia para ir além (em sentido reacionário) da mera tutela militar, e lançara mão também de outras iniciativas para salvaguardar seus interesses de classe proprietária. Florestan chega a comparar a Constituinte de 88 com as Cartas elaboradas pelos ditadores no auge de seu poderio autoritário:

Mas isso coloca essa Constituição no mesmo nível das constituições de 1967 e 1969, manipuladas ou impostas de cima para baixo pelos ditadores militares. Há diferenças – e agudas. Dadas as proporções e a gravidade das interferências sistemáticas, elas são, apenas, diferenças de grau, não de natureza. Foi transferida para outra data a elaboração de uma constituição com vínculos orgânicos com a vontade popular (FLORESTAN, 1989, p. 317).

Florestan afirmava, corretamente, que aos trabalhadores mobilizados cabia a responsabilidade pelo caráter democrático da Constituinte, mas a entendia mais como uma infusão de democracia real (proletária) em um regime político já dominado pelo alto, do que como uma agitação revolucionária cujo interesse estratégico principal estivesse na mobilização extraparlamentar da classe trabalhadora e seus aliados. Esse ponto de vista é o que consideramos essencial para entender o significado da participação do PT na Constituinte, que o próprio Florestan Fernandes critica como tutelada pelos militares e poderes reacionários.

A Constituinte foi observada de perto, tutelada pelos próprios militares, através do controle exercido pela coalizão dos representantes do grande capital, dos latifundiários e das oligarquias regionais, o famoso “Centrão” político do período (PMDB, PFL, PTB e PDS), vários deles membros do antigo partido de apoio à ditadura, a ARENA, ou de políticos “opositores” que a mesma tolerava no antigo MDB.

O governo Sarney havia conseguido aprovar a transformação do Congresso Nacional a ser eleito em 1986 em Assembleia Constituinte composta por 559 membros, sendo 487 deputados e 72 senadores que nunca foram eleitos para a Constituinte (já ocupavam cargos em 1982), instalando-a oficialmente no dia 1

º

de janeiro de 1987. Esse Centrão, chefiado por Sarney e que representava os setores sociais mais conservadores, era a maioria na

Constituinte. Conseguiu decidir votações importantes, como a questão da reforma agrária, que manteve a distribuição desigual da terra, e o mandato presidencial, estendido para cinco anos.

A emenda Constitucional nº 26, de 17 de novembro de 1985, que convoca a Assembleia Constituinte a se reunir, exige que se faça com os deputados e senadores eleitos em novembro de 1986, somados aos senadores de 1982. Ou seja, o controle dos políticos que serviram sob a ditadura militar era visível, o que possibilitou que a Carta de 1988 carregasse a permissão constitucional para que o Exército interviesse em caso de “desordens políticas”. O que veio a fazer com a nova Constituição já promulgada, assassinando três operários em 1989 na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, Rio de Janeiro91.

Outra votação que demonstrou como esta Constituição estava atrelada à tutela do regime anterior foi a aprovação de que tudo que não fosse explicitamente revogado pela nova Constituinte, seguiria vigente. Assim, há ainda leis de segurança nacional da ditadura imbuídas na Constituinte de 1988. Até o encerramento dos trabalhos, a Assembleia Constituinte recebeu mais de 120 propostas de emendas constitucionais nas mais diversas áreas, reunindo cerca de 12 milhões de assinaturas, ignoradas em favor dos projetos de transição controlada pelos militares e os pactuários advindos da classe dominante.

Entre a esquerda, não havia qualquer representação revolucionária independente. Sob o entusiasmo com o processo de construção do PT, e a continuidade das greves que, ainda perdendo radicalização, aumentavam em número ano após ano – com o novo ciclo de greves de 1986-87, que discutimos – toda a esquerda ficou sob a égide de Lula e do PT. Lula discursava contra o Centrão, que também era atacado no V Encontro Nacional92, mas nunca

moveu a força da classe trabalhadora contra a direita com a qual sempre buscaram conciliar, como fizeram no poder.

No artigo “O PT nas Comissões”, do Boletim Nacional de maio de 198793, o petista

Márcio Araújo relata quais eram as prioridades do PT durante a preparação da Constituinte de 1988. No relato não se encontram quaisquer linhas sobre a luta dos trabalhadores em curso –

91GANDRA, Marco Aurélio Ramalho. “Cidade vermelha do aço: greves, controle operário e

poder popular em Volta Redonda (1988-89)”. Dissertação de mestrado, disponível em:

http://www.historia.uff.br/stricto/td/1345.pdf.

92Ver “Resoluções políticas”, V Encontro Nacional do PT, disponível em: https://fpabramo.org.br/csbh/wp- content/uploads/sites/3/2017/04/07-resolucoespoliticas_0.pdf.

93As restantes citações deste tópico estão reunidas na publicação “O PT e a Constituinte, 1985-1988”, da Fundação Perseu Abramo, que compila os Boletins Nacionais, entrevistas e artigos de deputados constituintes pelo PT e importantes figuras políticas da época. Disponível em: https://fpabramo.org.br/csbh/wp- content/uploads/sites/3/2017/04/08-4.perseu6.documentos.pdf.

tema que, como dissemos, estava reservado aos sindicatos, e não aos parlamentares, segundo a divisão do PT – menos ainda as críticas que pudemos encontrar em Florestan:

Depois da votação do regimento interno e da eleição da Mesa, as atenções do Congresso Constituinte voltam-se agora para os trabalhos das comissões e subcomissões, que iniciam a discussão de propostas apresentadas pelos constituintes e por entidades representativas. Até o início de junho, as comissões encaminharão os respectivos anteprojetos à Comissão de Sistematização, à qual caberá a redação definitiva do projeto de Constituição a ser votado pelo plenário da Constituinte. Com 16 deputados, a bancada do PT não pôde integrar todas as 24 subcomissões com direito a voto. Mas deverá participar apresentando propostas e acompanhando o trabalho de todas. A partir da disponibilidade de vagas nas subcomissões, nossos deputados foram distribuídos no maior número delas, considerando, sempre que possível, a área de militância de cada constituinte. A bancada do PT está representada em todas as 8 comissões, em 15 subcomissões e na Comissão de Sistematização (ARAÚJO, 1987, p. 137)

O momento era propício para vincular o debate de que tipo de democracia era necessária com a crítica estrutural dos limites impostos pela transição. Para o PT se tratou, entretanto, de melhorar a Constituinte com doses homeopáticas de “democracia”, sem a crítica fundamental de a quem serviria o regime nascente.

Na discussão das questões relacionadas com a ordem socioeconômica do país e, em especial, com o problema do regime de propriedade, resgatou-se a formulação do projeto Comparato sobre o tema da propriedade rural e urbana, apontando-se para a necessidade de combiná-la com as disposições do Documento Preliminar da Campanha Nacional pela Reforma Agrária, integrada pela Contag, CUT, CPT, Abra e outras entidades. Em ambos os casos a ênfase dada é na proteção da propriedade que tem função social, estabelecendo-se mecanismos que vão da desapropriação à expropriação das demais. (GARCIA, 1987, p. 141).

Lula também tinha a orientação de mudar a Constituinte por dentro, através da pressão das mobilizações, que não ultrapassassem os limites da transição pactuada. Em entrevista

É preciso lembrar que a composição da Constituinte é resultante de uma legislação eleitoral viciada e do peso que teve o poder econômico. Chegamos aqui sabendo que seria muito difícil a Constituinte fazer leis em benefício do povo. E quando digo isto, não digo para desanimar as pessoas, mas para alertar. Tivemos um primeiro momento em que foram elaborados vários relatórios de subcomissões contendo avanços. Mas quando chegou a hora de votar, a direita e o centro, que juntos formam maioria, se articularam e mostraram que têm objetivo definido de não deixar que haja avanços nas conquistas da classe trabalhadora e do povo. Os relatórios das comissões, com a exceção da Ordem Social, ficaram bastante conservadores, e em alguns casos como o da Ordem Econômica, pior do que a Constituição em vigor. É importante os trabalhadores terem claro que para aprovar qualquer coisa, precisamos de 280 votos, enquanto nos cálculos mais otimistas os setores progressistas atingem cerca de 160 parlamentares. Ou seja, a batalha do ponto de vista numérico é desigual demais. Entretanto, se aqui somos minoria, aí fora somos maioria no sentido de que a expectativa do povo bate

com nossas expectativas e com as denúncias que temos feito. Acho que se transformarmos essa expectativa e essa insatisfação popular em mobilização canalizada para uma forte pressão sobre a Constituinte teremos chance de mudar os rumos que ela tomou até agora. A minha esperança e o meu empenho é que até as votações de plenário, que é o fórum decisivo, estejamos mobilizados para convencer os constituintes a fazerem uma Constituição à altura dos anseios do povo. (LULA, 1987, p. 144).

Se a direita e o “Centrão” tinham claramente a maioria nas comissões constituintes, o que impedia a conclusão de que a verdadeira batalha era estimular a auto-organização dos trabalhadores e das massas em suas próprias instituições de classe, disputando sua direção através do partido, que deveria necessariamente exibir um programa de independência de classe contra o desvio da transição pactuada, denunciando a Constituinte? Lula diz que a batalha numérica era “desigual demais”. Frente à greve geral de 1986, e a onda de greves isoladas que apesar de contidas demonstravam a vontade de lutar dos trabalhadores, estava claro que a desigualdade de forças desfavorecia a burguesia, quando se olhava para fora do parlamento. Mas essa não era a conclusão de Lula e do PT, que centravam os olhos no interior da Constituinte como eixo de intervenção partidário.

Lula sintetizava uma política que, como diz em sua própria entrevista, tinha o objetivo de convencer os constituintes a fazerem uma Constituição para o povo. Significava convencer o PMDB, o PFL, o PTB, o PDS e outras forças políticas da direita e do centro, que compartilhavam os interesses da transição “lenta, gradual e segura” promovidos pelos generais e pelo empresariado, das aspirações populares. Não podemos concluir outra coisa senão a mais rudimentar expressão do cretinismo parlamentar, filho legítimo da estratégia de conciliação de classes.

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