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3. O Partido dos Trabalhadores e sua concepção do Estado

3.2 Documento de fundação: 1979-1980

Nos documentos de fundação do PT, o temário do Estado surge de forma passageira, como parte da argumentação contextual cujo objetivo é explicar as razões da constituição do PT, após a poderosa onda de greves dos trabalhadores em 1978-80. Um dos lemas era a necessidade de um partido sem patrões nem generais. Um emblema que sintetizava a necessidade de superar a política de conciliação de classes do velho PCB e o ciclo getulista, que levou ao atrelamento dos sindicatos ao estado.

Pulverizadas em pequena quantidade pelos documentos fundacionais, as menções ao Estado tem como enfoque privilegiado a defesa da independência dos sindicatos frente ao

46ABRAMO, Zilah; MAUÉS, Flamarion. “Pela democracia, contra o arbítrio: A oposição democrática, do

aparelho estatal, aparelho cuja destruição, entretanto, carece de atenção. É notório como as principais definições sobre como deverá ser o destino político brasileiro estão vinculados aos debates sobre o regime político, não sobre o Estado.

Ambos os conceitos estão relacionados, mas não são idênticos: um Estado, como instrumento de dominação de uma classe sobre outra, pode apresentar distintas formas políticas (regimes), que embora sejam veículos de transmissão do poder de uma só e mesma classe, não utilizam os mesmos métodos e não apresentam a mesma relação entre as diversas classes sociais. Assim, fica claro que a substituição do regime militar por um regime democrático burguês – embora sejam formas políticas claramente distintas em suas particularidades – não alteram o caráter social do Estado (isto é, a que classe social pertence e, portanto, a que interesses econômicos específicos responde).

À luz desta diferenciação, e observando os anais do “PT das origens”, tem marcada ênfase a ideia de que a luta por derrubar o desgastado regime militar, se coroada pelo êxito, levaria por si só à “alternativa de poder econômico e político”, divorciado das tarefas que deveriam encarar os trabalhadores diante do Estado burguês – que nesse momento, frente à debilidade da ditadura, também embaralhava alternativas para que não fosse derrubada pelas greves em curso.

Se a substituição do regime militar pelo regime democrático burguês fosse suficiente para estabelecer uma “alternativa de poder econômico e político”, qual a necessidade de precaver-se do risco assinalado por Marx, de “não limitar-se a se apossar da máquina de

Estado tal como se apresenta e servir-se dela para seus próprios fins”? A leitura dos

documentos do período de 1979-80 (antes mesmo de adentrar nos Encontros Nacionais do PT, a partir de 1981) já indicam que não havia a preocupação programática em determinar a necessidade da destruição da máquina estatal da burguesia brasileira, fruto da conquista do poder por meio de uma revolução dos trabalhadores, como condição de sua substituição por um Estado de novo tipo, da classe trabalhadora. Voltaremos a esse tema adiante.

Em documento programático, lançado a 1º de junho de 1980, no momento de fundação do PT47, diz-se que

47No “Programa” de lançamento do PT, diz-se que “Após vários anos de resistência democrática, o fato mais novo vivido pela sociedade brasileira é a grande luta das massas trabalhadoras, em anos recentes, pela conquista de melhores condições de vida para amplos setores da população brasileira das cidades e dos campos. A prática dessas lutas – que a Ditadura não conseguiu impedir – criou as condições para os primeiros passos na ruptura de alguns dos principais mecanismos repressivos em que se apoiou o regime de 1964: arrocho salarial e a proibição do direito de greve. Foi com o desenvolvimento dessas lutas que surgiu o PT, pois tendo de enfrentar o peso brutal da concentração de poder do Estado, que se voltou abertamente contra os seus mais legítimos interesses, tornou-se claro para os trabalhadores que só a sua luta econômica, ainda que muito importante, é insuficiente para garantir as aspirações de melhoria de vida para a maioria do povo brasileiro. Provocando uma série de

O PT nasce numa conjuntura em que a democracia aparece como uma das grandes questões da sociedade brasileira. Para o PT, a luta democrática concreta de hoje é a de garantir o direito à livre organização dos trabalhadores em todos os níveis. Portanto, a democracia que os trabalhadores propõem tem valor permanente, é aquele que não admite a exploração econômica e a marginalização de muitos milhões de brasileiros que constroem a riqueza do País com o seu trabalho. A luta do PT contra o regime opressivo deve construir uma alternativa de poder econômico e político, desmantelando a máquina repressiva e garantindo as mais amplas liberdades para os trabalhadores e oprimidos que se apóiem na mobilização e organização do movimento popular e que seja a expressão de seu direito e vontade de decidir os destinos do País. Um poder que avance nos rumos de uma sociedade sem exploradores e explorados [grifo nosso]. (PROGRAMA)

Em seguida, argumenta que

Lutamos pela construção de uma democracia que garanta aos trabalhadores, em todos os níveis, a direção das decisões políticas e econômicas do País. Uma direção segundo os interesses dos trabalhadores e através de seus organismos de base [...] Somente a participação política unificada e seu direcionamento contra o atual regime permitirão transformar a infinidade de movimentos que vêm se desenvolvendo nos últimos anos em uma força verdadeiramente expressiva em nossa sociedade [...] Vale lembrar que os trabalhadores cresceram em sua capacidade de organização na resistência e no combate à consolidação do atual regime. Agora, com seu partido, avançam para superar este regime. Neste sentido, o Partido dos Trabalhadores já é uma conquista democrática e instrumento de avanço democrático da sociedade brasileira [grifo nosso]. (PROGRAMA)

O realce do enfoque, que incide na luta contra o regime político militar, divorciada do problema estatal, não exclui uma posição sobre a questão do poder. Na “Tese de Santo André- Lins”, aprovada em 24 de janeiro de 1979 no IX Congresso dos Trabalhadores Metalúrgicos, Mecânicos e de Material Elétrico do Estado de São Paulo48, reconhece-se que, enquanto o capitalismo mantiver-se como sistema econômico dominante, “terá como fim último o lucro, e para atingi-lo utiliza todos os meios: da exploração desumana de homens, mulheres e crianças até a implantação de ditaduras sangrentas para manter a exploração”49. Nestas

confrontos com os legítimos instrumentos de luta dos trabalhadores, como no caso das intervenções sindicais, a ação repressiva do Estado provocou o impasse e levou grandes massas de trabalhadores a perceberem a necessidade de intervir organizadamente na sociedade, em condições próprias e com um projeto político próprio. A ideia do Partido dos Trabalhadores surgiu com o avanço e o fortalecimento desse novo e amplo movimento social que, hoje, se estende das fábricas aos bairros, dos sindicatos às comunidades eclesiais de base: dos Movimentos contra a Carestia às associações de moradores; do Movimento Estudantil e de intelectuais às associações profissionais; do movimento dos negros ao movimento das mulheres, e ainda outros como os que lutam pelos direitos das populações indígenas”.

48“Tese de Santo André-Lins”. 49Idem.

condições, enquanto os patrões estiverem à frente dos governos, “estará colocada na ordem do dia a luta política e a necessidade da conquista do poder político”.

A história nos mostra que o melhor instrumento com o qual o trabalhador pode travar esta luta é o seu partido político. Por isso, os trabalhadores têm que organizar os seus partidos que, englobando todo o proletariado, lutem por efetiva libertação da exploração. Hoje, diante da atual conjuntura política, econômica e social que vive a sociedade brasileira, essa necessidade, com o peso de sua importância, se faz sentir [...] Combinam-se, portanto, a necessidade da construção de independência política dos trabalhadores com a necessidade de um instrumento de luta pela conquista do poder político [grifo nosso]. (TESE DE SANTO ANDRÉ-LINS)

Na “Carta de Princípios” do PT50, lançada a 10 de maio de 1979 – quatro meses depois

da “Tese de Santo André-Lins” – as razões que justificam a fundação de um partido que organize os trabalhadores estão vinculadas à questão do poder

O Partido dos Trabalhadores denuncia o modelo econômico vigente, que, tendo transformado o caráter das empresas estatais, construídas pelas lutas populares, utiliza essas empresas e os recursos do Estado, em geral, como molas mestras da acumulação capitalista. O Partido dos Trabalhadores defende a volta das empresas estatais à sua função de atendimento das necessidades populares e o desligamento das empresas estatais do capital monopolista. O Partido dos Trabalhadores entende que a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores, que sabem que a democracia é participação organizada e consciente e que, como classe explorada, jamais deverá esperar da atuação das elites privilegiadas a solução de seus problemas [...] Afirma, outrossim, que buscará apoderar-se do poder político e implantar o governo dos trabalhadores, baseado nos órgãos de representação criados pelas próprias massas trabalhadoras com vistas a uma primordial democracia direta [grifo nosso]. (CARTA DE PRINCÍPIOS)

É possível constatar, na leitura destes distintos documentos, que a referência explícita à questão da “conquista do poder” vai empalidecendo com os meses, desde a “Carta de Princípios” de maio de 1979 até o “Programa e Plano de Ação” do PT, de junho de 1980 (em outras palavras, desde os documentos “pré-PT” até os documentos fundacionais). No ato que aclama o “Manifesto de Lançamento” do PT, a 10 de fevereiro de 1980 no Colégio Sion/SP51,

já não se declara explicitamente este objetivo; entretanto, menciona-se a intenção de um “Estado dirigido pelas massas trabalhadoras”.

Os trabalhadores querem a independência nacional. Entendem que a Nação é o povo e, por isso, sabem que o País só será efetivamente independente quando o Estado for dirigido pelas massas trabalhadoras. É preciso que o 50“Carta de Princípios”, 10 de maio de 1979, disponível em: https://fpabramo.org.br/csbh/wp- content/uploads/sites/3/2017/04/02-cartadeprincipios_0.pdf.

51“Manifesto de Lançamento” do PT, 10 de fevereiro de 1980, disponível em: http://fpabramo.org.br/csbh/wp- content/uploads/sites/3/2017/04/01-manifestodelancamento_0.pdf.

Estado se torne a expressão da sociedade, o que só será possível quando se criarem as condições de livre intervenção dos trabalhadores nas decisões dos seus rumos. (MANIFESTO DE LANÇAMENTO)

Entretanto, em seguida, o mesmo documento interpreta essa ideia da seguinte forma: “Por isso, o PT pretende chegar ao governo e à direção do Estado para realizar uma política democrática, do ponto de vista dos trabalhadores, tanto no plano econômico quanto no plano social”52.

Isso nos leva a um ponto nevrálgico. Não obstante a importante menção à conquista do poder político, não é secundário o fato de que, de hábito, essa afirmação esteja solenemente separada de um esclarecimento teórico-político sobre as funções do Estado, sua concepção de classe e as tarefas da classe trabalhadora diante dessa “máquina despótica”. Não seria um acidente conceitual a identificação da ideia de um “Estado dirigido pelas massas trabalhadoras” com a noção da chegada do PT ao governo.

Inexistente a ideia da “quebra da máquina burocrática” do Estado, ato seguido era separar a noção da “conquista do poder” – por mais vaga que fosse essa noção desde a Tese de Santo André-Lins – da revolução violenta contra o poder concentrado dos exploradores53.

Vemos aqui o gérmen conceitual da identificação entre “conquista do poder pelos trabalhadores” com a chegada pacífica ao governo pelo PT, o que de fato significava a negação tout court da conquista do poder pela classe trabalhadora.

Se de janeiro a maio de 1979, os documentos que estabeleceriam os alicerces da fundação do PT no ano seguinte frisavam a necessidade do partido “para a conquista do poder político” (sem especificar exatamente o que isso significava), a partir da fundação do PT em 1980 a relação estabelecida entre “partido-objetivos” começa a se modificar: o eixo é transferido à luta “por uma nova democracia”, em pleno governo Figueiredo.

52Idem.

53Em sua batalha teórica contra Karl Kautsky, expoente ideológico da Socialdemocracia alemã, sobre a concepção do Estado no marxismo, Lênin apresenta um argumento muito útil para nosso projeto. Separando a sofisticação de Kautsky da revisão aberta do programa marxista encabeçada por Eduard Bernstein – que concebia o Estado como “órgão de conciliação de classes” – Lênin entretanto afirma “Em Kautsky, a

deformação do marxismo é muito mais sutil. ‘Teoricamente’, não nega que o Estado seja o órgão de dominação de uma classe, nem que as contradições de classe sejam inconciliáveis; mas, omite ou obscurece o seguinte: se o Estado é o produto do caráter inconciliável das contradições de classe, se é uma força superior à sociedade, ‘afastando-se cada vez mais da sociedade’, é claro que a libertação da classe oprimida só é possível por meio de uma revolução violenta e da supressão do aparelho governamental criado pela classe dominante e que, pela sua própria existência, ‘se afasta’ da sociedade. Esta conclusão teoricamente clara por si mesma, tirou-a Marx, com inteira precisão, como adiante veremos, da análise histórica concreta dos problemas da revolução. E foi precisamente essa conclusão que Kautsky ‘esqueceu’ e desvirtuou, como demonstraremos detalhadamente no decurso da nossa exposição”. (LÊNIN, 2013, p. 129).

3.3 I e II Encontros Nacionais do PT: qual socialismo, que tipo de conquista do poder?

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