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Lava Jato: substituir um esquema de corrupção por outro

5. O golpe institucional

5.4 Lava Jato: substituir um esquema de corrupção por outro

As primeiras investigações da já renomada “Operação Lava Jato” se iniciaram em 2014, ainda no primeiro mandato de Dilma Rousseff. Sua inspiração declarada foi a “Operazione

Mani Pulite”189(Operação Mãos Limpas) na Itália, durante a década de 1990.

A despeito da fama de combate à impunidade, o saldo da Operação “Mãos Limpas” italiana não foi edificante: apesar do imenso corpo documental de 1,3 milhão de páginas, 3200 pessoas julgadas, duas mil e quinhentas condenações, no ano 2000 apenas 4 pessoas estavam presas190. Todos os quatro partidos no governo em 1992, a Democracia Cristã (DC), o Partido Socialista Italiano (PSI), o Partido Social-Democrata Italiano e o Partido Liberal Italiano, desapareceram posteriormente. Em seu lugar, emergiu o partido da direita Liga Norte, liderado por ninguém menos que Sílvio Berlusconi, inequivocamente ligado à máfia italiana.

Com este predecessor destituído de grande nobreza, a Operação Lava Jato foi fiel à Operação que a inspirou. Seu líder, Sérgio Moro, foi agraciado por Bolsonaro com o superministério da Justiça e da Segurança Pública, uma espécie de recompensa pelos serviços prestados. Diante de um Congresso mergulhado em escândalos de corrupção, substituiu seletivamente um esquema de corrupção por outro, após ajudar a instalar Michel Temer na presidência através do golpe institucional. Após deixar de investigar apenas o PT, e ser obrigada a enveredar o caminho de inquéritos contra seus antigos aliados, preservou intacta uma ampla gama de políticos comprovadamente envolvidos em esquemas de corrupção.

Através do Ministério Público Federal, a Polícia Federal e a Procuradoria-geral da República, a Lava Jato (comandada de Curitiba pelo juiz federal da 13ª Vara, Sérgio Moro, e de Brasília, na 10ª Vara Federal Criminal) se tornou um mecanismo para dirimir disputas entre frações da classe dominante utilizando métodos que já são generalizados na repressão dos moradores das periferias e favelas do país: prisão preventiva por tempo indeterminado, depoimento coercitivo, busca e apreensão, escutas ilegais. Esses são os métodos que tornaram

189Inicialmente denominada “Operação Tangentopoli”, em português “cidade do suborno”, ou “cidade da propina”, termo cunhado por Piero Colaprico, cronista do jornal La Repubblica, referindo-se à cidade de Milão.

190Antonio Di Pietro, principal magistrado da Operação Mãos Limpas na Itália, disse em entrevista que “[...]

falar em sucesso da Operação Mãos Limpas não corresponde à verdade. Em 2000, dentre todos os condenados, apenas quatro pessoas haviam sido presas e cumpriam penas definitivas. Mais de 40% dos processos contra parlamentares foram anulados porque o Parlamento manteve a imunidade de seus pares, e outros tantos porque Berlusconi criou e alterou leis que resultaram na anistia de acusados ou na prescrição de crimes”. Entrevista

a Lava Jato e Sérgio Moro191, no início da investigação, “heróis nacionais”. São também os métodos que sustentam um sistema jurídico e carcerário onde 40% dos presos (em sua maioria, negros e pobres) estão atrás das grades há anos sem qualquer condenação.

O Wikileaks, sítio eletrônico especializado em vazamentos de documentos secretos do governo dos Estados Unidos, revelou o informe enviado ao Departamento de Estado norte- americano do seminário de cooperação, chamado “PROJETO PONTES: construindo pontes para a aplicação da lei no Brasil”192, em que se tratava de consolidar treinamento bilateral de aplicação das leis e habilidades práticas de contraterrorismo. Promotores e juízes federais dos 26 estados brasileiros participaram do treinamento, além de 50 policiais federais de todo o país. Realizado em outubro de 2009, contou com a presença de membros seletos da PF, Judiciário, Ministério Público, e autoridades norte-americanas, no Rio de Janeiro. Entre eles, se encontrava o juiz Sérgio Moro. O seminário versou, segundo o próprio documento filtrado, sobre o “combate à lavagem de dinheiro”, um motivo largamente utilizado pelos Estados Unidos para justificar sua intervenção política em outros países.

191“A lição a ser aprendida, aqui já é exposta, é que a superação da corrupção sistêmica exige uma

conjugação de esforços das instituições e da sociedade civil democrática, sendo a ação da Justiça uma condição necessária, mas não suficiente (...) o relato histórico do ocorrido, verdadeira novela de um estonteante sucesso judicial, seguido de frustrações decorrentes do sistema político, oferece uma aula acerca do funcionamento de uma democracia moderna, em uma sociedade de massas, e as possibilidades e as limitações dela no enfrentamento da corrupção sistêmica”, escreve o próprio Moro, em “Operação Mãos Limpas: a Verdade sobre a operação italiana que inspirou a Lava Jato” (Porto Alegre: CDG, 2016, p. 9). Aula de

“democracia moderna” que se faz através de escutas ilegais, prisões preventivas por tempo indeterminados e buscas sem mandado, métodos aprendidos com a repressão cotidiana à população negra e pobre.

192“BRAZIL: ILLICIT FINANCE CONFERENCE USES THE "T" WORD, SUCCESSFULLY”, Wikileaks, disponível em: https://wikileaks.org/plusd/cables/09BRASILIA1282_a.html. Sem detalhes particulares sobre a exposição do chefe da "República de Curitiba", o informe mostra que houve acalorados debates em que a equipe de treinamento estadunidense, virtuoso na patifaria, ensina os pupilos brasileiros e estrangeiros os segredos da "investigação e punição nos casos de lavagem de dinheiro, incluindo a cooperação formal e informal entre os

países, confisco de bens, métodos para extrair provas, negociação de delações, uso de exame como ferramenta, e sugestões de como lidar com Organizações Não Governamentais (ONGs) suspeitas de serem usadas para financiamento ilícito". O relatório se conclui com a ideia de que “o setor judiciário brasileiro claramente está muito interessado na luta contra o terrorismo, mas precisa de ferramentas e treinamento para empenhar forças eficazmente. [...] Promotores e juízes especializados conduziram no Brasil os casos mais significativos envolvendo corrupção de indivíduos de alto escalão”. Qualquer conhecedor das formas que os organismos de

inteligência e o Departamento de Estado dos Estados Unidos utilizam para intervir em outros países não deixará de reconhecer nos “cursos contra a lavagem de dinheiro” um expoente desse expediente intervencionista. Não admira que, durante estes últimos anos, a cooperação com os Estados Unidos, e mesmo sem ela, tenha incrementado o conhecimento do Judiciário e do Ministério Público acerca dos principais casos de corrupção no país. Se damos crédito ao informe, aos juristas e promotores brasileiros pouco importava a desconsideração vinda do norte, contanto que “consentissem em ensinar as novas ferramentas, que estão ansiosos em aprender”. Duas metades se completavam. Como dizia o russo Tchernichevsky, um fósforo é frio, assim como o lado de fora da caixa em que é riscado, mas juntos produzem o fogo que aquece a humanidade. Essa é a síntese das relações entre os Estados Unidos e o Poder Judiciário brasileiro.

Mas não apenas de relações duvidosas com o Departamento de Estado norte-americano se construiu a Lava Jato. A Operação poupou grandes monopólios privados estrangeiros nos escândalos da Petrobrás, escolhendo blindar a área mais rica da empresa: a área de Exploração e Produção (das plataformas) onde se encontraria o papel da estadunidense Halliburton, da sueca Skanska e a francesa Technip, empresas prestadoras de serviços de engenharia petrolífera que nunca foram investigadas e alvo de conduções coercitivas.

Isso indica o favorecimento de interesses privados oriundos de fora das fronteiras brasileiras. Basta observar os monopólios estrangeiros beneficiados pelas “investigações” de Moro. As petroleiras estadunidenses Exxon Mobil, Chevron, a anglo-holandesa Royal Dutch Shell, a francesa Total, e as chinesas China National Petroleum Corporation (CNPC) e China National Offshore Oil Corporation (CNOOC), para citar as maiores, estão envolvidas não apenas nas negociações de entrega do pré-sal, mas na aquisição de porções da Petrobrás. Sérgio Moro não investigou qualquer uma das multinacionais que controlam a operação de navios-sonda ou as operações nas plataformas, como a já citada Halliburton, a Schlumberger e a Transocean.

Fruto da quebra do cartel das empreiteiras, distintas companhias estrangeiras estão se beneficiando com a Lava Jato para entrar nos ramos estratégicos da infraestrutura brasileira, como o fundo de investimentos estadunidense-canadense Brookfield: este gigante das finanças comprou a mais importante rede de gasodutos da Petrobrás (Nova Transportadora do Sudeste) e a maior companhia privada de distribuição, captação e tratamento de água (Odebrecht Ambiental). A subsidiária brasileira do conglomerado portuário DP World (sediado em Dubai) negocia a compra, das mãos da Odebrecht, do terminal de contêineres da Embraport, em Santos. A companhia alemã Fraport aposta em conseguir os aeroportos de Porto Alegre e de Fortaleza193.

Por sua vez, a China adquiriu numerosos ativos de infraestrutura no setor da energia elétrica, através de suas companhias estatais State Grid, Shanghai Electric, Huaneng e China Southern Power Grid.

193O jornal britânico Financial Times realizou um dossiê sobre o Brasil, “Brazil: the Road Ahead”, versando sobre a importância do capital estrangeiro turbinar a infraestrutura nacional, elencando algumas das principais empresas e fundos de investimento a já adentrar os mercados brasileiros. “Depois do grande cartel da construção civil ter sido quebrado, novos atores, pequenas empresas e investidores resistentes estão identificando potencial nos projetos”. Ver aqui, https://www.ft.com/reports/brazil-road-ahead.

Grandes empresas nacionais, como a Odebrecht194e a JBS-Friboi, comprovadamente envolvidas em desvios de verbas e compra de medidas provisórias no Congresso, tem os seus patrimônios bilionários intocados pelo Ministério Público Federal, a Procuradoria-geral da República e o Supremo Tribunal Federal. Sequer passa pelo debate destas instituições que “zelam pela justiça” a expropriação sem indenização de todos os bens dos Batista e dos Odebrecht e sua inversão nos serviços públicos como saúde, transporte e educação, hoje atacados pela PEC55 de Michel Temer.

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