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O “socialismo petista” e o Governo Democrático Popular

3. O Partido dos Trabalhadores e sua concepção do Estado

3.13 O “socialismo petista” e o Governo Democrático Popular

Nossa intenção desde o início deste capítulo foi identificar a ausência de um sentido dos

fins na discussão do PT já nos seus documentos de fundação, tendo como eixo ordenador a

inexistência de um debate sobre a natureza e as funções do Estado capitalista. Mostramos como a compreensão confusa do PT acerca do Estado não podia estar mais afastada da teoria marxista do Estado. No decorrer do capítulo assinalamos algumas das falhas teóricas de origem que deram substância à ideia – que se tornou basilar na concepção do PT – de que a “conquista do poder” pelos trabalhadores coexistia com a manutenção do Estado capitalista, e se reduzia a nada mais que a chegada do PT ao Legislativo e ao Executivo pela via eleitoral.

Fazendo o percurso de 1979 a 1989 – dos documentos pré-PT, com a Carta de Santo André-Lins, até o VI Encontro Nacional do partido – fica patente que a inexistência do debate sobre as tarefas do PT diante da máquina de Estado existente (mesmo em documentos que reivindicavam a independência de classes, como o de 1979), fomentava a visão da tomada do poder como procedimento institucional e pacífico, sem a revolução dos trabalhadores. Um tema tão caro ao marxismo – e apreendido mediante experiências históricas do proletariado mundial – quanto a destruição do velho aparato de Estado burguês nunca figurou como objetivo para o partido que teve seu berço nas greves de São Bernardo do Campo contra a ditadura militar.

Sem a intenção de passar em revista toda a década de 1990, nos interessa apenas avaliar o documento “O socialismo petista”, aprovado no VII Encontro Nacional de 1990, como consolidação das teses anteriores, em que a luta por reformas estava rigorosamente divorciada da preparação revolucionária pela derrubada do Estado capitalista.

No VII Encontro Nacional, realizado no Anhembi em São Paulo, entre maio e junho de 1990, um dos principais documentos aprovados intitula-se “O socialismo petista”115. Trata-se

de sintetizar as razões de existência do PT desde as lutas durante a ditadura militar. Complacente com o ecletismo teórico, faz gala de que o PT não tem filosofia oficial, e se

115“O socialismo petista”, VII Encontro Nacional do PT, 1990, disponível em: https://fpabramo.org.br/csbh/wp-content/uploads/sites/3/2017/04/04- osocialismopetista.pdf.

compõe de um intrincado rejunte de cosmovisões que coexistem: “o cristianismo social, marxismos vários, socialismos não-marxistas, democratismos radicais e doutrinas laicas de revolução comportamental”116. O deslustre da teoria para a direção partidária – que levou em

perspectiva a resultados catastróficos – aparecia, da mesma maneira, ao afirmar como mérito que a maior parte dos petistas era anticapitalista “antes por descoberta empírica do que teórica”. Essa frágil manta doutrinária foi sempre a fonte da inominável confusão com que o PT tentava, sem sucesso, explicar o que reconhecia como “socialismo”.

Frisando o pluralismo e a liberdade interna defendida pelo partido, o documento resume dessa maneira a vocação máxima do PT: “A democracia tem para o PT um valor estratégico”.

Na raiz do nosso projeto partidário está, justamente, a ambição de fazer do Brasil uma democracia digna desse nome. Porque a democracia tem, para o PT, um valor estratégico. Para nós, ela é, a um só tempo, meio e fim, instrumento de transformação e meta a ser alcançada. (O SOCIALISMO PETISTA)

Vimos essa mesma ideia na elaboração de Carlos Nelson Coutinho, e aqui fica registrado como a meta final clara do PT: a democracia “em geral”. O caráter amorfo de sua noção de socialismo se subordinava “oficialmente” a esse objetivo, igualmente amorfo. Exatamente quando defender os direitos democráticos, e em especial as conquistas históricas dos trabalhadores, implicava questionar o conjunto do sistema capitalista.

É quase inevitável lembrar da maneira clara com que Lênin abordava a questão da democracia numa sociedade ainda dividida em classes sociais antagônicas, em polêmica com Kautsky:

É compreensível que um liberal fale de “democracia” em termos gerais. Mas um marxista jamais deixará de perguntar: “Para que classe?”. Todos sabem por exemplo – e o “historiador” Kautsky também o sabe – que as sublevações e a grande efervescência entre os escravos na antiguidade revelaram imediatamente que o Estado antigo era em essência uma ditadura dos proprietários de escravos. Esta ditadura abolia a democracia entre os proprietários de escravos e para eles? Todos sabem que não [...] É evidente que não podemos falar de “democracia pura” enquanto existam diferentes classes; só podemos falar de democracia de classe. A democracia pura é a frase mentirosa de um liberal que trata de enganar os operários. A história conhece a democracia burguesa, que substitui o feudalismo, e a democracia proletária, que substitui a democracia burguesa.

Dessa reflexão de enorme envergadura teórica e política, surge que, como forma de Estado, a impossibilidade de uma “democracia pura” como objetivo torna igualmente

impossível falar da democratização de um suposto “Estado popular” que incorporasse as

grandes massas na vida política. Sobre isso, Engels117é igualmente penetrante:

Como, portanto, o Estado é uma instituição meramente transitória, que se utiliza na luta, na revolução, para submeter pela violência os adversários, é um absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado seguir necessitando do Estado, não o necessitará no interesse da liberdade, mas para dominar seus adversários, e tão cedo se torne possível falar de liberdade, o Estado enquanto tal deixará de existir.

Sem negar a possibilidade de reformas, o marxismo não gera ilusões na estratégia ilusória da democratização do Estado como objetivo em si mesmo: as reformas são subproduto da preparação da luta revolucionária por derrubá-lo.

À luz dessa reflexão, é notável a conclusão política – agora literal – que se extrai do objetivo da “democracia em geral” como fim em si mesmo, no que respeita à tarefa frente ao Estado. Em uma tentativa curiosa de polemizar com a socialdemocracia europeia, o documento registra que:

Muitos dos desafios aparentemente conjunturais – a reforma do Estado, por exemplo, ou a luta pela democratização da propriedade fundiária – só podem ser de fato equacionados e superados à luz de maiores definições estratégicas. [...] As correntes socialdemocratas não apresentam, hoje, nenhuma perspectiva real de superação histórica do capitalismo. Elas já acreditaram, equivocadamente, que a partir dos governos e instituições do Estado, sobretudo o Parlamento, sem a mobilização das massas pela base, seria possível chegar ao socialismo. Confiavam na neutralidade da máquina do Estado e na compatibilidade da eficiência capitalista com uma transição tranquila para outra lógica econômica e social. Com o tempo, deixaram de acreditar, inclusive, na possibilidade de uma transição parlamentar ao socialismo e abandonaram não a via parlamentar mas o próprio socialismo. O diálogo crítico com tais correntes de massa é, com certeza, útil à luta dos trabalhadores em escala mundial. Todavia o seu projeto ideológico não corresponde à convicção anticapitalista nem aos objetivos emancipatórios do PT [grifo nosso]. (O SOCIALISMO PETISTA)

A polêmica com a socialdemocracia não parece bem posta. A socialdemocracia da II Internacional justificou sua traição à classe trabalhadora precisamente com a ideia da "transição parlamentar ao socialismo", primeiro com Eduard Bernstein e depois com Karl Kautsky, no final do século XIX e início do século XX. De fato, ao delimitar-se da noção do "socialismo real", criticando diversos dos trejeitos mais reacionários dos regimes controlados pela burocracia stalinista, o PT não retorna à experiência de Outubro de 1917, mas à doutrina socialdemocrata da democratização do Estado118. De te fabula narratur119.

117Carta de Friedrich Engels a August Bebel, 28 de março de 1875, disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/03/28.htm.

Ademais, o problema central é ocultar a estratégia parlamentarista do PT atrás de uma crítica sem conhecimento de causa à socialdemocracia. Segundo lógica do documento, com o cuidado do partido em apoiar-se na “mobilização das massas pela base”, seria possível chegar ao socialismo “a partir do Governo e das instituições do Estado”. A crítica à socialdemocracia se reduz a que esta divorciou a ocupação de cargos estatais da pressão social através de mobilizações. Se a acusação é legítima, a conclusão de que o socialismo viria da pressão das bases por reformas no Estado não torna as coisas melhores.

Sobre estas bases, saber o que o PT entendia por socialismo em 1990 – problema em virtude do qual a base do partido criticava a direção por não o definir com clareza – não era desafio simples. A epítome do “socialismo petista” ganha este parágrafo simbólico:

Para nós, o socialismo é um projeto humano cuja realização é impensável sem a luta consciente dos explorados e oprimidos. Um projeto que, por essa razão, só será de fato emancipador na medida em que o concebemos como tal: ou seja, como necessidade e ideal das massas oprimidas, capaz de desenvolver uma consciência e um movimento efetivamente libertários. Daí porque recuperar a dimensão ética da política é condição essencial para o restabelecimento da unidade entre socialismo e humanismo. (O SOCIALISMO PETISTA)

Um ideal libertário para recuperar a unidade entre socialismo e humanismo. Como vemos, o empirismo não levou apenas a filosofia inglesa ao caminho do conservadorismo político.

Sucede que, ainda que seja impensável a fundação do PT sem levar em consideração o ascenso do proletariado brasileiro no ABC paulista, na década de 1970, tampouco se podem compreender as bases programáticas e estratégicas deste partido sem ter em conta algumas ideias predominantes nas “esquerdas” latino-americanas: a substituição do socialismo pela “radicalização da democracia”; a substituição da classe trabalhadora como sujeito revolucionário por formas diversas de “sujeitos populares”; a transformação do conceito de

118Um dos itens do documento “Por um governo democrático-popular”, aprovado no VIII Encontro Nacional do PT, realizado em Brasília em junho de 1993, se chama “Democratizar o Estado”, com as indicações correspondentes: “Devemos incorporar à campanha eleitoral de 1994 a defesa das seguintes medidas:

proporcionalidade estrita no sistema eleitoral (a cada eleitor um voto de igual valor, assegurada a representação de cada Estado); a rejeição de barreiras elevadas para o reconhecimento dos partidos e a presença dos seus deputados no Parlamento; adoção de legislação que fortaleça os partidos (fidelidade partidária e perda de mandato); eleição por lista partidária; democratização da propriedade e do acesso aos meios de comunicação de massa; investigação rápida e punição rigorosa de todos os envolvidos em crimes de corrupção; democratização e controle externo do Judiciário; democratização das Forças Armadas; combate à ideologia da segurança nacional; garantia dos direitos sindicais e da livre organização dos trabalhadores nas empresas; regulamentação dos itens da Constituição de 1988 que viabilizam a prática do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular na proposição de leis”. Disponível em: https://fpabramo.org.br/csbh/wp- content/uploads/sites/3/2017/04/04-porumgovernodemocratico.pdf.

hegemonia da classe operária em uma conformação de alianças policlassistas com um verniz socialdemocrata, separada da estratégia revolucionária diante do problema do Estado.

Não é casual que os cultores destas ideias tenham encontrado no PT um paradigma de “construção hegemônica”, e cheio de promessas quanto às possibilidades de gerar uma mudança próxima ao socialismo nos marcos da democracia capitalista.

Um autor argentino radicado no Brasil, Raúl Burgos, tentando demonstrar a presença de temáticas gramscianas nas “esquerdas” aggiornadas da América Latina120, assinalava, a

propósito do PT:

O 1º Congresso será um momento importante da discussão coletiva onde se chega a uma síntese significativa sobre a questão do socialismo e sobre o tema da estratégia para conquistá-lo, que continuam vigentes até hoje. As resoluções do Congresso caracterizam o tipo de estratégia adotada como uma estratégia com ‘ênfase na disputa de hegemonia’ [...] e o lugar destacado que este conceito alcançou na definição do PT fica claro nas colocações de duas seções fundamentais das resoluções intituladas ‘O papel central da disputa de hegemonia’ e ‘A disputa de hegemonia hoje’, onde são desenvolvidos os conteúdos desta estratégia. (BURGOS, 1997)

Sobre as ações no nível do Estado, diz o documento citado por Burgos, aprovado no 1º Congresso do PT em 1991121:

A ação de governo que o PT exerce hoje deve ser vista como um elemento decisivo na construção de nossa hegemonia, já que se trata de governar, executar políticas e democratizar o Estado, acionar a participação e o controle popular, conviver e interatuar com outros setores, segmentos e classes sociais, exercer de fato o direito à hegemonia, legitimada nas urnas, ainda que seja por ora em nível municipal [...] Em resumo, disputar hegemonia hoje significa construir um enorme movimento social por reformas em nosso país, essencial para viabilizar um caminho alternativo de desenvolvimento, que tenha entre suas principais características a incorporação da cidadania e do trabalho, de milhões de marginalizados e deserdados sociais existentes no Brasil. (BURGOS, 1997)

Deixando de lado qualquer interpretação “leninista” da questão da hegemonia, o PT passou a propor uma “hegemonia” como forma de lutar pelo socialismo “dentro da democracia”, ou seja, uma hegemonia que não se orientava a fazer a revolução socialista contra o Estado capitalista, mas limitar-se a reformá-lo – o que em toda a história do século XX auxiliou o represtígio da hegemonia burguesa.

120Raúl Burgos, “La interferencia gramsciana en la producción teórica y política de la izquierda

latinoamericana”. Documento preparado para o Encontro da Latin American Studies Association, Continental

Plaza Hotel, Guadalajara, México, em abril de 1997. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/lasa97/burgos.pdf .

121Sobre este Congresso, ver acervo da Fundação Perseu Abramo, disponível em: https://fpabramo.org.br/csbh/encontros-nacionais-do-pt-resolucoes/.

Não obstante, a construção supostamente “hegemônica” do PT terminou se transformando, depois de chegar ao poder, segundo Massimo Modonesi122, em um

“conservadorismo reformista moderado” que, enquanto com o Bolsa Família e a criação de 10 milhões de empregos garantia certa melhoria nas péssimas condições de vida de um setor significativo da população brasileira, atuava como um “gendarme espetacular do capital” para garantir os negócios do empresariado, como expressa Ricardo Antunes123.

122Massimo Modonesi, “Horizontes Gramscianos: Estudios en torno al pensamiento de Antonio Gramsci”, disponível em: https://massimomodonesi.files.wordpress.com/2014/04/modonesi-horizontes-gramscianos.pdf.

123Ver entrevista de Ricardo Antunes à revista Ideias de Esquerda, disponível em:

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