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Capítulo 2 O LIVRO DIDÁTICO E A CRIANÇA

2.1 A construção da infância

No senso comum cultiva-se uma imagem da infância como sendo a melhor fase da vida, onde o tempo passa devagar, o dia é permeado de alegria e diversão, sem as preocupações ou angústias do mundo adulto. Porém basta uma breve reflexão, ou melhor, uma recordação do que é visto nos noticiários, para esta visão de mundo encantado, perfeito e feliz desmoronar. A infância é vivida de modo diferente por diferentes tipos de crianças.

A valorização que se tem hoje da infância e o reconhecimento da criança como sujeito social despertou o interesse de diferentes áreas e fez com que se tornasse objeto de estudo, constituindo um campo temático de natureza interdisciplinar.

Ao investigar os significados da palavra infância, de acordo com os dicionários da língua portuguesa vê-se que a palavra diz respeito ao período de crescimento, no ser humano, que vai do nascimento à puberdade. Já para o Estatuto da Criança e do Adolescente é considerada criança a pessoa até os doze anos incompletos. Etimologicamente a palavra infância vem do latim infantia e refere-se à incapacidade de falar.

Porém, a idade cronológica não é suficiente para caracterizar a infância. Ariès (1981) a situa como produto da história moderna, firmando-se como uma categoria social construída recentemente na história da humanidade. Para o autor, o sentimento da infância, que corresponde à consciência da particularidade infantil, isto é, o que distingue a criança do adulto, não existia na sociedade medieval. A criança não era percebida com necessidades diferentes das do adulto. Assim que adquiria uma certa independência de sua mãe ou ama, ingressava no mundo dos adultos e “não se distinguia mais destes” (Ibid., p.156). Devido à alta taxa de mortalidade infantil nesta época, era recomendado às mães não criar laços afetivos com seus filhos, e sim manter um distanciamento e um sentimento de indiferença para com eles, dada a sua fragilidade e possibilidade de perda. Era responsabilidade das amas criar a criança desde o nascimento até aproximadamente os cinco anos, quando já apresentavam alguma autonomia. A partir de então já podiam freqüentar o mundo adulto, fazendo parte de festas, reuniões e do trabalho. O serviço

doméstico era ensinado encaminhando-se a criança para morar na casa de outras famílias. Este tipo de aprendizagem era destinado a todas as crianças, independente da classe social de sua família e era, na visão da época, a única forma de educação para a vida adulta.

Posteriormente, nos séculos XVI e XVII, começou a surgir no meio familiar das camadas mais abastadas da sociedade, uma concepção de infância centrada na inocência e na graciosidade infantil. Ariès afirma que, provavelmente, a maneira de ser das crianças pequenas sempre encantou mães e amas, mesmo que não expressassem estes sentimentos. No entanto, em determinado momento, os adultos deixaram se envolver pelo prazer dos gestos e brincadeiras dos pequenos, passando a ter uma atitude mais carinhosa em relação a eles. O autor chama esta passagem de o primeiro sentimento da infância, um sentimento superficial, que se caracterizava pela “paparicação” pois, “a criança, por sua ingenuidade, gentileza e graça, se tornava uma fonte de distração e relaxamento para o adulto” (1981, p.158).

Já um segundo sentimento, de “moralização” originou-se por volta do século XVII fora do núcleo familiar. Os eclesiásticos e teóricos, preocupados com a disciplina e a racionalidade dos costumes, não viam as crianças como distrações agradáveis, mas sim como criaturas frágeis, que necessitavam de cuidados especiais e disciplina. A fim de proteger e educar para a vida adulta passaram a orientar os pais por meio de manuais escritos. Outra mudança tem ligação com os amplos laços de parentesco do poder feudal, vinculados às grandes propriedades, que se enfraqueceram, uma vez que o Estado moderno viu no modelo de família nuclear sua base de sustentação, o que o levou a promover este tipo de estrutura. Há, portanto, o início de um maior envolvimento dos pais com a educação e criação dos filhos trazendo, deste modo, a criança para o ambiente privado do lar e da família.

O século XVIII trouxe para a família, além destes dois sentimentos, a preocupação com a higiene e a saúde física. Também houve mudança na forma de educar as crianças. Elas deixaram de aprender a vida diretamente do universo adulto e passaram a freqüentar o ambiente escolar. Entre outros objetivos, a escola veio cumprir um papel de ligação entre a criança e o mundo, veio suprir uma lacuna referente à sua socialização, já que sua vida agora era isolada do âmbito exterior, restringindo-se basicamente ao ambiente privado do lar e ao contato com sua mãe.

Fig. 9 - Quadro O Reverendo Randall Burroughs e seu filho Ellis, 1769 Autor: Johann Zoffany.26

Esta pintura, do século XVIII, mostra uma criança em seu ambiente familiar, tendo sua educação orientada por seu pai.

A criança, que antes ocupava um lugar sem importância, recebeu uma posição central dentro da família, inaugurando deste modo a construção da infância moderna. A família transformou-se e tornou-se em um lugar de afeição entre os cônjuges e entre pais e filhos, fato que não existia antes. Essa aproximação ocasionou uma preocupação com a privacidade e com diversos aspectos da vida familiar, o que deu início à construção da família moderna.

A origem de um sentimento da infância e a valorização do modelo de família nuclear aconteceu primeiramente nas camadas superiores da sociedade e aos poucos foi sendo incorporado pelas camadas inferiores. Esta parcela da população estava acostumada a deixar suas crianças aos cuidados de instituições mantidas pelo poder público ou religioso, e o casamento não era visto como uma necessidade para suas vidas. A solução foi estimular o matrimônio e o cuidado com as crianças por meio da valorização do papel da mulher dentro do núcleo familiar. A idéia propagada consistia em que, para uma família, mesmo que proletária ascender, era necessário que a esposa trabalhasse em suas funções do lar e no cuidado com os filhos (ZILBERMAN, 2003).

Estas transformações coincidiram com o fim do sistema feudal, momento em que a classe burguesa começou a construir e divulgar seus valores tais como a valorização da vida urbana, a distinção entre o público e o privado, da casa e do trabalho, da infância e da

idade adulta. Entre os valores burgueses houve ainda a valorização da formação pessoal, que tinha por objetivo qualificar o sujeito por seus próprios méritos, o que determinou uma ênfase à cultura e ao ensino. É a partir desta época também que a escola se expandiu e se aperfeiçoou a fim de preparar a criança para a vida adulta e protegê-la contra as agressões do mundo (ZILBERMAN, 2003).

Este período, em que aconteceu a Revolução Industrial, também foi marcado pelas obras de pensadores como Locke27, Rousseau28 e os primeiros românticos. John Locke

defendeu a teoria de que o conhecimento derivava da prática, de onde afirmava que a mente de uma criança se comparava a uma tábula rasa, a uma folha de papel em branco, que só a experiência poderia preencher. Jean Jacques Rousseau defendeu a idéia da criança pura e ingênua, que já nascia com uma natureza boa, da necessidade de respeitá-la e de ser educada sobretudo em liberdade, já que em sua visão a infância tinha formas próprias de ver, pensar e sentir. As concepções românticas da infância mudaram um pouco a noção de Rousseau, pois viam as crianças como portadoras de uma sabedoria e uma sensibilidade estética apurada, que necessitavam de condições favoráveis para seu pleno desenvolvimento.

O século XIX trouxe a idéia da criança sem valor econômico, porém com um grande e inestimável valor emocional, idéia que perdura até os nossos dias. Foi neste período que surgiu o kindergarten, idealizado e posto em prática por Froebel29 no início da década de

1840, que contribuiu para a ruptura dos limites entre o público e o privado, escola e família, e teve como uma das conseqüências uma maior liberdade feminina, pela possibilidade do trabalho fora do lar.

A difusão e o acesso à escola para todos promoveu a institucionalização da infância e da escola pública. Para se chegar à construção moderna da infância houve um trabalho de separação do mundo adulto e de institucionalização das crianças. A criação das creches e da escola pública também teve um papel decisivo para essa separação, uma vez que até então, as escolas conventuais e os colégios religiosos eram indistintamente freqüentados por crianças e adultos (SARMENTO, 2005).

Para Ariès (1981) a consciência da particularidade infantil é conseqüência de um longo processo histórico. A infância de hoje é uma criação de um tempo histórico e de

27 John Locke (1632-1704), filósofo inglês.

28 Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) filósofo suíço. 29 Friedrich Froebel (1782-1852) pedagogo alemão.

condições socioculturais determinadas. A partir disso, pode-se refletir que a infância muda com o tempo e conforme os diferentes contextos sociais, econômicos e geográficos. Por esta razão pode-se afirmar que as crianças de hoje são muito diferentes das de épocas passadas, e certamente o serão das que estão por vir nos próximos séculos.

Ariès situa o início de um sentimento de infância dentro do contexto europeu. No entanto, em terras brasileiras, na visão de Kuhlmann Jr. (1998) este sentimento já estava presente no século XVI, quando os jesuítas criaram uma estratégia de catequese para as crianças indígenas, trazendo crianças órfãs portuguesas para serem mediadoras nesta relação. Houve também a elaboração do Ratio Studiorum - Plano de Estudos dos jesuítas, que introduziu e consolidou um sistema integrado para seus colégios, estabelecendo classes separadas por idade e introduzindo as disciplinas, o que se tornou o primeiro sistema educacional unificado do mundo.

Entretanto, um verdadeiro cuidado com a infância no Brasil parece ter começado somente no século XIX, tornando-se mais intenso nos séculos seguintes. Um aspecto marcante presente desde o início da colonização do país é a diferenciação entre as crianças segundo sua classe social, fato que liga a história da infância ao preconceito, à desigualdade, à exclusão, à exploração e ao abandono. Estes traços, que podem ser vistos ainda hoje, acompanham a história do Brasil desde o período colonial e reforçam a diferença pela desigualdade, seja na questão da distribuição de terra, de renda ou do conhecimento (FROTA, 2007). Foi criado inclusive um termo para designar a criança desamparada, o chamado menor. Esta expressão apareceu no Código de Menores de 1927 e designava uma faixa etária associada às crianças pobres. Com o tempo, o menor passou a ser visto como aquela criança vinda de uma família desestruturada, em situação de risco social, com possibilidade de se tornar um marginal e, assim, colocar em risco a si mesmo e a sociedade. A solução encontrada foi entregar a responsabilidade do menor ao Estado que, com o propósito de melhorá-lo, acabou institucionalizando-o. Esse procedimento apenas reforçou o preconceito e construiu uma categoria à margem da sociedade, passando a ser vista como uma ameaça real e tornando essas crianças menos crianças. Somente em 1990 com o Estatuto da Criança e do Adolescente, o termo menor foi abolido, e a criança foi definida como um sujeito de direitos, possuidora de necessidades específicas devido ao seu desenvolvimento, e que deve receber uma política de atenção integral a seus direitos construídos social e historicamente.

Na perspectiva de Sarmento (2005) o lugar da infância na contemporaneidade é um lugar em mudança, já que a infância é historicamente construída, a partir de um processo de longa duração, que lhe atribui um estatuto social, elabora as bases ideológicas, normativas e referenciais do seu lugar na sociedade. Esse processo, que leva em conta as variações demográficas, as relações econômicas e os seus impactos nos diferentes grupos etários, as políticas públicas, os mecanismos simbólicos, as práticas sociais e os estilos de vida de crianças e de adultos é continuamente atualizado na prática social, nas interações entre crianças e entre crianças e adultos.

Um exemplo é como a realidade dos centros urbanos vem afetando e modificando a infância atual, por meio da estrutura familiar, da limitação dos espaços tanto domésticos quanto urbanos (apartamentos pequenos, proibição de circular na rua, bairro), do convívio em instituições desde muito cedo (creches e escolas). Por diversos motivos, tais como o medo da violência, a infância acaba sendo vivenciada estritamente dentro do contexto familiar e escolar. A insegurança faz com que os pais privilegiem ambientes fechados como shoppings e cinemas, ao invés da própria rua ou bairro, lugares onde tradicionalmente se produzia cultura. A possibilidade de freqüentar e circular livremente pela rua onde mora, de conhecer de perto os vizinhos, e tudo o que existe ao redor fica cada vez mais difícil para a criança urbana, tirando dela uma fonte rica de experiências e interações. Sobre a essa privatização da vida social, especialmente a da criança, Perrotti coloca que:

Enquanto fenômeno social de caráter classista, a privatização significou, portanto, não apenas o rompimento crescente de vínculos da infância com a geografia da cidade, mas também o afrouxamento de vínculos que possibilitavam a experiência direta da diversidade da polis. Confinada tanto na intimidade da família, nos espaços domésticos, quanto nos espaços especializados [...], a infância, à medida que vai-se inscrevendo na ordem burguesa, vê reduzidas suas possibilidades de relacionamento com a diferença, a multiplicidade, o outro. Em contrapartida, aumenta sua exposição ao idêntico [...] (1990, p.90).

Como dito no início do capítulo, a infância é vivida de modo diferente por diferentes tipos de crianças. O principal fator que faz essa diferença são as condições sociais em que vivem as crianças como a classe social, a etnia a que pertencem, a raça, o gênero, a região onde vivem. Estes aspectos diferenciam profundamente as crianças. Em um país de dimensões continentais e desigualdades sociais proporcionais como o Brasil, essas diferenciações são bastante visíveis e desencorajam qualquer tentativa de uniformização no material didático, por exemplo. Contudo Sarmento (2005) afirma que,

apesar de não haver uma concepção uniformizadora de infância, há fatores de homogeneidade em relação às crianças, como o fato de não terem direito ao voto, nem de serem eleitas para funções políticas, de serem socialmente obrigadas à freqüência escolar em praticamente todos os países do mundo, de necessitarem de cuidados especiais pelo menos nos seus primeiros anos de vida, e de possuírem modos diferenciados de interpretação do mundo e de simbolização do real.

Se em tempos passados as crianças participavam naturalmente da vida adulta, eram tratadas como pequenos adultos, e não existia nenhuma diferenciação maior entre elas e os mais velhos, as crianças de hoje são reconhecidas como sujeitos sociais, e participam ativamente das relações, tanto na família, quanto na escola. A experiência e a troca social acontecem basicamente dentro da família e da escola e é justamente neste contexto de interação que a criança se desenvolve. Por meio das relações sociais que integram suas vidas, apropriam-se de valores e comportamentos inerentes ao seu lugar e tempo. Para Cohn (2005) a criança tem um papel ativo na constituição das relações sociais e de laços afetivos, uma vez que interage com adultos, com outras crianças, com o mundo, enfim em todos os espaços pelos quais circula.

2.2 Desenvolvimento e aprendizagem infantil: tramas conceituais e processos de