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Desenvolvimento e aprendizagem infantil: tramas conceituais e processos de mediação

Capítulo 2 O LIVRO DIDÁTICO E A CRIANÇA

2.2 Desenvolvimento e aprendizagem infantil: tramas conceituais e processos de mediação

O homem é uma pessoa social: um agregado de relações sociais encarnadas em um indivíduo.

Lev S. Vygotsky30

As discussões teóricas sobre como as crianças aprendem não são recentes. Inúmeras teorias foram desenvolvidas a fim de entender como ocorre o processo de desenvolvimento infantil e qual sua relação com a aprendizagem, como a teoria de Piaget31. Outro estudioso que se dedicou a pesquisar o desenvolvimento e o aprendizado

das crianças, principalmente em sala de aula, foi o russo Lev Vygotsky32 (1896-1934). É

necessário determinar uma diferença fundamental entre o trabalho de Vygotsky e o de

30 PINO, 2000, p.46.

31 Jean Piaget (1896-1980) biólogo e psicólogo suíço.

32 O nome Vygotsky é encontrado na bibliografia existente escrito de várias formas como Vygotsky, Vigotski,

Vygotski, Vigotskji, Vigotskii, Vigotsky. Neste trabalho optou-se por empregar a grafia Vygotsky adotada por grande parte das publicações brasileiras.

outros teóricos deste campo. Vygotsky não deixou uma teoria acabada, sistematizada, mas possibilitou a abertura de várias linhas de pesquisa, que foram desenvolvidas por outros pesquisadores. Van der Veer e Valsiner (2001) afirmam que a principal contribuição de Vygotsky para a psicologia foi ter rompido limites criados artificialmente entre áreas relacionadas da cultura humana e reunido conhecimentos de diferentes áreas.

A abordagem de Vygostky integrou em uma mesma perspectiva, o homem enquanto corpo e mente, enquanto ser biológico e ser social, enquanto membro da espécie humana e participante de um processo histórico. Isto fica explícito nas três idéias centrais do pensamento de Vygotsky, conforme Oliveira (2006):

as funções psicológicas têm um suporte biológico, pois são produtos da atividade cerebral;

o funcionamento psicológico fundamenta-se nas relações sociais entre o indivíduo e o mundo exterior, que se desenvolvem em um processo histórico;

a relação do homem com o mundo é mediada por sistemas simbólicos.

O homem, na visão de Vygotsky, se constitui como sujeito a partir das relações que estabelece com outros homens. As funções psicológicas superiores, típicas do ser humano como a inteligência lógica, a memória, a percepção, a imaginação e a criatividade, tem sua base biológica, mas também são construídas individualmente, ao longo da vida.

Em relação ao desenvolvimento e à aprendizagem, Vygostky afirma que estes se relacionam desde o nascimento da criança em um movimento dialético, onde um pressupõe o outro, ao mesmo tempo que se negam (ZANELLA, 2007). O desenvolvimento não faz um caminho em linha reta, mas sim enfrenta imprevistos, evoluções e involuções, fazendo parte do processo de maturação do organismo individual. Entretanto é o aprendizado, que só ocorre devido ao contato da pessoa com um ambiente cultural, que oferece as condições e estimula os processos internos de desenvolvimento. Deste modo, a interação social é fator indispensável, pois propicia situações de aprendizagem, que conseqüentemente auxiliam o desenvolvimento.

[...] aprendizado não é desenvolvimento; entretanto, o aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento vários processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de acontecer. Assim, o aprendizado é um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas (VYGOTSKY, 2007, p.103).

Com o intuito de especificar melhor a inter-relação aprendizagem e desenvolvimento, Vygotsky (2007) concebeu o desenvolvimento humano compreendendo dois níveis. O primeiro nível compreende o conjunto de atividades que a criança consegue resolver sozinha. Esse nível indica o ciclo de desenvolvimento já completado, o que a criança já construiu até determinado momento, o chamado nível de desenvolvimento real. O segundo nível compreende o conjunto de atividades que a criança não consegue realizar sozinha mas que, com a ajuda de alguém que lhe dê orientações adequadas, ela consegue resolver. É o nível de desenvolvimento potencial.

Porém Vygostky observou que, em um grupo de crianças, apesar da aparente homogeneidade quanto ao desenvolvimento já alcançado, havia uma diferenciação quanto às possibilidades futuras de aprendizagem e desenvolvimento. Essa diferença entre o que as crianças resolvem independentemente e o que conseguem resolver com a ajuda de um adulto ou colega mais experiente é o que Vygotsky nomeou de zona de desenvolvimento proximal, o que se tornou uma das maiores contribuições para a Psicologia e a Educação, com repercussões na aprendizagem, pois caracteriza o desenvolvimento mental prospectivamente.

A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de “brotos” ou “flores” do desenvolvimento, em vez de “frutos” do desenvolvimento (VYGOTSKY, 2007, p.98).

Para Vygotsky (2007) o bom ensino é aquele que se adianta ao desenvolvimento, ou seja, aquele que se dirige para um novo estágio do processo de desenvolvimento da criança. Contudo deve-se lembrar que não é qualquer indivíduo que pode, a partir da ajuda de outro, realizar qualquer tarefa. Isto dependerá do nível de desenvolvimento já atingido pelo indivíduo.

A idéia da zona de desenvolvimento proximal reforça a importância da interação social no processo de construção das funções psicológicas superiores, tipicamente humanas. Esta zona é um espaço necessariamente mediado por um “outro”, presente ou ausente, real ou não, ou que possua mais capacidade no momento. Deve-se levar em consideração que, nas relações sociais entram em jogo questões afetivas, de confiança,

entre outros aspectos, o que torna as interações complexas. O livro, tanto o didático quanto qualquer outro, pode ativar uma zona de desenvolvimento proximal.

Outro conceito fundamental no pensamento de Vygotsky é a mediação. Segundo ele, nossa relação com o mundo não é direta, é sempre mediada. Temos uma relação indireta com a realidade. Encontrar esta definição na obra de Vygotsky é uma tarefa bastante difícil, dado que não se trata de um conceito, mas de um pressuposto que norteia todo seu pensamento. Pode-se dizer que a mediação não se trata de um ato em que alguma coisa se interpõe. É um processo, a própria relação, e não precisa necessariamente da presença física do outro, ou seja, não é a corporeidade do outro que estabelece a relação mediatizada. A mediação ocorre por meio dos signos e dos instrumentos. Vygotsky, ao afirmar que a relação do homem com o mundo não é uma relação direta, mas essencialmente mediada, propõe a integração de diferentes processos e de conceitos implícitos na cognição e no desenvolvimento humano. As funções psicológicas superiores apresentam uma estrutura tal que “entre o homem e o mundo real existem mediadores, ferramentas auxiliares da atividade humana” (OLIVEIRA, 2006, p.27).

Vygostky (1984) assinala para os instrumentos e para os signos que têm papéis diferentes no processo de mediação. A importância que Vygotsky atribui aos instrumentos encontra apoio na filiação teórica do autor aos postulados marxistas. Em seus escritos ressalta a importância do trabalho, que está na base da sociedade humana.

É o trabalho que, pela ação transformadora do homem sobre a natureza, une homem e natureza e cria a cultura e a história humanas. No trabalho desenvolvem-se, por um lado, a atividade coletiva e, portanto, as relações sociais, e, por outro lado, a criação e utilização de instrumentos. (OLIVEIRA, 2006, p.28).

Para Vygotsky (1984) os instrumentos são elementos interpostos entre o ser humano que trabalha e o objeto de seu trabalho, servindo para ampliar possibilidades de transformação da natureza. Os signos foram denominados por Vygotsky como instrumentos psicológicos que auxiliam nos processos que envolvem as funções psicológicas superiores, como a memória, a percepção, a imaginação, a criatividade, dentre outras. Não são isoladas, mas sim interligadas na dinâmica do desenvolvimento e da aprendizagem que, para o autor, ocorrem em relações de reciprocidade. Ou seja: quanto mais o ser se desenvolve, maior é a aprendizagem e quanto maior a aprendizagem, melhor é o desenvolvimento humano. Os signos auxiliam nos processos psicológicos e não nas

ações concretas, como fazem os instrumentos. Entretanto, o uso dos instrumentos permite que se evidencie gradativamente um sistema de estímulos externos auxiliares, importantes na aprendizagem e no desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Estas são indispensáveis nos processos de internalização, possibilitando a estruturação de representações e de articulações mais complexas entre as mesmas, ampliando também processos internos de mediação (VYGOTSKY, 1984).

Os sistemas simbólicos possibilitam a articulação dos signos em estruturas complexas. Estas estruturas incluem as representações mentais, que substituem os objetos do mundo e, nessa dinâmica, a linguagem possui um papel fundamental (Ibid.)

Essas possibilidades de operação mental não constituem uma relação direta com o mundo real fisicamente presente; a relação é mediada pelos signos internalizados que representam os elementos do mundo, libertando o homem da necessidade de interação concreta com os objetos de seu pensamento. [...] as representações mentais da realidade exterior são, na verdade, os principais mediadores a serem considerados na relação do homem com o mundo. (OLIVEIRA, 2006, p.35).

Molon afirma que a presença corpórea do outro não garante a mediação. Sem a mediação dos signos não há contato com a cultura. A autora retoma Vygostky explicando que, contudo, ao longo do desenvolvimento do ser humano, os processos de mediação também sofrem transformações, uma vez que o indivíduo deixa de necessitar de marcas externas e passa a utilizar signos internos, ou seja, as representações mentais substituem os objetos do mundo real. Os signos internalizados ficam registrados como elementos que representam objetos, eventos ou situações (MOLON, 2000).

As funções psicológicas superiores se constituem por meio de atividades mediadas pelo uso de ferramentas, tanto físicas quanto representacionais. Os instrumentos mediadores físicos, como as ferramentas, modificam o meio físico e o sujeito da ação. Os representacionais, como os signos, modificam a relação do homem consigo mesmo e com os outros homens. O objetivo dos signos é

governar os processos de atuação, alheia ou própria, do mesmo modo que está dirigida a técnica a governar os processos da natureza. Como exemplos de ferramentas psicológicas e de seus sistemas complexos podem servir: o idioma, as distintas formas de numeração e cálculo, os recursos mnemotécnicos, a simbologia algébrica, as obras de arte, a escrita, os esquemas, os diagramas, os mapas, os desenhos, todas as formas possíveis de signos convencionais. (VYGOTSKY apud ZANELLA, 2007, p.76)

Os signos são utilizados como instrumentos psicológicos em diversas situações, como naquelas que exigem memória e atenção. Nestas, os signos são interpretáveis como representação da realidade e se referem a elementos do espaço e do tempo presentes (VYGOTSKY, 2007). Sabe-se que existem inúmeras formas de utilizar os signos como instrumentos que auxiliam no desempenho de atividades psicológicas tais como: fazer uma lista de compras por escrito, utilizar um mapa para encontrar um determinado local, fazer um diagrama para orientar a construção de um objeto... Isso demonstra que constantemente recorre-se à mediação de vários tipos de signos para melhorar as possibilidades de armazenamento de informações e de controle da ação psicológica. Neste sentido, pode-se considerar que o livro didático tem a função de mediar para a criança, através da forma, o conteúdo impresso em suas páginas.

Para Martins (2005) mediar é também proporcionar acesso, provocar disponibilidade e empatia. O livro didático pode ser um mediador se for ao encontro dos interesses e necessidades de seu público escolar, se não dissociar sentimento e intelecto.