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Capítulo 2 O LIVRO DIDÁTICO E A CRIANÇA

2.3 A criança, o livro e a leitura: relações e afetividade

Muitas vezes, escolhia livros pela capa. Havia momentos de que me lembro ainda agora: por exemplo, ver as sobrecapas dos Rainbow Classics [...] e ficar deliciado com as encadernações estampadas que estavam por baixo [...]

Alberto Manguel33

A diferença dos livros de literatura infantil para os livros didáticos é grande. No caso dos livros didáticos há a divisão dos assuntos por faixas etárias, os conteúdos são divididos por disciplinas, com contornos nítidos, organizados num grau crescente de dificuldade, divididos em tantos anos letivos, transmitidos de forma objetiva a indivíduos com, mais ou menos, as mesmas características e no mesmo estágio físico e neurológico. Já os livros de literatura infantil contém um discurso subjetivo, ficcional e poético, não didático (não utilitário) por princípio. O primeiro nunca é lido de uma só vez, e muitas vezes é lido de forma coletiva, em voz alta. O segundo convencionou-se ler de modo individual, em silêncio e de uma só vez. Porém, ambos possuem uma semelhança: compartilham um mesmo lugar, a escola.

No final do século XVII e no correr do século XVIII foram produzidos os primeiros livros infantis, fato que coincidiu com o início do sistema educacional burguês. O surgimento de livros infantis ilustrados na sociedade européia coincidiu também com a mudança na condição social da criança, que deixou de ser vista como um adulto em miniatura e passou a ter sua própria identidade. Houve o reconhecimento de que, na infância existiam maneiras diferentes de pensar e sentir, medos e fantasias que diziam respeito somente a esta etapa da vida. A educação, antes destinada somente aos adultos, passou a ser oferecida e considerada importante para a infância. Mais do que isso, começou a se pensar na maneira mais adequada de ensinar e aprender.

Comenius, o primeiro educador a interessar-se sobre a relação entre ensino e aprendizagem, já no século XVII recomendava aos educadores que associassem sempre o nome de um objeto à sua forma real ou, quando impossível, à sua imagem. Como ainda não havia livros com imagens para crianças, ele mesmo elaborou a primeira obra documentária ilustrada, única em seu gênero. Orbis sensualium pictus (Mundo sensível ilustrado) teve a primeira edição, em alemão e latim, publicada em 1658 em Nuremberg, Alemanha. O livro, com textos leves e imagens feitas pelo próprio autor, destinava-se ao ensino do latim e outras línguas. Este livro pequeno e compacto possuía 150 imagens com títulos e números, que indicavam as palavras empregadas em sentenças curtas, e quase 2000 palavras e noções, explicadas para o público infantil. Nos três séculos passados mais de 200 edições em 26 línguas usaram o Orbis Sensualium Pictus como modelo. As coisas, os fenômenos e as noções são mostradas em seus contextos naturais seja em paisagens, natureza morta, esquemas ou imagens alegóricas. O objetivo era auxiliar o professor a mostrar muitos elementos do mundo que não poderiam ser levados à sala de aula, ou diretamente manipulados pelos alunos. Pode-se dizer que é um antepassado do livro didático.

Fig. 10 - Capa e página do livro Orbis Sensualium Pictus34

Comenius, 1658

É considerado o primeiro livro escolar em que a imagem desempenha um papel essencial na aquisição do saber, onde não somente o texto, mas a imagem também é fonte de conhecimento. Para Comenius a iniciação ao mundo real pela imagem era necessária para a aprendizagem pois, segundo seu pensamento, o sensível não poderia ser separado do intelectual. Por este motivo desenvolveu uma obra onde o texto e a imagem interagiam, a fim de propiciar à criança a possibilidade de construir suas aprendizagens e desenvolver sua curiosidade. As imagens elaboradas pelo autor partiam daquilo que o estudante conhecia para, a partir daí trazer novos conhecimentos (CHALMEL, 2004).

Fig. 11 - Detalhe da página do livro Orbis Sensualium Pictus35

34 Fonte: <http://imaginarymuseum.org>. 35 Fonte: <http://imaginarymuseum.org>.

Com a expansão da escola apareceram no mercado os manuais ilustrados como uma boa forma de atrair o público infantil. Esses livros tinham objetivos mais pedagógicos e didáticos do que recreativos. Hoje, atrair o público infantil para o mundo da leitura continua sendo um desafio. Fala-se da ameaça que as novas tecnologias trazem à forma e à estrutura do livro assim como o conhecemos. Há também o apelo de toda sorte de recursos imagéticos, que parecem ter um poder de sedução maior e acabam ganhando a batalha pelo tempo disponível de muitas crianças, jovens e adultos. Isto só contribuiu para ajudar a instaurar a tão falada crise da leitura, que talvez tenha como maior motivo a “dificuldade de assimilar novos públicos ao circuito do impresso”, como diz Perrotti (1990, p.13).

Para tentar combater esta crise há muito tempo são realizadas ações a fim de aproximar crianças e jovens do livro e da leitura, uma vez que o ato de ler não é natural, mas desenvolvido ao longo da história e da cultura. Na realidade brasileira, por diversos motivos, a maioria da população não possui o hábito, ou melhor dizendo, o gosto pela leitura. A promoção da leitura, a fim de estabelecer vínculos com a sociedade, sempre aconteceu, principalmente, através de instituições, como escolas e bibliotecas. A escola ainda hoje, em muitos casos, torna-se a única possibilidade para a criança de ter acesso aos livros, didáticos ou não, já que nem todas as famílias possuem livros, ou mesmo valorizam a leitura, e nem todas as cidades possuem uma biblioteca pública. O interesse pela leitura, como qualquer outro interesse, não é adquirido, mas desenvolvido. A escola termina ganhando o papel de desenvolver este interesse, embora não seja o ideal, dado seu caráter obrigatório.

Na escola os livros que fazem parte do cotidiano infantil são na maioria didáticos. E, a respeito do livro didático diz-se que não se lê: usa-se. A partir daí já se nota que é um tipo de livro realmente peculiar: o estudante o carrega de casa para a escola e vice-versa; na escola, é o professor quem organiza sua leitura, em grupo, em voz alta, individualmente, em silêncio; em casa é o tipo de livro que o aluno pode voltar a consultar por diversos motivos, como para esclarecer dúvidas da tarefa; ele não é lido de ponta a ponta, mas é comum que seja manuseado, revisto e consultado freqüentemente. E apesar de ser destinado ao aluno, não é este que o escolhe, nem dita como será feito seu uso e leitura (MUNAKATA, 1999).

É inevitável que, com todo o manuseio, qualquer livro acabe provocando uma experiência afetiva, boa ou ruim, no aluno-leitor. Desde nossas primeiras impressões do livro, na primeira infância, antes da alfabetização, que eram somente a respeito de sua forma, cores, figuras ou o som do folhear as páginas, até chegar ao momento onde todos esses componentes passaram a ter outros significados, tudo causa uma experiência que será acumulada ao longo da vida.

O livro é um objeto no sentido genérico, uma coisa que pode ser apreendida pela percepção ou pelo pensamento. Sendo material e ocupando um lugar no espaço, tem nas três dimensões a principal característica de ser um corpo físico matemático. Como corpo, portanto, possui a propriedade de causar impressões e estímulos nos seres humanos. (SILVEIRA, 2001, p. 122).

E essas experiências são naturalmente apreendidas por meio dos sentidos, da inteligência e da emoção da criança, onde estes aspectos não se encontram e não podem ser separados. Uma boa relação afetiva se constrói à medida que se manuseia e se deixa marcas nos livros, ao mesmo tempo que eles nos marcam e modificam nossas idéias. O início de uma relação boa ou ruim com os livros depende da experiência, tanto do conteúdo quanto da forma do livro. Se a criança encontrar qualquer dificuldade no ato de ler, passará a acumular experiências ruins e acabará gostando cada vez menos da leitura.

E a forma, traduzida pela linguagem visual, pode influenciar muito na experiência de cada um. Quantas vezes uma comunicação visual mal elaborada nos fez rejeitar um livro ou tornou a leitura uma atividade difícil ou desagradável? Também o contrário é verdadeiro, pois não há comunicação visual que segure a atenção do leitor se o texto não o faz por merecer. Uma boa relação entre livro e leitor acontece quando palavra e imagem se completam e interagem. O livro como um todo deve seduzir o leitor, mantê-lo em um estado de motivação e conquista, ativando o racional pelo emocional e vice-versa.

Para Vygotsky (1984) o pensamento se origina no âmbito da motivação, o qual inclui necessidades, inclinações, interesses, impulsos, afeto e emoção. Para o autor dissociar as dimensões cognitivas e afetivas incapacita a compreensão do ser humano com um todo, pois existem profundas conexões entre elas.

O sentimento, o pensamento e a vontade estão relacionados assim como todas as funções psicológicas, ou seja, não existe uma função isolada, nem um pensamento puro e nem um afeto sem alteração mas sim inter-conexões funcionais permanentes na consciência, nas quais os sentimentos quando conscientes são atravessados pelos pensamentos, e os pensamentos são

permeados pelos sentimentos, sendo que esses acontecem a partir dos e nos processos volitivos. A função psicológica que potencializa as demais é a vontade. (MOLON, 2000, p.8).

O prazer de se relacionar com os livros não é algo que apareça de uma hora para outra. Cabe aos adultos responsáveis, pais e professores, auxiliar a criança a descobrir o que o livro tem a oferecer, seu potencial. Explorá-lo em todos os sentidos – pela forma e pelo seu conteúdo – é uma maneira de fazer a criança ganhar intimidade com um objeto tão rico em significados, verbais e visuais.

A integração dos aspectos cognitivos e afetivos do ser humano foi encontrada por Vygostky (2005) justamente no significado/sentido da palavra. La Taille (1992, p.81) refere que na concepção de Vygostky o significado de cada palavra possui uma conexão entre os aspectos cognitivo e afetivo: o significado propriamente dito e o sentido. O sentido é a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta na consciência. “É um todo complexo, fluido e dinâmico. O significado é uma das zonas do sentido, a mais estável e a mais precisa” (VYGOSTSKY, 1984, p.125). Assim, uma palavra adquire sentido no contexto em que surge, podendo alterar este sentido quando o contexto se modifica. Buscar o significado quer dizer encontrar a razão que permite relacionar as coisas entre si e, dessa forma, conhecê-las. É dizer o que elas são, conferir-lhes outra forma de existência, o que inclui, ao mesmo tempo, a palavra e o pensamento (PINO, 2000).

Assim como a linguagem verbal, a linguagem visual é polissêmica, unindo os aspectos verbal, visual e material. A comunicação visual de qualquer livro pode possuir um significado compartilhado por um grupo, através do uso de uma linguagem visual comum, além de uma ampla gama de sentidos. É a reunião de texto e imagem e a organização destes elementos na página que servem de estímulo, de sedução para a leitura, especialmente em livros infantis. Em um livro o conjunto dos aspectos visuais, as imagens, o texto, a forma física, podem transmitir inúmeros significados e conseqüentemente produzir uma interferência, boa ou má, na leitura. A criança, no plano intrapsicológico, lida com o sentido das palavras e das imagens, faz relação com suas vivências afetivas. As associações entre palavras e imagens trazem para a criança inúmeras e ricas possibilidades de sentidos. Até pelo fato de que, no pensamento, tudo se transforma em imagem. Palavras, símbolos abstratos, existem sob a forma de imagens auditivas ou visuais na nossa consciência. Conforme Damásio (1996, p.134) “se não se tornassem imagens, por mais passageiras que fossem, não seriam nada que pudéssemos saber”.

Quando adequada, a interação entre a palavra e a imagem, uma deve valorizar a outra. A própria palavra ilustrar, que provém do latim illustrare, etimologicamente significa outorgar luz a um texto. Não se trata de reiterar pelas imagens o que já foi dito pelo texto, mas sim complementá-lo, esclarecê-lo assumindo o papel de criar um conjunto interessante e sutil entre o plano das palavras e o plano das imagens.