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Capítulo 3 O LIVRO DIDÁTICO E A COMUNICAÇÃO VISUAL

3.2 O livro didático e a cultura visual

Não despreze a qualidade gráfica, pois muitas vezes ele será o único livro que a criança tem em casa. É bom que seja bonito e agradável. E não tenha receio de escolher livros (didáticos) de ponta.

Marisa Lajolo38

A cultura, na perspectiva de Vygotsky (2007) e retomada por La Taille (1992, p.80), não é um sistema estático ao qual o indivíduo se sujeita, mas sim um “palco de negociações” onde os sujeitos fazem um “constante processo de recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significados”. Deste modo o sujeito se apropria do conjunto cultural e passa a utilizá-lo como instrumento próprio de pensamento e ação no mundo. O sujeito tem um papel ativo na cultura, pois ao mesmo tempo que constitui cultura é por ela constituído.

No entanto, o desenvolvimento cultural humano depende também dos processos biológicos de crescimento e maturação, formando um processo complexo, em que o biológico e o cultural constituem-se mutuamente no seu desenvolvimento. A construção do sujeito se dá dentro da cultura, por meio de experiências singulares em sua relação com o mundo e com as pessoas. Cada pessoa constitui sua subjetividade a partir de situações de intersubjetividade, por meio do processo de internalização. A experiência social para Vygotsky extrapola as interações sociais, isto é, o sujeito se apropria da experiência dos outros sujeitos não somente em condições de interação imediatas mas, também, por meio de intersubjetividades anônimas (MOLON, 2000).

Sobre cultura Cohn (2005) fala que esta deve ser entendida como um sistema simbólico onde as crianças não sabem menos que os adultos, apenas sabem outras coisas. A criança não é somente produzida pela cultura na qual está inserida, mas também é produtora de cultura, seja nas brincadeiras, jogos, canções, dentro ou fora da escola.

Elas elaboram sentidos para o mundo e suas experiências compartilhando plenamente de uma cultura. Esses sentidos têm uma particularidade, e não se confundem e nem podem ser reduzidos àqueles elaborados pelos adultos; as crianças têm autonomia cultural em relação ao adulto. [...] elas têm uma relativa autonomia cultural. Os sentidos que elaboram partem de um sistema simbólico compartilhado com os adultos. (COHN, 2005, p.35).

Contudo atualmente percebe-se que a criança acaba consumindo mais cultura do que produzindo. Um dos aspectos negativos é o de que, em muitos casos, a indústria cultural direcionada ao público infantil fomenta, principalmente por meio da mídia, comportamentos consumistas, valoriza a individualidade e a competitividade. Este público é visto como um lucrativo segmento de mercado, ao qual é oferecido um vasto mercado de produtos como jogos eletrônicos, roupas, calçados, vídeos, gadgets (dispositivos eletrônicos portáteis como celulares e tocadores de MP3), livros, serviços, parques temáticos, rotas de turismo, produtos alimentícios, dentre muitos outros. Nas camadas que têm acesso a toda esta gama de opções é observada uma certa uniformização de gostos, estilos de comportamento e de vida. As crianças pertencentes às famílias com menor poder aquisitivo ficam confinadas em uma condição de exclusão, por terem menor acesso a esses bens de consumo. As desigualdades entre as crianças se estabelecem pelo maior ou menor grau de acesso aos bens de consumo e culturais.

[...] a introdução dos jogos vídeos e informáticos alterou parcialmente o tipo de brinquedos e o uso do espaço-tempo lúdico das crianças, gerou novas linguagens e desenvolveu apetências de consumo, que não podem deixar de ser considerados na análise contemporânea das culturas e das relações de pares das crianças, nomeadamente pelos efeitos no aumento da assimetria do poder de compra e nas desigualdades sociais, com impactos na composição de uma “infância global”, consumidora dos mesmos produtos, sobretudo os emanados da indústria cultural para a infância, mas com profunda heterogeneidade interna. (SARMENTO, 2005, p.41).

Um dos fatos que mudaram significativamente os modos de interação social, de produzir cultura e a própria sociedade foi a popularização da Internet na última década, mais especificamente no Brasil, juntamente com os avanços tecnológicos no campo das telecomunicações associados à informática. Principalmente crianças e jovens vem assimilando - com intensidades variando de acordo com o meio em que vivem - comportamentos, hábitos e expressões que veiculam nestes canais de comunicação. São atentas a todas as novidades e modismos que pipocam diariamente por meio da mídia. O entorno visual do cotidiano enriqueceu e/ou poluiu, de forma significativa. Porém diante da cultura visual somos leitores, seguimos construindo significados, interpretando tudo a nossa volta, uma vez que a apropriação não é passiva nem dependente, mas interativa e de acordo com as experiências de cada indivíduo fora do ambiente escolar. Crianças e adolescentes convivem em seu cotidiano com diversas manifestações da cultura visual e,

naturalmente, levam estas referências para a escola, pois refletem aspectos dos seus contextos socioculturais e da época em que vivem.

O próprio livro didático deve ser visto como um artefato da cultura visual. Vale esclarecer que, para Hernández (2000) fazem parte da cultura visual não apenas os objetos considerados canônicos, mas sim todos aqueles que

se produzem no presente e aqueles que fazem parte do passado; os que se vinculam à própria cultura e com as de outros povos [...]; os que estão nos museus e os que aparecem nos cartazes publicitários e nos anúncios; nos videoclips ou nas telas da Internet; os realizados pelos docentes e pelos próprios alunos. (HERNÁNDEZ, 2000, p.50).

Deste modo, o livro didático se insere na cultura visual, tanto pela sua forma física, sua materialidade, quanto pelo seu conteúdo visual. Bittencourt (1998) assinala um aspecto interessante sobre os livros didáticos observando que estes foram os principais divulgadores das artes visuais, dada à constante utilização de obras de arte vinculadas às disciplinas, principalmente a de História. Assim sendo, as imagens que o livro didático disponibiliza acabaram se tornando referências para que as crianças construam suas próprias imagens e significados, já que o contato com objetos de arte não é tão acessível a todos.

Um dos desafios que os professores têm que enfrentar em sala de aula consiste em comprometer-se com as imagens e com a tecnologia do mundo contemporâneo trabalhando-as a partir de uma análise cultural, do juízo moral e da reflexão. Pode-se utilizar as imagens da cultura visual como uma ligação entre campos de conhecimento, pois elas permitem conectar e relacionar para compreender e aprender. E esta ligação entre os vários campos de conhecimento é facilitada no ensino fundamental, pois o professor pode permitir que as áreas se incorporem umas às outras, fazendo com que seus alunos criem relações entre as diversas disciplinas. Por meio de estratégias é possível trazer para dentro da escola o universo visual que está fora da escola, para decodificá-lo, reinterpretá-lo e transformá-lo. Ou mesmo explorar o que já se encontra na escola: muitos livros didáticos trazem em seus conteúdos itens que fazem parte do repertório cultural infantil, tais como contos, lendas, fábulas, crônicas, poemas, verbetes de enciclopédia, textos de divulgação científica, notícias, reportagens, anedotas, reproduções de pinturas, fotografias, cartuns, charges e histórias em quadrinhos, além de materiais gráficos do

cotidiano, como capas de CD, de filmes, cartazes, folhetos, gráficos, tabelas, calendário, ingressos, cardápios, cheques, notas fiscais, anúncios, sumários de revista, entre outros.

Esta variedade que o livro didático oferece é particularmente útil uma vez que, na realidade brasileira vem-se constatando que, tanto professores quanto alunos, os tem como principal fonte de informação impressa, estando este fato ligado às populações onde o acesso a bens culturais e econômicos é menor. Apesar dos avanços tecnológicos, tais como o acesso à Internet, dentre outros, a formação e a construção do conhecimento, com base em diferentes aprendizagens, particularmente a aprendizagem escolar, ainda acontece em torno do livro didático. O próprio Guia do Livro Didático (2007, p.25) diz que “o livro didático, em qualquer disciplina, é um instrumento fundamental (às vezes praticamente único) do acesso da criança popular à leitura e à cultura letrada.”

O livro didático interessa igualmente a uma história da leitura porque ele, talvez mais ostensivamente que outras formas escritas, forma o leitor. Pode não ser tão sedutor quanto as publicações destinadas à infância (livros e histórias em quadrinhos), mas sua influência é inevitável, sendo encontrado em todas as etapas de escolarização de um indivíduo [...]. (LAJOLO; ZILBERMAN, 2003, p. 121).