• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 3 O LIVRO DIDÁTICO E A COMUNICAÇÃO VISUAL

3.1 A criança e a comunicação visual do livro didático

As palavras antes de serem lidas, são vistas. E antes de chegar às palavras a criança primeiramente tem o contato visual com o livro, o objeto, que já comunica mesmo fechado, por meio de sua capa, de sua materialidade. O aluno ao abrir um livro é atraído primeiramente pelas imagens37 e é a partir delas que a leitura começa. É pela percepção

que se tem da sua materialidade, de sua aparência, que o livro começa a se formar diante do leitor. O corpo físico do livro já é expressivo porque é capaz de comunicar, seja através do visual, do verbal ou de ambos. A leitura e o entendimento ocorrem posteriormente, depois de uma aproximação com o objeto livro.

É o aspecto físico e material do livro - que se faz presente por meio das formas, das cores, das imagens - o primeiro estímulo ao desejo de decifrar e interpretar o código das palavras. Uma vez aberto o livro observa-se o tipo de letra, a diagramação, os espaços e a qualidade de suas imagens e ilustrações. Todo o conjunto, o texto, a imagem, os tipos, a qualidade do papel, a encadernação, a forma e o peso será prejudicado se um dos aspectos for menosprezado. Em se tratando de livro didático para o ensino fundamental das séries iniciais (1° ao 5° ano), um produto destinado ao público infantil, a qualidade do texto é obviamente imprescindível, porém a questão visual é tão importante quanto o conteúdo. O autor pode preparar um excelente texto, mas se este não for bem projetado em sua dimensão material, muito se perderá. O Guia do Livro Didático (2007, p.26) fala que

[...] assim como a clareza e a fluência da linguagem empregada pelo LD — ou seja, a legibilidade dos textos — têm um valor estratégico da maior importância. Portanto, dêem preferência aos livros mais legíveis, que valorizem e estimulem o aluno como leitor em formação.

36 READ, 1986, p.62.

37 Neste trabalho o termo imagem além de considerar a forma visual e não-verbal de representação, abarca

também diversas formas de ilustração, o desenho, a fotografia, a reprodução de recursos pictográficos, e a idéia de que um texto também pode constituir-se como imagem.

Porém nota-se que, no aspecto verbal dos livros didáticos infantis há marcas de fortes tendências pedagógicas. Em muitos livros didáticos percebe-se uma linguagem artificial, um estereótipo da expressão verbal infantil e esquemas narrativos simplistas. Lajolo (1982) fala que, nos livros didáticos, a opção feita inclui formas mais comuns de se apresentar o conteúdo por serem tidas como mais comunicantes.

Entre a simplicidade e o simplismo, a linha é muito estreita e bastante discutível. Se o simplismo, por exemplo, explica a constância com que os mesmos recursos aparecem ao longo dos livros, gerando uma imitação que não é mais dos conteúdos, mas das formas, é a simplicidade que parece justificar um estilo arcaizante, paratático e paralelístico [...] (LAJOLO, 1982, p.121).

No aspecto visual parece ocorrer algo semelhante. A comunicação visual do livro didático pretende atingir o público infantil, mas enquanto as crianças e seu comportamento mudaram significativamente ao longo dos anos, este tipo de livro vem apresentando poucas inovações e soluções visuais empregadas há muito tempo. Como já indicava Walter Benjamin (1984, p.50) “a criança exige do adulto uma representação clara e compreensível, mas não infantil”. De modo geral o livro didático vem utilizando uma linguagem visual cheia de clichês infantis, que muitas vezes cumprem apenas uma função decorativa.

Essa visão e estereotipização em relação à infância pode ser compreendida levando em conta algumas questões. O livro didático é escrito, produzido e escolhido por adultos que, na melhor das hipóteses, possuem algum conhecimento sobre a infância. Ele também é produzido para uma criança sem rosto, genérica, já que vai ser consumido por milhares delas em diferentes situações e contextos. Munakata (1999, p.583) fala que autores e editores de livros didáticos não podem se dar ao luxo de pensar em particularidades, mas num leitor genérico, o “aluno médio brasileiro”.

Somente estes dois pontos já dificultam bastante a produção do livro didático visando uma comunicação visual que seja coerente com a infância atual. Principalmente nesta categoria de livros, as imagens - e não somente elas, mas todo o conjunto visual da página - deveriam ser selecionadas com o intuito de despertar a curiosidade, a atenção cambiante e a associação de idéias, inerentes ao comportamento infantil.

Neste ponto pode-se fazer uma ligação com as idéias de Vygotsky, que determinou um forte elo entre o processo de desenvolvimento e o relacionamento do indivíduo com o meio sócio-cultural em que vive. Na infância, o desenvolvimento cognitivo produz-se pelo

processo de internalização dos significados da interação social, promovida por meio dos materiais fornecidos pela cultura. A apropriação da cultura acontece por meio do movimento entre as funções interpsicológicas e as funções intrapsicológicas. Tudo o que está no sujeito existe antes no social, interpsicologicamente, sendo que, quando é apreendido e modificado pelo mesmo, passa a existir no plano intrapsicológico, internamente (VYGOTSKY, 2007). O processo vai se construindo de fora para dentro. Deste modo a criança vai aprendendo e se modificando, reconstruindo internamente uma atividade externa, como resultado de processos interativos que se dão ao longo do tempo. Partindo deste ponto de vista, a escola tem um papel de destaque em relação ao desenvolvimento humano. É o lugar onde acontecem diversas situações de interação e, conseqüentemente de aprendizagem. Naturalmente em todos os lugares podem ocorrer estas situações, mas é no ambiente escolar que a criança tem uma convivência rica e uma variedade de relações interpessoais com colegas da mesma idade, mais novos, mais velhos, com adultos mais experientes e com diversos tipos de expressões da cultura visual, que vão interferindo em sua zona de desenvolvimento proximal, promovendo transformações, favorecendo aprendizagens.

Essas interações que o indivíduo estabelece com as pessoas que o cercam, seja na escola ou em outro ambiente, exercem, portanto, papel fundamental no desenvolvimento humano, pois é a partir da apropriação das significações socialmente produzidas que as funções psicológicas se constituem (ZANELLA, 2007, p.96).

A criança constrói conhecimento e se desenvolve também por meio do que observa e sente em relação ao contexto no qual convive. No caso da escola, além de usufruir de um ambiente multicultural, a criança entra em contato com um novo tipo de livro, muito diferente dos livros de leitura, o livro didático. Na escola eles são um ponto de apoio essencial no processo de construção do conhecimento. Para o aluno, muitas vezes servem como uma referência, um lugar onde pode buscar informações precisas e exatas, quer nos momentos de estudo individual em casa, quer na solução de dúvidas pontuais. Ele tornou-se um material básico de referência, um organizador de conteúdos e atividades, tanto para o aluno, quanto para o professor.

Sendo instrumentos tão importantes na vida escolar, o conteúdo visual e comunicacional dos livros didáticos deveria ser apresentado de forma criativa, organizada

e interessante, a fim de estimular o estudo e a compreensão do conteúdo, facilitando a construção do conhecimento e ampliando o potencial pedagógico do livro.

O conteúdo e a forma são os componentes básicos, irredutíveis, de todos os meios (a música, a poesia, a prosa, a dança), e, como é nossa principal preocupação aqui, das artes e ofícios visuais. O conteúdo é fundamentalmente o que está sendo direta ou indiretamente expresso; é o caráter da informação, a mensagem. Na comunicação visual, porém, o conteúdo nunca está dissociado da forma. Muda sutilmente de um meio a outro e de um formato a outro, adaptando-se às circunstâncias de cada um; [...] (DONDIS, 2007, p. 131).

Segundo Coutinho e Freire (2006) sabe-se, a partir da prática e da teoria relacionada, que os livros ilustrados despertam um interesse maior nas crianças para a percepção e apreensão do seu conteúdo. Deste modo deve haver uma preocupação com o conteúdo e conseqüentemente, sua forma, que devem ser coerentes com o repertório da criança, para promover uma relação de identidade com a sua realidade, o que poderá oportunizar um maior interesse.

Zilberman (2003) afirma que, quando se examina o universo infantil, observa-se que o contato original dela com o mundo dá-se por intermédio da audição e da recepção de imagens visuais. O texto escrito só começa a fazer parte após a interferência da escola, sendo que, a partir deste momento a criança passa a ter acesso a todos os modos de cultura de maneira autônoma.

Porém, por muito tempo, o texto escrito, o conteúdo, foi o mais importante e valorizado na hora de se produzir um livro, sendo que as imagens desempenhavam um papel secundário ou simplesmente decorativo. Faz parte do senso comum associar seriedade à pouca ornamentação. Essa visão pode ser encontrada na fala de alguns autores em obras a respeito do livro didático. Freitag (1997, p.131) comenta que "quem freqüentou escola antes de 64 lembrar-se-á de livros didáticos [...] que eram informativos e de excelente nível, comparados aos compêndios muito ilustrados mas pouco substanciosos dos dias de hoje". Outra fala que demonstra este pensamento é o de Osman Lins que se referiu à bibliografia didática como “Disneylândia Pedagógica” devido ao abuso de recursos visuais, como histórias em quadrinhos e ilustrações (LINS, 1977 apud OLIVEIRA et al., 1984, p.21).

Contudo, com o passar do tempo, a imagem passou a ser valorizada novamente e seu papel é visto hoje como menos decorativo e mais ilustrativo, no sentido de apoiar e complementar o conteúdo textual (COUTINHO; FREIRE, 2006). Além da imagem, a relação

entre imagem e texto, formas, cores, enfim toda comunicação visual do impresso, necessita ser observada, especialmente em relação à sua capacidade mediadora. A estrutura de cada página, sua comunicação visual, funciona como um conjunto de signos, uma ferramenta psicológica que tem a função de mediar a relação do aluno com o conteúdo, com o objeto livro e auxiliar na aprendizagem. A comunicação visual do livro didático atua como um sistema de estímulo externo auxiliar, que pode aumentar a eficácia da atividade do aluno, principalmente em uma faixa etária onde o uso dos signos externos predomina. Conforme Vygotsky “o estímulo auxiliar é um instrumento psicológico que age a partir do meio exterior” (2007, p.40).

A comunicação visual do livro didático deve ser vista como um aspecto positivo pois, de acordo com Lins “aumenta sua quantidade de informação e as possibilidades de leitura, aumentando o interesse e, conseqüentemente, o consumo de livros de uma maneira geral” (2004, p.47). Deve-se observar que o aspecto visual é o que mais chama atenção e causa impacto ao primeiro contato. Para as crianças é extremamente importante pois, além de auxiliar a tradução e compreensão do conteúdo, convertendo ou ilustrando visualmente conceitos abstratos, a mediação que provoca é essencial para a experiência visual e para a memória. A percepção visual também influi no desenvolvimento emocional da criança e a torna, conforme o significado de suas experiências, mais ativa, independente ou auto-confiante. É a percepção que tem do objeto, neste caso do livro, que faz com que a criança apresente reações emocionais, como por exemplo, a vontade de se relacionar com ele, ou não.

A variação das características físicas do livro didático é limitada em termos de formato, tipo de papel e aplicação de recursos gráficos, devido a várias questões, inclusive do custo. Contudo, a comunicação visual deveria apostar na criatividade, mas infelizmente não é o que se percebe geralmente. Alguns títulos são pouco estimulantes em relação ao seu aspecto gráfico. Se o visual for comparado com alguns livros de histórias, o livro didático torna-se desinteressante. Um fato a ressaltar é que, quando pequena, a criança lida com o livro como se fosse mais um brinquedo. Entretanto, com o passar do tempo, a criança percebe que o livro vai se modificando no formato, corpo de letra, números de páginas, quantidade de texto, entre outros. O aspecto lúdico, muitas vezes, vai se perdendo e, com isso, o prazer da interação criança e objeto, principalmente ao entrar para

a escola. Ele sai dos horários de lazer e passa a ser visto como uma obrigação, maçante muitas vezes. O que não necessariamente deveria ser assim.

Em relação à aprendizagem com o livro didático, pode-se pensar sobre o conceito de zona de desenvolvimento proximal e ampliá-lo, dado que seu foco são as transações sociais. Zanella (2007) esclarece que Vygotsky não deixou especificado que modos de auxílio social os professores deveriam oferecer às crianças e que constituiriam ativadores da zona de desenvolvimento proximal. O autor menciona “colaboração e orientação, bem como o fornecimento de assistência às crianças via demonstração, questões norteadoras e introdução dos elementos iniciais de solução da tarefa” (Ibid., p.112). O livro didático como um todo pode constituir-se em um ativador da zona de desenvolvimento proximal para a criança, pois termina operando como um espaço mediador, o ‘outro’ que possui mais conhecimento. Nessa relação que se constitui, entram em jogo questões afetivas, onde a comunicação visual pode influenciar, e de confiança nas informações contidas no livro. O aluno, quando usa seu livro didático em grupo, na escola ou sozinho em casa, para solucionar dúvidas ou compreender um conteúdo, está interagindo, se apropriando e internalizando significados socialmente produzidos. Deste modo, a zona de desenvolvimento proximal pode ser caracterizada também pelo “sujeito envolvido em atividade colaborativa num contexto social específico” (Ibid., p.115).

Aprofundar a questão da mediação que a comunicação visual do livro promove levanta pontos como a apresentação do conteúdo de forma criativa, organizada e interessante, o estímulo ao estudo e a compreensão do conteúdo. A criança pode adquirir assim, de maneira mais satisfatória e principalmente prazerosa, os conhecimentos escolares, facilitando a construção do conhecimento e ampliando o potencial pedagógico do livro. Pode-se referir, então, que o livro didático é um mediador pedagógico para a criança na escola. Na obra de Vygotsky a mediação é um processo que permeia seu aporte sobre desenvolvimento e aprendizagem. Não se trata de um conceito, mas de um processo que também possibilita a internalização. Retomando Martins (2005) mediar é também proporcionar acesso.