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A construção da Rede Básica e o Programa Saúde da Família

O TRABALHO E OS SABERES DO TRABALHO

2.4 A construção da Rede Básica e o Programa Saúde da Família

A estruturação dos serviços de saúde vem se transformando ao longo do tempo como resultado de questões políticas diversas, relacionadas aos aspectos sócio-financeiros e técnicos, que servem aos governos como justificativa para a implantação de determinados tipos de assistência à saúde (FRANCO; MERHY, 2004).

Buscando compreender a construção da Rede Básica de Atenção, destacamos algumas políticas que determinaram mudanças relevantes na história da saúde pública, lembrando que há diversos interesses em jogo, muitos deles contraditórios e antagônicos.

As políticas públicas que conduziram o sistema de saúde do país transitaram entre dois modelos antecedentes à proposta de instauração do SUS – Sistema Único de Saúde. Mendes Gonçalves (1994) assinala que o período do início do século XX até os anos 60, caracterizou-se por uma estrutura econômica dominada por um modelo agro-exportador, principalmente pelo plantio do café, em que prevaleceu o sanitarismo campanhista. Nesse período, prevalece uma visão sanitária de combate às doenças de massa seguida de propostas saneadoras de imunização e erradicação de doenças, saneando assim, os espaços de circulação das mercadorias exportáveis evitando as doenças que poderiam prejudicar esse mercado.

Posteriormente, com a industrialização, foi essencial a preservação do corpo do trabalhador, a manutenção e recuperação da capacidade produtiva, que caracterizou o desenvolvimento da atenção médica previdenciária, dando origem ao modelo médico assistencial privativista, cujo direito à saúde concentrava-se nos trabalhadores que tinham a carteira de trabalho assinada, deixando de fora boa parte da população.

Na saúde pública, o trabalho tratava-se de uma prática com predomínio de atividades simples, executadas “por agentes de enfermagem sem preparo formal e sem treinamento em serviço. Ocorria uma polarização do trabalho entre o médico e a atendente. Não há registro de categoria profissional de nível médio ou técnico entre estas duas categorias.” O médico era responsável por algumas consultas pontuais e as demais tarefas eram divididas entre os demais agentes, sendo várias atividades atribuídas pelo médico ao pessoal de enfermagem. Nesse período, a enfermeira não integrava o quadro de pessoal da saúde pública (VILLA et al., 1997, p. 33-4).

A partir de 1969, com a ampliação e a diversificação da assistência médica individual, entra em cena o trabalho da enfermeira com a função de estruturar o serviço, padronizar as técnicas de enfermagem e supervisionar o pessoal de enfermagem, contudo, o controle do processo de trabalho continua médico-hegemônico. Com a entrada da enfermeira na saúde pública, formaliza-se um saber de enfermagem nessa área. Mas Villa et al. (1997, p. 39) sinalizam que as técnicas, como forma de organizar o trabalho, serviram tanto para direcionar a execução da atividade como para “viabilizar o adestramento, possibilitando o controle social dos agentes, por meio do processo de formação e divisão técnica do trabalho.” Numa expressão clara da vinculação poder-saber existente no campo da saúde.

A década de 80 deu lugar à reforma sanitária, contrapondo-se à política de saúde vigente que privilegiava o modelo centrado no atendimento hospitalar, de baixa resolutividade e crescentes custos, mas que atendia aos interesses de poderosos grupos econômicos, controladores da indústria terapêutica e de alta tecnologia em diagnose. Essa mudança ocorre no bojo de uma crise econômico- social vivenciada pelo país, com a presença de um Estado mínimo, relegando ao mercado a regulação da produção e dos serviços (FRANCO; MERHY, 2004).

Estas observações fundam-se nas reformas do Estado ocorridas à época, tendo por base a nova ordem do capitalismo em nível mundial, de orientação neoliberal e que influenciaram diretamente as políticas públicas em geral, refletindo- se nas mudanças do campo da saúde. Vale ressaltar que essas novas propostas foram construídas com base em acordos e recomendações de organismos internacionais, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de

Desenvolvimento, que forneceram os marcos de referência para a formulação ou aperfeiçoamento das políticas vigentes. Em meio às reformas, o governo federal transferiu para as unidades as responsabilidades pela saúde, cabendo a ele a função de planejamento, aos estados o controle e aos municípios a execução das ações (FRANCO; MERHY, 2004).

Nesse contexto, organizou-se o movimento pela Reforma Sanitária, a partir da mobilização dos trabalhadores e de outros grupos da sociedade na busca por mudanças significativas no campo da saúde, tendo em vista que o modelo assistencial vigente não atendia às necessidades da população. Essa reação ocorreu numa conjuntura de movimentação popular e de profissionais por uma sociedade democrática, com justiça social. Um movimento que culminou, em 1986, com a VIII Conferência Nacional de Saúde, da qual participaram profissionais de saúde, gestores, políticos e população defendendo a proposta de um novo modelo de atenção com diretrizes definidas pelos princípios de cidadania, da extensão de cobertura, enfim, de inclusão social (CAMPOS et al., 1998).

A mobilização popular permitiu que os princípios acordados na VIII Conferência se consubstanciassem em arcabouço jurídico. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu o SUS como o sistema de saúde brasileiro. A lei Orgânica da Saúde – Lei n. 8.080/90 expressa as conquistas obtidas na Constituição e a Lei 8.142/90, a efetivação da municipalização; um passo definitivo para a descentralização das ações de saúde (BRASIL, 1990).

Nesse período de intensa mobilização na área da saúde pública,

o debate dividia opiniões entre aqueles que consideravam mais a necessidade de intervenção no âmbito político, financeiro e administrativo do estado, e aqueles que, além disso, se preocupavam em como, também nos espaços micro, provocar mudanças nas práticas dos profissionais que no dia a dia operacionalizavam a política de saúde no contato direto com os usuários dos serviços. (SCHERER, 2006, p. 16)

Assim, a partir do movimento social da reforma sanitária, o governo vem tentando superar a orientação na saúde centrada no controle da enfermidade, no sentido de desenvolver e expandir uma modalidade de assistência mais universal, capaz de dar cobertura aos excluídos, e de baixo custo.

Nessa direção, vale lembrar que a reorganização da Rede Básica sofreu influências de diferentes movimentos que vinham acontecendo em vários países, notadamente pelas questões levantadas na Conferência Internacional de Alma Ata16, cujas premissas se voltavam para a necessidade de reestruturação da Atenção Primária da Saúde, em nível mundial. A partir dessas deliberações, discute-se essa reestruturação da Rede Básica caracterizada por ações preventivas e de promoção. A saúde deixa de ser vista como ação apenas curativa, individual e independente do contexto social, para assumir proporções ampliadas, capazes de promover a integralidade das ações. Também as discussões político-ideológicas sobre ‘Medicina de Família’ influenciaram as novas propostas notadamente no seu aspecto de humanização do cuidado e o vínculo entre serviços e usuários (PAIM, 2001).

Visando, portanto, consolidar o SUS, o governo lançou uma série de programas e políticas que culminaram em 1994, com o Programa Saúde da Família (PSF).

O Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) foi o precursor do PSF, tendo como objetivos centrais a criação de um vínculo entre os serviços de saúde e a comunidade e o conhecimento da realidade de vida e saúde daqueles que se inscreviam no espaço geográfico de cada Unidade de Saúde. Os ACS foram os responsáveis pela coleta e alimentação de dados primários de saúde - os cadastros das famílias - que permitiram delinear o perfil epidemiológico da população adscrita (BRASIL, 1991).

É importante notar que, até então, todos os atendimentos prestados nos Serviços de Saúde, de modo geral, giravam em torno da consulta médica, sem conhecimento sobre as condições de vida e saúde da comunidade assistida, sem um programa a ser seguido e sem qualquer tipo de acompanhamento dos casos. Conforme Almeida et al. (1997)

Além de não haver nenhum atendimento do tipo de ação programática de saúde, o próprio atendimento clínico realizado nas Unidades Básicas de Saúde não tem uma organização tecnológica que permita uma identificação e evolução mais precisa e detalhada da clientela, nem em termos anátomo-

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Para mais detalhes ver: Organização Mundial de Saúde. Declaração de Alma Ata. Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, Alma-Ata, URSS, 1978. In:

funcionais e muito menos sociais (...) Portanto, o modelo assistencial pode ser caracterizado mais como ‘pronto atendimento’.” (ALMEIDA et al..1997, p. 76)

Assim, as propostas do Programa Saúde da Família apontam na direção da substituição dos paradigmas clássicos da organização do trabalho e da busca pelo desenvolvimento do usuário enquanto sujeito do processo de manutenção e recuperação de sua saúde. Assume o compromisso de prestar assistência universal, integral, equânime, contínua e, acima de tudo, resolutiva à população (BRASIL, 1996a).

Um dos objetivos do PSF é a mudança da lógica clínica - centrada no atendimento médico – para uma visão epidemiológica, com a realização de trabalho em equipe, por meio do qual cada profissional contribui com o seu saber, na responsabilização pelo processo assistencial a uma população adscrita. Propõe ainda o enfrentamento dos problemas levantados e não apenas a resolução imediata do tipo ‘queixa-conduta’ e para isso busca integrar os diferentes saberes dos trabalhadores e a vinculação do serviço com a comunidade. Para essa nova visão de cuidado à saúde, faz-se necessária uma nova ‘modelagem’ do trabalho.

O PSF trabalha com base nos seguintes princípios (BRASIL, 2001a): Caráter Substitutivo: pois veio substituir o modelo antigo e tradicionalista e, portanto, não significa criação de novas unidades de saúde, a não ser onde não exista. Desse modo, os serviços dos Centros de Saúde é que serão reorganizados de acordo com o novo modelo; Hierarquização: a Unidade de Saúde da Família está inserida no primeiro nível de ações e serviços do sistema local de assistência,devendo ocorrer a integração dos níveis de atenção à saúde: primário, secundário e terciário;

Territorialização: porque há um território de abrangência definido, além de uma população adscrita, ou seja, um número determinado de famílias, para cada equipe; Trabalho em equipe multiprofissional: cada equipe do PSF é composta, no mínimo, por um médico - generalista, uma enfermeira, uma auxiliar ou técnica de enfermagem e de quatro a seis agentes comunitários de saúde (ACS).

Intersetorialialidade, ou seja, a resolução de problemas entre diferentes instâncias e serviços (segurança, educação, meio-ambiente) do município e o controle social.

A finalidade do PSF é propiciar o enfrentamento e a resolução de problemas identificados, pela articulação de saberes e práticas com diferenciados graus de complexidade tecnológica, integrando distintos campos do conhecimento e desenvolvendo habilidades e mudanças de atitudes nos profissionais envolvidos. Ao mesmo tempo, determina desafios para os profissionais e pessoal técnico, no enfrentamento do novo modelo, do mercado e das condições de trabalho. Trata-se de uma nova concepção de trabalho, uma nova forma de vínculo entre os usuários dos serviços de saúde e entre os membros de uma equipe, permitindo maior diversidade das ações (BRASIL, 2001a).

O Ministério da Saúde preconiza atribuições para cada um dos membros da Equipe Saúde da Família que são, em linhas gerais (BRASIL, 2000):

Enfermeiro: executar cuidados diretos de enfermagem, fazendo a indicação para a continuidade da assistência prestada; realizar consulta de enfermagem, solicitar exames complementares, prescrever/transcrever medicações; planejar, gerenciar, coordenar, executar e avaliar a Unidade de Saúde da Família; supervisão e coordenação das ações dos Agentes Comunitários de Saúde e de auxiliares de enfermagem.

Médico: realizar consultas e procedimentos na unidade e no domicílio; ações de assistência integral em todas as fases do ciclo de vida e a todos os gêneros.

Auxiliar ou técnico de enfermagem: realizar procedimentos de enfermagem dentro das suas competências técnicas e legais, nos diferentes ambientes, unidade e nos domicílios.

Agente Comunitário de Saúde: realizar mapeamento de sua área; cadastramento das famílias, com atualização permanentemente através de visitas domiciliares mensais; identificação de indivíduos e famílias expostos a situações de risco.

As Equipes de Saúde da Família (ESF) trabalham com um número fixo de famílias: de 600 a 1.000, com o limite de 4.500 habitantes. Cada ACS cobre uma área de aproximadamente 20 a 250 famílias, dependendo da realidade geográfica, econômica e sociopolítica da área e seu acesso. A atuação das equipes ocorre, principalmente nas unidades básicas de saúde, nas residências e na mobilização da comunidade, caracterizando-se: como porta de entrada de um sistema hierarquizado e regionalizado de saúde; por intervir sobre os fatores de risco aos quais a

comunidade está exposta; por prestar assistência integral, permanente e de qualidade; por realizar atividades de educação e promoção da saúde (BRASIL, 2001a).

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