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O TRABALHO E OS SABERES DO TRABALHO

2.2 Historicidade do trabalho da saúde e da enfermagem

Ao iniciarmos esse tema, cabe salientar que, o estudo dos saberes no trabalho em saúde implica o reconhecimento da existência de uma rede de poder- saber constituída no bojo da desigualdade entre os sexos, ou seja, determinada por relações fundadas sobre as diferenças entre homens e mulheres, como forma primeira de significar essas relações de poder. Nesse sentido, lembramos também, que o setor saúde é composto, em sua maioria, por mulheres (em torno de 75% do pessoal). Destas, a maior parte encontra-se no serviço de enfermagem.

Jussara Brito (1999) em seu livro: Saúde, trabalho e modos sexuados de viver, mostra os resultados das investigações de diferentes grupos de estudo sobre a divisão social e sexual do trabalho. Estes elaboram a tese sobre a correlação entre as relações de classe e de gênero, à qual acrescentamos as questões de raça, que fundamentam o “paradigma de transversalidade” das relações sociais. De modo que, não se pode entender classe social e gênero sem a consideração das outras dimensões.

Assim, a questão do gênero15 tem se mostrado presente em toda história da saúde. Segundo Scott (1995, p. 88), “o gênero é um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual o poder é articulado.” Sob essa perspectiva, a análise

15

Para mais detalhes ver: LOPES, M.J.M.; MEYER, D.E.; WALDOW, V.R. (Org.) Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996; LOURO, G.L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós- estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997; BRUSCHINI, C. UNBEHAUM, S. Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Editora 34. Fundação Carlos Chagas, 2002;

das relações no setor implica em determinantes históricos e sociais oriundos da opressão e submissão da mulher ao homem na sociedade, ocupando esta os espaços privados e lutando pela conquista do espaço público - referente ao trabalho, considerado masculino.

A mulher sempre se ocupou do cuidado no domínio privado e foi por isso considerada com todas as ‘qualidades’ para exercê-lo no domínio público. Assim, uma das formas de a mulher exercer o trabalho fora do núcleo familiar foi através do cuidado aos doentes – considerado então, como uma extensão do trabalho doméstico e caracterizado como feminino. As mulheres, ao entrarem em outra esfera, assumem uma posição subordinada na hierarquia institucional hospitalar por meio da reprodução das relações de dominação homens/mulheres presentes nas relações patriarcais. “Capitalismo e patriarcado produzem, no interior das organizações de trabalho, alianças que subordinam as mulheres trabalhadoras ao poder masculino.” (FONSECA, 1996, p. 70).

É importante notar que o hospital, nessa época, não era um local de cura. Conforme Foucault (1986, p. 109), o hospital antes do século XVIII era uma instituição de assistência aos pobres, como também de separação e exclusão, sob a administração de religiosos, e contava com o trabalho de mulheres leigas. Até meados deste século, a visita do médico ao hospital era irregular, sua presença era requisitada pelos religiosos para “os mais doentes entre os doentes, mais como uma justificação do que uma ação real.”

Quando o hospital passa a ser um instrumento de cura, o médico se torna o responsável pela organização hospitalar. Esta reordenação não se deu a partir de uma técnica médica, mas em função da posição social ocupada pelo médico, por meio de uma tecnologia que pode ser chamada política: a disciplina (FOUCAULT, 2004).

A prática de enfermagem, que era independente da prática médica, passa a ser dependente: “o saber médico traduz-se também em poder que se cristaliza no topo da hierarquia hospitalar e passa a dirigir todas as práticas advindas da divisão social no hospital. As relações de dominação-subordinação se estabelecem” (ALMEIDA; ROCHA, 1989, p. 40). Aqui, cumpre lembrar, que o saber médico se constituiu, também, a partir de uma ação desempenhada pela

enfermagem: a dos registros das informações. Principalmente tendo-se em conta que o médico não estava presente diariamente no hospital, mas tomava ciência dos fatos, evolução e piora dos pacientes por meio dessas anotações – que persistem até os dias de hoje, alimentando seu saber.

Assim, é com a transformação do saber e da prática médica que se dá a distinção entre o médico e os demais trabalhadores do hospital. Para Foucault (1986), com o nascimento da clínica, a profissionalização dos diferentes agentes deu-se por meio da articulação entre saber e poder médico, instituindo-se uma série de práticas disciplinares, de regulação das relações e do espaço institucional, a partir da hegemonia médica, em torno da qual foram se constituindo todas as demais profissões.

Na hierarquização das práticas em saúde, o tratar torna-se ação fundamental da cura e o cuidar ocupa a posição de ação auxiliar, sem autonomia, sem força transformadora no processo saúde–doença exercendo uma ação invisível, como um meio para que a medicina realizasse sua função. Segundo Lopes (1996, p. 78), essas construções são ideológicas e criam valores de acordo com os tipos de trabalhos e da mão de obra: “as exigências feitas às mulheres são classificadas como qualidades e não qualificação”. A autora assinala que, sobretudo para as auxiliares de enfermagem, são exigidas as ‘qualidades naturais’ construídas no aprendizado doméstico do ser mulher e ser mãe.

A busca pela ‘naturalização’ do cuidado é também uma estratégia do capital que banaliza a atividade e não a recompensa adequadamente do ponto de vista material. É uma força de trabalho feminino ‘naturalmente’ qualificado que permite menores salários e a diminuição dos custos da assistência.

Nessa direção, para Fonseca (2000) as mulheres das classes mais simples, tratadas por longo tempo como ‘inúteis’, são consideradas pertencentes a uma espécie de natureza moralmente inferiorizada, e por isso podem responder pelo trabalho manual, repetitivo, considerado feminino e, portanto, desqualificado. São tidas como ‘incultas’ e trabalham pesadamente para superar suas condições de desamparo material e social, motivadas por questões da sua sobrevivência e a dos seus. Devido aos baixos salários, não conseguem se estabilizar economicamente e se tornar independentes e, por esse motivo, mantêm-se submetidas a uma figura

masculina; outras se submetem a duplas ou triplas jornadas de trabalho, colocando em risco a sua saúde e os melhores anos de sua vida.

Segundo Brito (1999) o trabalho das mulheres pode ser focalizado em seu caráter particularmente contraditório, como espaço de exploração e prazer, de modo que quando se trata do trabalho doméstico, as mulheres, de modo geral, desempenham-no como uma tarefa ‘pseudodesignada’ e naturalizada como sua, além de assumir toda a bagagem do trabalho externo.

Assim, pautadas no referencial da autora, reafirmamos que o trabalho da enfermagem reedita, em linguagem própria, os aspectos de classe e gênero que definem as relações sociais e que, portanto, vão se refletir no processo de transformação do novo modelo da saúde.

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