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A subjetividade do trabalhador e a construção de saberes

O TRABALHO E OS SABERES DO TRABALHO

1.3 A subjetividade do trabalhador e a construção de saberes

A partir da reestruturação do capital, a subjetividade do trabalhador passa a ser foco de interesse sob diferentes aspectos. Por um lado, a flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo vai exigir, dentre outras coisas, um trabalhador participativo, com iniciativa e criativo. Além disso, os caminhos abertos pelas novas tecnologias de produção e de gestão permitiram formas descentralizadas de trabalho, abrindo um mundo de possibilidades para a interatividade e a emergência criadora da subjetividade. Por outro lado, vale lembrar que a subjetividade também se mantém aprisionada,

quando solicitada a contribuir diretamente com a lucratividade do capital (ANTUNES, 2000). De qualquer forma, a criatividade que se consubstancia na solução de problemas, na construção, aquisição e mobilização de saberes é uma faceta importantíssima do mundo do trabalho na atualidade.

Visando a compreensão do termo, é importante esclarecer que tomamos para este estudo, a noção de subjetividade enquanto produção histórica e sua natureza dialética. Para Campos e Machado (2000), no Dicionário da Educação Profissional

Subjetividade diz respeito ao que constitui o sujeito, aos estados em que ele se apresenta nas ações e relações sociais que estabelece (...) Os fatos e estados concernentes ao trabalhador nas relações de trabalho são inseparáveis dos sentidos subjetivos que tais momentos têm para ele (...) O social e suas normas, as determinações econômicas, constituem-se como parte do desenvolvimento subjetivo. Mas a subjetividade do trabalhador não é um mero reflexo da objetividade externa. Ela diz respeito às diferentes formas de relação através das quais os trabalhadores revelam e ampliam suas potencialidades diante das situações em que vivem. A subjetividade do trabalhador não é, portanto, definida externamente, mas numa relação dialética e complexa entre ele as circunstâncias em que se encontra (...) (CAMPOS; MACHADO, 2000, p. 318-9)

Consideramos relevante resgatar o alerta de Silveira e Doray para o fato de que o tema da subjetividade, ainda hoje, pode ser alvo de críticas por parte de algumas correntes que se propõem marxistas. Contudo, os autores em seu livro Elementos para uma teoria marxista da subjetividade reafirmam que esta, bem como a questão da individualidade nunca foram abandonadas ou suprimidas no interior do pensamento marxista, pelo contrário, na “dialética histórica, Marx se recusa a considerar o homem apenas em seu caráter determinado, como sendo devido, tornado, já posto, petrificado: mas o considera em seu movimento absoluto do vir-a-ser.” (SILVEIRA; DORAY, 1989, p.12)

Nessa perspectiva, Lucien Sève, membro do Instituto de Pesquisas Marxistas, no mesmo livro, assinala que a construção do indivíduo implica a assimilação durante a sua vida das demais objetivações na elaboração de sua própria pessoa, ou seja, o ser humano somente se individualiza por meio do processo histórico-social. Para o autor, a personalidade é fruto da síntese de processos biológicos e psicológicos que interagindo com o meio transforma o

indivíduo numa autocriação, por meio da ação e da consciência. A ação consciente vai determinar a formação de capacidades diversas, motivos, finalidades, sentidos, sentimentos, uma gama de processos pelos quais o indivíduo adquire existência psicológica. Nas palavras do autor, “a humanidade se manifesta sempre sob dois modos: formação social, formação individual, que permanentemente passam uma pela outra (...) uma é a base da outra.” (SÈVE, 1989, p. 160).

No campo da saúde, toda ação evoca elementos de uma ordem mais subjetiva ligada aos processos afetivos, cognitivos e sociais, experimentados pelos trabalhadores em suas realidades profissionais e nas diversas relações interpessoais que estas implicam. Segundo Merhy (1997), o trabalho em saúde distingue-se dos demais ofícios por haver sempre um ‘outro’ diretamente implicado, seja ele trabalhador ou usuário; ocorrendo, portanto, um entrecruzamento de subjetividades em um contexto especial. Assim, a ação em saúde não tem um único movimento, mas se constitui na e pela relação, que por sua vez, vai determinar diferentes formas de subjetivação.

Para Campos (1997), os processos de subjetivação são socialmente produzidos e resultam, também, da estrutura e da organização dos processos de trabalho. Ao mesmo tempo, tais processos são influenciados pela ação do indivíduo e do coletivo de trabalho, num movimento contínuo e dialético.

Discutindo a transformação do sujeito na saúde, Teixeira (2001) assinala que o indivíduo situa-se no entrecruzamento de múltiplos vetores de formação da subjetividade. O autor toma a subjetividade como uma produção dos processos coletivos e sociais, sem subestimar as dimensões individuais dos processos de subjetivação. Defende-se, portanto, uma subjetividade pensada enquanto processo de subjetivação, que diz respeito a formas de estar, pensar e sentir o mundo e atravessada por questões políticas, econômicas e sociais.

Segundo Merhy e Franco (2003, p. 318), o trabalho em saúde é “sempre relacional, porque depende de ‘trabalho vivo’ em ato, isto é, o trabalho no momento em que este está se produzindo.” Ao produzir um ato de saúde, o trabalhador intervém com base no reconhecimento que faz do problema e da necessidade do usuário apreendida por ele, a partir do que, vai desenhar em seu pensamento a ação a se desenvolvida.

O trabalhador mobiliza assim, saberes e valores diversos que “fazem sentido de acordo com os lugares que ocupa naquele encontro e conforme as finalidades que o mesmo almeja.” (MERHY, 2000, p. 109). Nada acontece da mesma forma de um dia para outro ou de uma situação para outra. A esta instabilidade Schwartz (1998) denomina ‘as infidelidades’ do meio, da vida e também do trabalho. São as várias formas de arbitrar entre uma ação e outra; é a gestão da atividade que implica em diferentes escolhas, diante das diferentes situações que se apresentam ao trabalhador.

Conforme Merhy e Franco (2003), o trabalho vivo em ato é a potência instituinte para a mudança do modelo assistencial. Chamamos a atenção para esse dado, pois é no micro-espaço de trabalho, em especial na micropolítica que ali se opera na gestão da atividade, que o trabalhador define as possibilidades, ou não, de produção de novos comportamentos, novas posturas, novas subjetividades (MERHY, 2002; SCHWARTZ, 2000). Nesse sentido, há no trabalho concreto, expressão do distanciamento entre trabalho prescrito7 e trabalho real, “um espaço que coloca em cena não só os saberes mobilizados na produção, mas também, a relação singular que cada trabalhador estabelece com estes saberes e, logo, a sua subjetividade.” (SANTOS, 1997, p. 14).

Assim, a depender da forma como os trabalhadores se constituem e se implicam no e com o trabalho do PSF – e suas propostas de mudança - é que os objetivos poderão ser mais ou menos alcançados, quais sejam: a construção de um trabalho produtor de vínculo, acolhida, responsabilização e autonomia dos envolvidos. Campos (1997, 1999, 2000) defende a criação de novas formas de organização e gestão do trabalho de modo a permitir a constituição de “outra cultura e outras linhas de subjetivação” e alerta para o fato de que

o modo de produção de serviços de saúde não é obra do acaso, ao contrário, refletem interesses, diretrizes e valores dominantes em uma certa época e em um dado contexto, concorrendo para que cada modo específico de organizar a vida sirva à concretização de determinados objetivos e não de outros. A lógica de organização do governo e dos processos de trabalho não são nunca inócuas, portanto. (CAMPOS, 1999, p. 395)

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Para a ergonomia, o trabalho real é aquele efetivamente realizado e o trabalho prescrito é apresentado como o conjunto das condições determinadas, da tarefa predefinida, das normas e objetivos traçados.

O autor reafirma a necessidade de se inventar uma nova ordem organizacional do trabalho que estimule o compromisso dos trabalhadores com a produção de saúde, com a produção de autonomia e a produção de vida (CAMPOS, 2000).

Os autores como Merhy (1997) e Campos (2000) apontam, também, que é possível desenvolver modos de subjetivação singulares, os chamados processos de singularização, como alternativa aos modos de produção na saúde. Os processos de ressingularização presentes na atividade de trabalho permitem a construção de novos saberes e de diferentes formas de fazer, reconfigurando o trabalho estruturado.

Onocko Campos e Campos (2006, p. 685) propõem um tipo de organização dos serviços de saúde que considere os indivíduos, grupos e coletivos em sua dimensão ‘objetiva e subjetiva’, ‘singular e universal’ para que nesses espaços seja trabalhada a autonomia possível, tanto do usuário quanto do trabalhador. Nessa perspectiva, é importante que os sujeitos se disponham a interferir e – por sua vez – sofrer a interferência do processo, participando da construção de regras e normas que compõem as estruturas, voltados para uma “produção de saúde compromissada com a defesa da vida.” Para isso, é importante a democratização do pensar e do fazer, numa perspectiva interdisciplinar, na qual diferentes saberes são mobilizados, compartilhados e construídos individual e coletivamente, numa divisão mais igualitária de poder.

Assim, a seguir, buscamos compreender como se dá essa relação de saberes, sua construção e mobilização no cotidiano do trabalho.

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