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O recentramento da atividade: possibilidade de construção de saberes no trabalho

O TRABALHO E OS SABERES DO TRABALHO

1.5 A atividade: fonte de saber no trabalho

1.5.2 O recentramento da atividade: possibilidade de construção de saberes no trabalho

isolada, uma vez que sempre envolve um outro: o usuário, sua família ou comunidade, incluindo, também, os demais trabalhadores, bem como as ações realizadas por outros profissionais, sem perder de vista as anteriores e aquelas que estão por vir.

1.5.2 O recentramento da atividade: possibilidade de construção de saberes no trabalho

Schwartz aborda o trabalho a partir da noção de atividade industriosa, realizada por seres humanos historicamente situados no tempo e no espaço, utilizando-se dos meios colocados à sua disposição. O autor parte dos postulados da ergonomia que apontam a distância entre o trabalho prescrito - os regulamentos,

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Para mais detalhes, ver CLOT,Y. Le réel à la source des compétences: l’exemple des conducteurs de trains en banlieue parisienne. Connexions, 1997, v. 70, n. 2, p. 181-192.

as normas de procedimentos, e o trabalho real - aquilo que de fato é realizado, constatando aí uma organização viva do trabalho, da qual o trabalhador não é mero executor, mas quem também define o teor de sua atividade.

O ambiente de trabalho é um ambiente técnico, onde existe toda espécie de imprevistos, onde as situações vão determinar diferentes formas de ação. Nas normas antecedentes - as prescrições, os programas - não estão previstas as infidelidades do meio. Assim, o trabalhador para gerir essas infidelidades faz uso de si, buscando encontrar equilíbrio entre o prescrito, as suas próprias normas e as do coletivo, para renormalizar sua ação, modificando-a. O trabalho, portanto, nunca é mera execução, mas uso, pois o trabalhador vivencia um verdadeiro ‘debate de normas’, ao que Schwartz chama as dramáticas do uso de si. “Uma dramatique é, portanto, o lugar de uma verdadeira micro-história (...), na qual cada um se vê na obrigação de se escolher e ao escolher, orientar sua atividade.” (SCHWARTZ, 1998) Nessa direção, Campos (2000, p. 55-56) assinala que, na saúde, os processos não podem ser padronizados, “é impossível eliminar os imprevistos”. Ainda que haja regularidade, “cada caso é um caso singular, obrigando a invenção de soluções nem sequer imaginadas.” O trabalhador exercita, o tempo todo, uma gestão de si, uma gestão que envolve escolhas, valores, arbitragens. Cada uma dessas micro-escolhas é feita partindo de valores que podem ser explícitos ou permanecer obscuros, fazendo com que cada situação de trabalho, por mais idêntica que possa parecer, seja única. A gestão de si faz parte da vida e, portanto, sempre esteve presente inclusive no trabalho taylorizado. Para Schwartz (2000), toda situação de trabalho é convocação do uso de si, ou seja, vai exigir uma mobilização cognitiva e afetiva do trabalhador.

A noção de uso de si remete ao indivíduo convocado em toda a sua subjetividade, “são recursos e capacidades infinitamente mais vastos que os que são explicitados, que a tarefa cotidiana requer.” (SCHWARTZ, 2000, p. 41). A palavra uso vai tomar dois sentidos, o uso de si pelos outros e o uso de si por si mesmo. Num primeiro sentido - o uso de si pelos outros – remete às condições históricas que são dadas e que são produtoras de subjetividade. Engloba desde os modos de produção capitalista, tudo aquilo que os homens adquirem do patrimônio histórico-cultural, as capacidades adquiridas, as limitações dos espaços de iniciativa e de decisão, os valores, as formas de desenvolvimento ou limitação de saberes, as

formas hierárquicas. O outro sentido da palavra uso diz respeito ao uso que cada um faz de si próprio, ou seja, utiliza suas potencialidades, faz escolhas de acordo com as circunstâncias, com a prescrição e com seus valores. (SCHWARTZ, 2000).

Segundo Schwartz (1998), a situação real de trabalho é, ela mesma, sempre fonte de limitações e de possibilidades, e o sujeito, na atividade, tende a ressingularizar, a redefinir seu meio de trabalho e de vida atuando, na vida e no trabalho, segundo a sua história. Essa história “remodifica as normas, as regras e os procedimentos, aprofunda os saberes e oferece de volta indivíduos sempre ressingularizados pela vida.” O autor acrescenta que, nesse sentido, homens e mulheres no trabalho fazem história, “é a dimensão irredutivelmente política do trabalho e por aí mesmo a dimensão política da produção e da legitimação dos saberes no trabalho.” (SCHWARTZ, 2003, p. 27).

Schwartz (2004) questiona, então, quem pode definir o que é válido para cada indivíduo, se cada um traz consigo um patrimônio próprio à sua história, os saberes e valores imanentes. O estudo do trabalho implica, portanto, em identificar quais os valores envolvidos na atividade e, ao mesmo tempo, reconhecer a carga significativa destes, sem generalizá-los, pois as decisões são sempre históricas e circunscritas a uma situação local.

Os conceitos até aqui expostos se aplicam ao campo da saúde, onde o trabalhador, na relação junto ao usuário, tem que gerir sua ação, fazer escolhas que nunca são simples. Além de estar voltado para os programas, os manuais e as prescrições das tarefas, vê-se confrontado com as necessidades, as expectativas e as especificidades do usuário; confronta-se também, com sua própria história de vida, seus saberes e valores e, até mesmo, com as limitações do trabalho. De maneira que, lembrando Merhy (2002, p. 49), os modos de ação vão se configurar em “processos de intervenção em ato, operando como tecnologias de relações, de encontros de subjetividades, implicando um certo grau de liberdade na escolha do modo de realizar essa produção.”

Assim, para atingir os objetivos esperados, o trabalhador ajusta os meios a seus fins, num processo contínuo de micro escolhas; fazendo uso de si, define como direcionar a atividade de acordo com a singularidade do usuário buscando certo resultado. A partir daí, esse modo de ação passa a estar contido em um saber-

fazer; um saber que não esgota nunca sua recriação em ato por mais que esteja inserido em uma técnica ou mesmo em uma tarefa prescrita passo a passo.

Esse aprendizado, a partir do trabalho, é descrito por Daisy Cunha, no delineamento do que denomina ‘pedagogia da atividade’:

as experiências que o homem faz de si no trabalho se encontram associadas às experiências feitas em outras vivências. Elas se enraizam na história profissional e pessoal, integrando a formação da pessoa, sua experiência de vida, seu patrimônio vivido (...) Para fazer face à infidelidade do meio, a atividade industriosa deve reconfigurar e renormalizar aprendizagens cristalizadas sob a forma de experiências e/ou conhecimentos mais ou menos formalizados e/ou interiorizados. Nesse processo se inscrevem as dimensões educativas do agir humano. Somos levados a apreender o fenômeno educativo em sua gênese, podendo fundamentar uma pedagogia que se ancora no ato de trabalhar. (CUNHA, 2006a, p.44).

O estudo da atividade nos remete, assim, à formação das singularidades do ser humano, sua formação enquanto sujeito que reassimila e retrabalha tanto os aspectos físico-biológicos, como também os aspectos psíquicos que envolvem os processos simbólicos estruturantes e as coerções internas de formação inconsciente11 (SCHWARTZ, 2000). O recentramento da atividade seria, portanto, uma forma de reconstrução do ‘si’ íntimo, do sujeito do inconsciente no trabalho, não pela repetição, mas pela recriação do ato. Novos saberes são construídos e os valores redimensionados em toda atividade:

Estes saberes espraiam-se sem descontinuidade das formas de inteligência incorporadas em nosso corpo até os patrimônios de experiência pensados, raciocinados, transmissíveis. Eles vão de aprendizagens não-conscientes, não expressas em linguagem, dificilmente perceptíveis até as maneiras de fazer socializadas, justificáveis, manifestas (...) (SCHWARTZ, 2003, p. 24)

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A dimensão inconsciente do saber tem sido objeto de pesquisa de diversos autores, constituindo- se um outro campo de investigações. Mais detalhes ver: HACHUEL, F. Savoir apprendre, transmettre: une approche psychanalytique du rapport auxiliar savoir. Paris: La Découverte, 2005; DINIZ, M. O método clínico na investigação da relação com o saber de quem ensina.Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação/UFMG, Belo Horizonte, 2005.

São saberes do corpo-si, constituídos na esfera particular ao longo da vida, pois o corpo sempre está presente e faz parte das habilidades, dos savoir-faire, um ‘saber engajado.’ Segundo Cunha (2006b, p.6 ), “pode-se falar de ‘incorporação’, negociação obscura com o próprio corpo (...)” e por essa razão, sua transmissão e legitimação nem sempre é facilitada, não sendo possível expressar tudo por meio da linguagem, pois sempre nos escaparão elementos do que acontece em nossos circuitos, em nossas formas de aprendizagem (SCHWARTZ, 2007a).

Nessa direção, Schwartz (1988) aponta o ato do trabalho como forma de evolução da espécie e mesmo da vida humana. Trata-se de novas formas de apropriação do processo de trabalho à realidade do corpo, novas engenhosidades apoiando-se sobre, e enriquecendo o patrimônio da espécie: “O descentramento do ser humano biológico é sempre acompanhado de um recentramento, em parte individual, em parte coletivo, a partir e em torno das exigências de adaptação criadoras que ele porta enigmaticamente.” Em investigação com condutores de trens, o autor descreve as capacidades desenvolvidas por esses trabalhadores “como uma espécie de sintonia instantânea” que lhes permite articular seus desempenhos, tendo em vista toda seqüência de atividades executadas pelos demais colegas. Desse modo, o trabalhador, ao recriar a atividade, desenvolve, de forma imperceptível, suas competências físico-psiquico-biológicas para - e a partir do – trabalho.

Também na área da saúde, o trabalho remete a uma “competência complexa, profundamente ancorada numa cultura muito específica (...) local de tratamento dos imprevistos”, onde a construção de um saber-fazer exige a instauração de uma dialética inteligente entre os conteúdos da teoria e a dimensão experimental da atividade que conformam as ‘competências práticas’ (SCHWARTZ, 1998).

Toda atividade assistencial depende dessas competências ancoradas no desenvolvimento de habilidades físicas específicas para o seu desempenho, como a destreza manual e o alargamento das capacidades sensoriais: audição, visão, tato, olfato, o que permite melhor apreensão dos sinais e sintomas trazidos pelos pacientes que buscam os serviços de saúde. Muitos desses sinais passam despercebidos pela maioria das pessoas, mas são capturados pela astúcia do trabalhador, astúcia desenvolvida na construção cotidiana dos saberes do corpo,

necessários à competência profissional. Dejours (2003) discute sobre essas ‘inteligências do corpo’, chamando-as de ‘inteligência astuciosa’.

São múltiplos, portanto, os fatores intervenientes na aquisição dos saberes da atividade. Assim, a busca por novos meios de adaptação reclama um recentramento do equipamento biológico humano às novas necessidades, uma ‘vigilância sensorial’, relacional e intelectual. Uma vez adquiridos, esses saberes vão configurar na memória corporal do trabalhador. São saberes do corpo-si, "difíceis de serem verbalizados ou transmitidos", porque adquiridos a partir da experiência e, portanto, próprios ao trabalhador (SCHWARTZ, 1998).

Apresentamos até o momento a face formadora da atividade, contudo, não podemos deixar de assinalar que, se por um lado a atividade é fonte de saber, por outro lado o trabalhador, ao se ver impedido de renormalizar sua ação, depara- se com um conflito que pode vir a comprometer os sentidos do trabalho e, mesmo, a sua saúde psíquica ou física. Consideramos, assim, importante buscar compreender como ocorre esse processo, salientando novamente, que a separação que ora fazemos entre a face formadora e deformadora do trabalho é somente didática.

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