• Nenhum resultado encontrado

A reestruturação produtiva e os saberes do trabalhador

O TRABALHO E OS SABERES DO TRABALHO

1.2 A reestruturação produtiva, os saberes do trabalhador e o campo da saúde

1.2.2 A reestruturação produtiva e os saberes do trabalhador

Diferentes épocas determinaram diferentes formas de enxergar e de tratar o saber do trabalhador. O período do pós-guerra até final da década de 1960 caracterizou-se pela intensificação da produção em série, centrado nas idéias da ‘administração científica’, que produziu uma concepção de trabalhador executor, reduzindo as relações de produção a dois segmentos: o que concebe, aquele dos administradores e o que executa as tarefas, a massa de trabalhadores - como se as tarefas pudessem ser, por excelência, o lugar do mecânico e do repetitivo (ANTUNES, 2000). O taylorismo6 pautou-se nos conhecimentos tradicionais que, no passado, possuíam os trabalhadores, para transformar esses conhecimentos em normas e regras que pudessem ser cumpridas, minimizando o tempo gasto e otimizando a produção, como se o trabalhador pudesse ser reduzido a um reprodutor de tarefas.

Com a reestruturação produtiva e o incremento da produção flexível, o saber do trabalhador passa a ser mais valorizado, buscando-se um indivíduo que possua saberes e habilidades que lhe permitam adaptar e aplicar seu conhecimento em diferentes tarefas - por vezes, desenvolvidas simultaneamente. Além disso, a era

6

Para mais detalhes, ver: BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987; GOUNET, T. Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel. São Paulo: Boitempo, 1999.

da microeletrônica vai exigir um trabalhador cada vez mais qualificado e flexível. Nesse sentido, o autor acrescenta que, apesar de todo o progresso tecnológico, não é possível acontecer uma total substituição do homem pela máquina, uma vez que a ação humana é essencial pela sua capacidade de gerir as incertezas e pelas competências específicas, difíceis de serem objetivadas (ANTUNES, 2000).

O conhecimento do trabalhador, contudo, nunca deixou de estar presente, mesmo nas formas de trabalho mais taylorizadas. Nas palavras de Aranha (1997, p. 21) “este conhecimento tácito, muitas vezes, reprimido pela gerência, nunca deixou de ser continuamente produzido e demonstra que, apesar de seus esforços, o capital ficou longe de conseguir separação completa, ou mesmo parcial, entre mão e cérebro”. No processo de trabalho, pode-se verificar que o trabalho prescrito, por mais detalhado que seja não contempla, de fato, toda a atividade e necessidades reais da produção, o que comprova, mais uma vez, a impossibilidade da separação entre concepção e execução.

Santos (1997) afirma que os processos flexíveis e integrados exigem uma organização do trabalho que aproxime a execução da concepção, e a prescrição de objetivos substitua a prescrição de atividades:

A prescrição passa, desse modo, a se referir aos objetivos amplos do processo produtivo, direcionados ao sistema como um todo. Há um deslocamento das exigências em relação às técnicas operatórias especializadas para uma regulação tecnológica do conjunto. (SANTOS, 1997, p.18)

É, portanto, sob essa lógica que um novo perfil do trabalhador vai sendo exigido, de maneira que ele possa atuar em diferentes campos, ampliando sua capacidade de relacionamento interpessoal, aliada ao conhecimento e à habilidade técnica.

Nas novas formas de organização do trabalho, os trabalhadores têm sido chamados a incorporar seus saberes nos projetos empresariais, contudo, esses saberes não ganham a legitimação devida, pelo contrário, o que se tem constatado é que as organizações, de fato, utilizam esse saber sem valorizá-lo adequadamente. E mesmo esse ato criativo tende a ser regulado e controlado pela empresa, de maneira que ele não extrapole os limites do desejado e absorvível pela mesma. (ARANHA, 1998; ANTUNES, 2000; SANTOS, 2000a). Constata-se, assim, um

paradoxo: os saberes do trabalhador são interessantes quando podem ser aproveitados pela empresa, sem comprometimento algum e são incômodos quando vão além do limite por elas delimitado e quando se pretende uma forma mais efetiva de valorização e legitimação.

Por outro lado, Antunes (2000, p. 126-7) assinala o incremento das atividades intelectuais na esfera do trabalho produtivo, mostrando que a força de trabalho “apresenta-se, cada vez mais, como força inteligente ao equacionamento de problemas inesperados (...) É o trabalho imaterial que ativa e organiza a relação produção-consumo.” Como exemplo dessa nova configuração, o autor cita a expansão do trabalho em serviços ou nas comunicações, o aumento de atividades de pesquisa, marketing e publicidade, dando origem a uma crescente imbricação entre o trabalho material e imaterial – um trabalho para o qual a força física não é tão essencial quanto a capacidade intelectual do trabalhador.

Num contexto onde a tecnologia avança rapidamente, os sistemas de produção automatizados deixam de ser um conjunto de máquinas e passam a configurar sistemas a serem cada vez mais aprimorados em função da demanda e das inovações. Desse modo, “a produção de conhecimento torna-se um elemento essencial na produção de bens e serviço em que as capacidades dos trabalhadores de ampliar seus saberes tornam-se uma característica decisiva da capacidade de trabalho em geral.” (ANTUNES, 2000 p. 126).

Justifica-se, assim, o crescente interesse das organizações nas potencialidades e saberes dos trabalhadores e em sua qualificação:

O trabalho imaterial possui uma interseção clara entre a esfera da subjetividade do trabalho (no seu traço intelectual e cognitivo) e o processo produtivo, que obriga o trabalhador a tomar decisões, analisar situações, oferecer alternativas. O operário deve converter-se num elemento de integração cada vez mais envolvido na relação equipe/sistema (...) em um sujeito ativo da produção, em vez de simplesmente comandado. (ANTUNES, 2000, p. 127-8)

Com base nos argumentos de Bernardes, Peduzzi (2003) afirma que o produto das novas organizações do trabalho depende muito mais de trabalhos coletivos articulados, cuja prioridade é a produção de avanços tecnológicos, determinando uma valorização cada vez maior da capacidade de inovação, da

inventividade dos trabalhadores, de seus saberes. Essa nova estruturação do trabalho reclama uma qualificação diferenciada que inclui

habilidades cognitivas, de abstração e análise simbólica, comunicacionais; de inter-relação com os clientes e demais trabalhadores; iniciativa e criatividade; capacidade de trabalhar cooperativamente em grupo; competência para avaliar o produto de seu trabalho e tomar medidas para melhorar sua qualidade; e domínio de técnicas de planejamento e organização do trabalho. (PEDUZZI, 2003, p. 78)

Os saberes dos trabalhadores passam, portanto, a ter visibilidade diferenciada e a mobilização do savoir-faire coletivo, a necessidade de cooperação, aumenta nos planos vertical e horizontal das organizações. Assim, a excelência do desempenho das empresas contemporâneas vai depender, em grande parte, da capacidade de coordenação e cooperação dos trabalhadores, com uma maior integração de funções. Essa flexibilização funcional leva ao surgimento de novas relações no interior da divisão do trabalho, de maneira que o operário, o técnico e o engenheiro estabelecem novas relações recíprocas e contínuas no processo produtivo (ANTUNES, 2000).

Voltando, assim, ao nosso ponto de partida, é preciso ver nesse fenômeno uma processualidade contraditória. Ora, se a produção de saberes é algo que resgata a subjetividade do trabalhador na atividade do trabalho, se é uma expressão da dimensão concreta do trabalho, pode-se afirmar que, de alguma forma, as contradições entre o abstrato e concreto estão também se ressignificando. Se foi essencial para o capital apelar para o resgate dos saberes dos trabalhadores, ainda que buscando controlar a sua produção e aplicação, também se resgatou uma dimensão do sujeito. Até onde esse resgate é controlável, até onde os trabalhadores saberão barganhar essa nova utilização do seu ser buscando reverter o processo a seu favor, é a história, o movimento social, que poderá nos responder.

Documentos relacionados