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O TRABALHO E OS SABERES DO TRABALHO

1.6 Sofrimento e prazer no trabalho

Em seus estudos sobre o trabalho, Clot (2006, p.116) aponta uma distinção entre a atividade realizada e o real da atividade, enfatizando que a atividade realizada refere-se ao que efetivamente é feito enquanto o real da atividade engloba também “o que não se faz, o que não se pode fazer, o que se busca fazer sem conseguir – os fracassos – aquilo que se teria querido ou podido fazer, aquilo que se pensa ou que se sonha poder fazer (...).” Segundo o autor, há um desgaste do trabalhador no controle da atividade que ele, muitas vezes, não chega a realizar.

Nessa direção, Fernandez e Clot (2007, p.15) assinalam que “a atividade realizada é a que triunfou entre outras com as quais competia (...). Os conflitos entre as atividades possíveis são os que, finalmente, determinam o desenvolvimento da atividade vencedora.” Contudo, nem sempre a atividade ‘vencedora’ é aquela que

mais satisfaz o trabalhador. Em algumas situações, no conflito entre os possíveis ‘vence’ a atividade interdita. Trata-se de um processo vital para o sujeito, uma vez que o resultado deste trará conseqüências para o seu modo de ser e de estar no trabalho, como também, em alguns casos, para a sua saúde.

Há uma continuidade entre a prescrição e a atividade realizada, de maneira que cada um apresenta uma forma própria de lidar com as diferentes situações da atividade de trabalho. O trabalhador “ajusta seus esquemas pessoais - sensitivo-motores, cognitivos, emocionais – mobilizados na ação sob o duplo impulso do sentido pessoal da atividade e da eficiência das operações de trabalho.” Trata-se de um processo intimamente ligado à saúde do trabalhador, pois “somente o poder de ação a sua volta e sobre si mesmo é um fator favorável a saúde.” (FERNADEZ; CLOT, 2007 p. 16). E lembrando Canguilhem, os autores acrescentam que a saúde corresponde à capacidade de produzir novas normas, inclusive contra a norma vigente.

Os trabalhadores vivem, portanto, em permanente negociação da atividade em diferentes situações e graus de conflito. Esse movimento coletivo e singular é o que sustenta o sentido do trabalho para o trabalhador. Contudo, quando as limitações impedem o desenvolvimento, ou como descrito anteriormente, quando no conflito entre os possíveis ‘vence’ a atividade interdita, entra em cena o sofrimento psíquico.

Christophe Dejours, médico do trabalho, psicanalista, ergonomista e diretor científico do CNAM em Paris, desde a década de 70 tem se dedicado ao estudo sobre as relações entre saúde e trabalho. O autor pesquisou, a princípio, o sofrimento psíquico no trabalho, buscando constituir relações entre as obrigações e constrangimentos organizacionais e o desequilíbrio psíquico dos trabalhadores. Contudo, seus estudos não mostravam essa relação, mas sim um estado de normalidade. A partir destas descobertas, muda o nome de sua linha de investigação de psicopatologia para psicodinâmica do trabalho.

Vale notar que o autor, ao discutir a psicodinâmica do trabalho e, mais especificamente o sofrimento, fundamenta-se em todo arcabouço psicanalítico sobre a formação da subjetividade do sujeito e sua inserção cultural e social, sobre o qual não discorreremos.

Para Dejours (1992), o sofrimento é um estado afetivo, uma vivência subjetiva entre o desequilíbrio mental e o bem-estar. Ele faz parte da condição humana tanto quanto o prazer, podendo ser deslocado para atividades criativas ou se transformar em um sofrimento patogênico. Ao falar de sofrimento ‘normal’, o autor relaciona-o às vivências psíquicas da ordem do desejo, da busca de realizações e, portanto, remete ao ato criador. O sofrimento patológico ocorre quando o desejo é negado, quando as possibilidades de satisfação são impedidas ou foram esgotadas, afastando o sujeito dos processos de busca e de criação.

Nesse sentido, o contexto organizacional pode ser um fator desestruturante da saúde psíquica do trabalhador, gerando vivências de sofrimento, quando limita ou impede a liberdade de expressão de sua individualidade e subjetividade. O sofrimento no trabalho está vinculado aos sentimentos de indignidade, de inutilidade e de desqualificação dos quais resulta uma vivência depressiva. Para o Dejours (1992, p. 49), o sentimento de indignidade surge quando o trabalhador se depara com uma atividade desinteressante, uma tarefa repetitiva e ‘robotizada’; o sentimento de inutilidade “remete à falta de qualificação e de finalidade do trabalho”, uma atividade para ele sem significado; o sentimento de desqualificação está vinculado à imagem que o trabalhador faz de si, em função da desvalorização do seu trabalho e do não reconhecimento deste pelos demais. A falta de reconhecimento pode se manifestar pela insatisfação e descontentamento do sujeito podendo levar ao sofrimento psíquico.

Em seus estudos, Dejours (2003, p. 43) aponta o sofrimento como o ponto de partida e a origem da mobilização da inteligência e da subjetividade. No enfrentamento com o real do trabalho, isto é, com “os limites do saber, do conhecimento e da concepção com os quais se chocam os atos técnicos e as atividades de trabalho”, o trabalhador encontra a possibilidade de defesa na produção de estratégias que lhe permite escapar à descompensação emocional e à doença.

Pode-se depreender, então, que a patologia surge quando se rompe o equilíbrio estabelecido nesse processo de defesa e o sofrimento não é mais contornável, ou seja, quando o sujeito já fez uso de todos os seus recursos intelectuais e psico-afetivos para dar conta da atividade e das obrigações impostas

pelo trabalho. O trabalhador tem assim, uma percepção de que se esgotaram suas saídas e que nada pode fazer para se adaptar ou transformar o trabalho.

Por outro lado, as estratégias defensivas coletivas funcionam como regras, como um acordo compartilhado que permite aos trabalhadores funcionarem sob a forma de reação ou de uma adaptação diante das obrigações impostas pela organização. Funcionam, também, como um recurso que garante uma coesão e a construção, no coletivo do trabalho, da cooperação necessária para atingir os objetivos propostos (DEJOURS, 1992).

Devemos advertir que quando falamos da normalidade no trabalho, esta supõe sempre a existência do sofrimento. Não se deve confundir o estado de normalidade descrito por Dejours et al. (1994) com estado saudável, pois a normalidade refere-se a uma condição de equilíbrio, resultado de uma conquista do trabalhador diante do conflito entre as exigências do trabalho e a ameaça de desequilíbrio psíquico ou somático. Assim, o estado de saúde mental e física depende da forma como o sujeito vivencia o sofrimento no trabalho. Nessa direção, Benevides Barros e Barros (2007) discutindo a questão da dor e prazer no trabalho em saúde, afirmam que

o trabalhador não é mera vítima que sucumbe às sistemáticas tentativas de desqualificação/expropriação. O trabalho desempenha função importante na luta contra o adoecimento, na medida em que, sendo invenção, (re)existe, (re)criando o trabalhador e o próprio processo de trabalho. (BENEVIDES BARROS; BARROS, 2007, p. 67)

Assim, é sob a perspectiva da (re)existência e (re)criação no trabalho que, atualmente, alguns pesquisadores vêm desenvolvendo estudos acerca das relações entre saúde e trabalho, distanciando-se do reducionismo médico-biológico e higienista que caracteriza a Medicina do Trabalho e a Saúde Ocupacional, numa proposta que busca desfazer o liame dor-desprazer por meio da participação ativa e criativa dos trabalhadores. Estes estudos ultrapassam aquela visão ‘naturalizante’ do sofrimento no trabalho e permitem propor novos modelos de abordagem (SANTOS- FILHO, 2007).

Para a psicodinâmica do trabalho, se o sofrimento é da ordem do singular, sua solução é coletiva. Dejours (1992) defende, portanto, a criação de

espaços de circulação da palavra coletiva, pois é na escuta da vivência subjetiva coletiva dos trabalhadores que se abre a possibilidade para o sofrimento emergir e sua solução ser pensada por todos, pois a ressignificação do conteúdo do trabalho pode permitir a mudança e alívio dos sujeitos.

Nesse sentido, interessa-nos destacar a atual Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS (PNH), mais conhecida como Humanizasus, do Ministério da Saúde, que tem como um dos seus principais focos o “trabalho criativo e valorizado: construção de redes de valorização do trabalho em saúde, que se abre para pensar o cuidado aos trabalhadores.” (SANTOS-FILHO, 2007, p. 80).

O Ministério da Saúde, voltado para as questões do desenvolvimento humano no processo de trabalho, assessorado por pesquisadores, gestores e trabalhadores da área, instituiu a PNH:

apostar numa Política Nacional de Humanização do SUS é definir a humanização como a valorização dos processos de mudança dos sujeitos na produção de saúde. Há, portanto, uma inseparabilidade entre estes dois processos (...) de tal forma que não há como mudar os modos de atender a população num serviço de saúde sem que se alterem também a organização dos processos de trabalho, a dinâmica de interação da equipe, os mecanismos de planejamento, de decisão, de avaliação e de participação. (BENEVIDES; PASSOS, 2005)

Benevides e Passos (2005) esclarecem que “os princípios do SUS não se sustentam numa mera abstração, só se efetivando por meio da mudança das práticas concretas de saúde.” Assim, a humanização dever ser tomada em dois sentidos relacionados entre si, o de defesa da vida – “como um critério para orientar a avaliação de políticas públicas” – e o de desenvolvimento integral dos seres humanos, sejam eles usuários ou trabalhadores da saúde (CAMPOS, 2005).

A objetividade da Política de Humanização é que, orientada por princípios de uma investigação participativa, envolve trabalhadores dos níveis locais, comprometendo-se também, “com os modos de fazer, com os processos efetivos de transformação e criação de realidade” (BENEVIDES; PASSOS, 2005).

Verifica-se, então, algo muito novo na área da saúde: para a concretização do Humanizasus, um dos mecanismos utilizados pela PNH é dar voz

ao trabalhador por meio de uma aproximação efetiva entre os saberes do trabalho e os saberes da academia, utilizando para isso, diferentes dispositivos, como o Programa de Formação em Saúde e Trabalho (PFST) (BARROS et al. 2007).

O PFST é voltado para os trabalhadores em serviço, e seu desenvolvimento baseia-se na metodologia da Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP). Trata-se de uma estratégia de formação e pesquisa-intervenção que reúne um grupo de multiplicadores constituído por consultores, pesquisadores e trabalhadores locais que, por meio do diálogo-confrontação entre conhecimento científico e experiência do trabalhador buscam “compreender/ transformar as relações de trabalho nos equipamentos de saúde.” (BARROS et al. 2007, p. 109).

Schwartz (2006), ao falar das Comunidades Ampliadas de Pesquisa, metodologia utilizada pelo ergonomista Ivar Oddone12, junto aos trabalhadores italianos e posteriormente desenvolvida pela ergologia13 - afirma que estamos diante de uma complexidade epistemológica conjugando os saberes engajados, aqueles que se enraízam na história do trabalhador e os saberes formalizados, ambos a serem trabalhados por todos. Nessa metodologia, o cientista aprende com o trabalhador e a este são passados conhecimentos científicos necessários à sustentação das mudanças na atividade de trabalho. É a partir desses novos critérios de cientificidade que se pode inverter a lógica das formas instituídas no trabalho em saúde, tornando a ciência mais comunitária e a comunidade mais sábia, superando, assim, a cultura dos saberes instituídos (SÈVE, 1989).

Destacamos, portanto, neste estudo, a atual Política Nacional de Humanização por se tratar de uma Política Pública instituída em âmbito Nacional, que tem como princípio a participação e valorização dos saberes dos trabalhadores visando (re)criar os espaços e processos de trabalho, uma proposta e discurso inéditos, até então, na área da saúde:

No fazer/aprender, os próprios trabalhadores percebem-se como produtores de conhecimento. Aprende-se a fazer inventando, segundo um processo contínuo de aprendizagem (...) Trata-se de inventar pela prática de tateio, de experimentação, de

12

Ver: ODDONE, I. Redécouvrir l’expérience ouvrière. Paris: Ed. Sociales, 1981;

13

problematização das formas já dadas.” (BRASIL, 2006a, p. 9 - grifos nossos)

E mais:

No processo de trabalho, os trabalhadores “usam de si” por si. A cada situação que se coloca, o trabalhador elabora estratégias que revelam a inteligência que é própria de todo trabalho humano. Portanto, o trabalhador também é gestor e produtor de saberes e novidades. Trabalhar é gerir. Gerir junto com os outros.” (BRASIL, 2006a, p. 7)

Sob essa ótica, abrem-se novos horizontes para uma compreensão da saúde como capacidade de reinvenção dos processos, das atividades e dos produtos, segundo os quais o trabalhador não perde de vista a possibilidade de mudança, uma vez criados os espaços de escuta que permitem uma participação efetiva. O que nos lembra o grande educador Paulo Freire, parafraseando sua afirmação: “é a partir deste saber fundamental: mudar é difícil, mas é possível, que o trabalhador vai reconstruir suas ações, individual e coletivamente, renovando assim sua potência para agir e deixar de reagir.” (FREIRE, 1998, p. 88).

Finalizando esse tema, lembramos ainda, que a relação saúde-trabalho não diz respeito somente aos trabalhadores, pois as vivências, os valores, emoções e sentimentos não têm como ser separados entre a vida de dentro e de fora do trabalho. Toda a família é requisitada pelo sujeito em suas manobras para enfrentar as dificuldades do trabalho e, de maneira direta ou indireta, os familiares e aqueles que o circundam são atingidos, inclusive o usuário na relação assistencial. Nesse sentido, a banalização e/ou naturalização do sofrimento do trabalhador pode significar um descaso que resulta em prejuízos diversos e, ainda, pouco (re)conhecidos.

CAPÍTULO 2

O TRABALHO EM SAÚDE

Antes de qualquer sabedoria profissional eu acho que você tem que ter uma sabedoria Superior que conduza o meu trabalho pra que eu tenha equilíbrio, paz, discernimento. É uma concentração, é quase uma oração que faço no trajeto de casa até aqui, ou quando saio da sala pra pegar o material; é um preparo pra trabalhar. Mesmo na atividade, com uma dificuldade maior, eu fecho os olhos e busco esse Saber, porque de um jeito ou de outro eu sei que estou lidando com a Vida do outro.

(Auxiliar de enfermagem – Nilma)

A utilização da categoria trabalho, segundo a ótica marxista, vem fundamentando os estudos sobre trabalho em saúde, destacando-se alguns autores como Mendes-Gonçalves (1994), Campos (1994, 1997) Merhy (1997, 2000), Pires (1998, 2000), Peduzi (2001, 2003), Franco e Merhy (2004), dentre outros, que serviram de fonte para essa revisão.

Ao abordar esse tema, consideramos relevante a apresentação de alguns conceitos fundamentais, pois é no processo de trabalho que se dá a produção dos atos de saúde, na sua cotidianidade, sendo esse, um espaço privilegiado de percepção e identificação dos modos de ação e gestão dos trabalhadores e, portanto, de análise das relações que aí se estabelecem.

Ainda que no decorrer do capítulo anterior, várias referências ao trabalho em saúde tenham sido feitas, julgo importante um tratamento específico sobre essa temática, o que compõe este capítulo.

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